Amarelo- Lírio e Fogo Azul escrita por Ash Albiorix


Capítulo 15
Capítulo 15- Eros


Notas iniciais do capítulo

Olá! Muuuito obrigada a Rebeca McLean, Peter, Isa, Olhos de Venus e Littlelinha aos comentários do ultimo cap, vocês são tudo pra mim aaaaa
E desculpas pela demora do cap, foram umas semanas muito corridas. Mas agr finalmente chegou cap novo e eu espero que vocês gostem! ♥



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Eros

—Zero, o que aconteceu? — perguntei, nervoso. — Era a Alice, não era? O que ela te disse?

Zero pegou o celular e digitou algo, sem responder. Cruzei os braços, irritado.

—Eros... — ele falou, cauteloso. — Eu não sei como eu deveria te falar isso.

—Me falar o quê? —reclamei, impaciente.

Zero olhou para Erick, então para mim, e entregou o celular na minha mão, ao que Erick se debruçou até o meu lado para ler também.

Zero me olhava como se eu fosse uma bomba prestes a explodir, e não entendi o motivo até que meus olhos caíram na notícia que ele havia aberto.

Antes que eu pudesse ler qualquer coisa, fui cumprimentado por duas fotos: eu, aos 16 anos, na foto que havia sido tirada para a perícia depois do sequestro, e uma foto de Wendy, com um vestido cor de rosa e tranças. Exatamente as fotos que usaram nos jornais na época.

Mas não era uma notícia antiga.

Na verdade, tinha 15 minutos da data de publicação no site.

—Por que isso é novo? O que...? — perguntei, confuso.

Aquelas fotos por si só me deixaram tão desestabilizado que era como se meu cérebro tivesse perdido a habilidade de ler, as palavras se embolando quanto mais eu tentava focar.

—Henrique foi visto novamente — Erick murmurou, resumindo. — Semana passada. A polícia não conseguiu o rastrear por todos esses anos, mas... Aparentemente... Tudo indica que tenham novos rastros dele.

Minhas mãos tremiam.

—Onde? — perguntei.

Minha mente implorava para que fosse muito longe. Em outro país. Escondido numa ilha. Qualquer coisa do tipo.

—São Paulo — Erick respondeu. — No mesmo bairro do Instituto.

Vi Erick e Zero trocando olhares entre si, tentando comunicar algo de forma não verbal, como se soubessem algo que eu não sabia.

Peguei o celular da mão de Erick e continuei a encarar as fotos. Não sabia se estava olhando para Wendy ou para mim.

Quando olhei para o meu próprio celular, mais de 20 pessoas haviam me mandado mensagem. A notícia estava em todos os lugares.

Haviam denunciado um roubo em uma loja de conveniência apenas há algumas ruas do Instituto e conseguiram reconhecer Henrique pelas imagens das câmeras, mas não conseguiram o localizar novamente. Eu não sabia por que ele poderia estar ali, porque aparecer assim do nada depois de anos sem que nenhum traço dele fosse achado. Tinha medo que o motivo tivesse a ver comigo.

Eu também não sabia como deveria reagir, mas os dois olhavam para mim como se já esperassem que eu desabasse. Talvez aquele tenha sido o motivo pelo qual eu rapidamente me levantei da mesa e saí, sem falar nada com nenhum dos dois.

Eu estava no modo sobrevivência. Era exatamente os mesmos pensamentos de quando estava lá, de quando estava acontecendo: se mantenha vivo, ache um lugar seguro.

Eu só precisava manter minha mente longe das dúvidas que estavam se formando.

Fui do segundo andar para o terceiro, passei pelo meu quarto, pela sala de música, atravessei os longos corredores. Ouvi passos atrás de mim e não sabia se estava alucinando ou se era Erick ou Zero vindo até mim, mas os passos pararam quando gritei que queria ficar sozinho.

Voltei para o primeiro andar, e encontrei meus pais sentados no sofá, juntamente com Hugo e Fernanda, assistindo algum filme, tranquilamente.

Então me ocorreu o fato de que eu provavelmente não havia sido a primeira pessoa a saber. Se a notícia já estava em público, certamente passou por alguém da minha família.

—Ah, oi. Quanto tempo, hein? — meu pai falou, quando percebeu que eu estava os encarando.

Peguei o celular, e mostrei a notícia.

—Vocês sabiam sobre isso? — perguntei, o tom acusatório de quem já sabia a resposta.

Eu estava tentando me manter sob controle, apesar do medo.

Todos eles fizeram silêncio.

Hugo deu de ombros.

—Claro que a gente sabia, eles tiveram que confirmar que não era eu — falou, despreocupado.

—Então ninguém pretendia me contar? — gritei.

O silêncio deles não era um silêncio de culpa, apenas de diferença. Eles não se importavam comigo.

—Não precisa disso tudo — Hugo falou.

O único sinal de arrependimento veio de Fernanda, que se levantou e se colocou na minha frente.

—Leo, a gente não sabia como você iria reagir — ela murmurou. — Eu... eu não esperava que...

—Que eu fosse descobrir sozinho na porcaria da internet? Ou vocês estavam esperando um policial bater na minha porta para avisar? Eu... — levantei o olhar, diretamente para os olhos castanhos de Fernanda. Ela havia sido a única pessoa que ficou do meu lado depois de tudo que aconteceu. Uma das únicas pessoas da minha família que eu não desprezava completamente. — Até você? — murmurei.

Não deixei ela terminar a frase sobre o quanto estava arrependida, apenas saí, murmurando que eu precisava sair daquela casa.

Dei uma última olhada na sala, procurando por Zero.

Mandei uma mensagem de áudio, as mãos tremendo demais para digitar.

—Onde você tá? — perguntei, percebendo o quanto meu peito estava apertado.

Meu celular se iluminou com Zero me ligando.

—Eros, eu vim para o seu quarto depois que você saiu—falou. — Onde você tá?

—Ótimo. Fica aí, então.

—Você vai vir para cá, pelo menos?

Fiz silêncio, caminhando pelos corredores, sentindo meu coração bater forte contra meu peito. Eu conseguia ouvir Zero respirando pela chamada, então sabia que ele não havia desligado.

Eu sentia como se estivesse debaixo de uma estação trem, velha e prestes a desmoronar, os barulhos daquele dia se repetindo acima da minha cabeça.

Ofeguei, como se estivesse sendo sufocado por alguma força externa.

—Leo, por favor — Zero pediu, quase implorando — vem até aqui ou me fala aonde você está. Essa casa é muito grande para eu te achar sozinho e acho que já estou ficando perdido por aqui.

—Eu te disse para ficar no quarto!

—Eros...— ele começou a falar, mas eu desliguei o telefone.

Subi até o último andar, um espaço aberto onde ficava uma piscina e algumas mesas. Me debrucei contra a varanda, encostando o rosto no vidro gelado.

Tentei me convencer que não haviam motivos para surtar. Não era nada demais.

Ele só havia sido visto. Perto de onde eu estudo.

A pessoa que quase me matou. A pessoa que matou minha irmã.

Não, me interrompi. Não havia motivo para pular até conclusões.

Mas se ele estivesse atrás de mim...

Fechei os olhos, sentindo as lágrimas descendo, sem saber identificar o motivo. Talvez fossem de desespero ou de medo. Eu sabia que estava sendo irracional, mas...

Se eu tivesse que passar por aquilo de novo...

Eu preferiria morrer.

Minha garganta parecia estar tão fechada que eu mal reparei quão fortemente minhas unhas seguravam meus braços até que começou a realmente doer. Mesmo assim, não parei.

Abri os olhos, olhando para baixo. Eu estava no quinto andar. Imaginar que eu poderia me jogar daquilo ali foi um pensamento tão automático que me agarrei a parede como se não confiasse em mim mesmo.

Eu preferia morrer.

Os pensamentos ecoavam sem minha permissão. Eu conseguia ouvir um grito baixo, mas vindo de todos os lugares, como se eu estivesse usando um fone de ouvido.

Eu sabia que era dela. Sabia que era Wendy. Gritando.

E pior do que o som melancólico e desesperador de minha irmã pedindo socorro, era saber que aquilo eram pedaços da minha memória que insistiam em voltar à superfície.

Me agarrei mais fortemente a parede. Eu parecia patético.

Um barulho alto de algo caindo chamou minha atenção, e virei para trás para ver Zero sentado no chão, do lado da porta.

—Não tem elevador até aqui então não adianta me pedir para te deixar sozinho porque não sou fisicamente capaz de fazer isso — murmurou, ofegante.

—Eu não ia pedir isso — respondi, saindo da beirada da varanda. — Mas você não precisava... — me parei no meio da frase, percebendo o quão aliviado eu estava de Zero estar ali. — Eu vou me esconder num lugar sem escadas da próxima vez — foi o máximo que consegui falar para agradecê-lo.

Sentei junto à parede, do lado de Zero, mas longe o suficiente para que nossos ombros não se encostassem.

Eu fungava baixo, tentando parar de chorar, tentando achar qualquer pingo de controle que ainda existia dentro de mim para que eu pudesse voltar ao normal.

Zero me olhava atentamente, as sobrancelhas juntas como se tentasse achar a resposta de uma equação. Quis falar para ele que eu não era um enigma a ser resolvido, mas, ao invés disso, tudo que consegui fazer foi murmurar um pedido de desculpas e agarrar os joelhos com os braços, envergonhado.

A confusão no rosto dele se tornou ainda mais óbvia.

—Eu realmente não sei por que você está pedindo desculpas.

Dei de ombros.

—Eu estou sempre causando problemas — murmurei. — Você sempre precisa vir juntar meus pedaços depois de eu explodir por qualquer coisa estúpida.

Zero parecia levemente ofendido.

—Você está sendo muito injusto consigo mesmo. Nem sei se você percebe o tanto que faz por mim... — refletiu, como se falasse sozinho.

—Exceto que eu não faço nada. Você é tão... responsável e equilibrado, e eu sou... — apontei para mim mesmo, limpando as lágrimas — essa bagunça aqui.

Ele abriu um pequeno sorriso, que não fez nada além de me irritar.

—Não tem como negar que você meio que é uma bagunça — abri a boca para reclamar, mas Zero continuou antes que eu conseguisse — Mas tá tudo bem. Eu também sou. Você é uma bagunça adorável. Uma bagunça adorável que me abraça quando eu choro, que me lembra quando eu passei muito tempo sem dormir ou comer e reclama comigo quando eu não tomo algum remédio — Zero olhou para cima, como se repassasse cada uma dessas coisas na própria mente. — Que deixa as luzes do quarto acesas para mim porque você sabe que eu não enxergo no escuro — falou, e eu sorri, triste, sem saber que ele percebia que eu fazia isso. — Nós dois somos potencialmente autodestrutivos e estamos sempre juntando os pedaços um do outro. A gente se equilibra — falou, estendendo a mão, que eu segurei —e é por isso que funciona.

Parei por uns segundos, tentando absorver o que ele havia falado.

—Desde quando você sabe expressar sentimentos? — foi a única pergunta que saiu da minha boca.

Ele parecia inseguro, encolhido e desviando o olhar do meu, mas sua mão ainda segurava a minha firmemente. Zero deu de ombros.

—Talvez eu tenha ficado um pouco irritado vendo você se diminuir desse jeito.

—Talvez eu deva te irritar mais vezes.

—Você já faz isso mais do que deveria.

Soltei uma risada baixa e encostei a bochecha no ombro de Zero. Fechei os olhos, a garganta ainda apertada como se eu pudesse voltar a chorar a qualquer momento.

Ficamos em silêncio por alguns minutos, tudo aquilo pesando no meu ombro, até que eu tomei coragem para tentar juntar em palavras como eu estava me sentindo, ciente de que aquilo acabaria comigo me desfazendo em lágrimas e sem chegar a lugar nenhum - assim como todas as outras vezes que eu havia tentado me abrir sobre aquele assunto em específico.

—Eu só... — comecei — eu gostava de pensar que ele estava morto, sabe? Henrique. Não... não literalmente morto. Só... como se ele nunca tivesse existido — soltei a mão de Zero para me encolher novamente. — Como se nada daquilo tivesse acontecido. Mas agora que... agora tudo voltou à tona. As pessoas vão voltar a falar sobre e eu... Eu não sei mais como fugir —passei a mão pelo cabelo, desistindo. — Eu não devo estar fazendo sentido nenhum. Deixa para lá.

—Não — ele discordou, baixo. — Você sabe que eu não sei lidar bem com sentimentos. Mas não significa que eu não esteja aqui para ouvir o que quer que você queira falar. Eu já te disse isso. Mais de uma vez.

—Eu sei. Mas toda vez que eu tento falar sobre... eu travo. É o tipo de coisa que eu bloqueei na minha mente porque foi o que eu precisei fazer para conseguir conviver com isso. Mas agora, mesmo que eu tente desbloquear...

Suspirei, frustrado.

—Eu odeio o fato disso estar em todo lugar — continuei. — Quando eu entrei no Instituto, no primeiro ano, todo mundo sussurrava quando me via nos corredores. Ninguém queria falar comigo porque eu era o garoto esquisito com uma história trágica que estava no jornal um tempo atrás. E eu não queria... eu não queria ser isso. Eu me esforcei tanto para dar outros motivos para as pessoas falarem de mim. Eu consegui as melhores notas, me envolvi em todos os tipos de projetos e cursos e clubes, espalhei boatos sobre mim às custas de outras pessoas e... — olhei para Zero, arrependido — arrumei inimizade com quem eu não deveria. Criei tantas reputações diferentes para fazerem as pessoas se esquecerem e agora... Eu passei todos esses anos deixando isso para trás só para ser forçado a encarar as mesmas coisas de novo.

—Eu entendo um pouco o sentimento de não querer ser reduzido a uma coisa — Zero falou. — Mas você sabe que é mais do que aquilo, certo?

— Sei — respondi, no automático. — Acho que sei — corrigi. — É só injusto que minha vida particular seja exposta desse jeito.

—Posso ser sincero? — Zero perguntou, parecendo um pouco envergonhado. — Eu meio que... não sabia. Não até pouco tempo. Eu posso ou não ter jogado seu nome na internet.

Cruzei os braços, não me sentindo no direito de ficar bravo, mas mesmo assim chateado.

Mas — continuou — eu li o título de uma das manchetes e aí não consegui ler o resto. Nós já éramos... meio que amigos, eu diria, na época. E eu me senti invadindo sua privacidade. Eu não deveria nem ter pesquisado, na verdade. Me desculpa. Se você quisesse que eu soubesse, você me contaria.

Zero não sabia por vontade própria. Ele nunca me fez perguntas que talvez eu não quisesse responder, mesmo quando começamos a ficar mais próximos. Zero nunca perguntou sobre a cicatriz no meu pescoço quando eu sabia que tinha prendido o cabelo perto dele vezes o suficiente para ele ter reparado, nunca perguntou sobre meus pesadelos e também não perguntou mesmo quando Hugo falou sobre na frente dele. Eu sabia que poderia interpretar aquilo como desinteresse, mas se eu conhecesse ele como achava que conhecia, Zero estava me dando espaço. Eu nunca havia me sentido tão respeitado quanto quando essas coisas começaram a fazer sentido na minha cabeça.

Mesmo assim, se havia alguém que talvez eu estivesse disposto a me abrir...

—Eu quero que você saiba — murmurei.

—Então me conta.

Soltei uma risada nervosa, baixa.

—Essa é a parte difícil.

Meu cabelo se embolava no meu rosto com a minha cabeça encostada no ombro de Zero. Apesar de estar praticamente apoiado no garoto, tentei não deixar meu peso muito em cima dele.

—Você vai escorregar assim — comentou.

Ele levantou o braço para passar por trás das minhas costas, demonstrando que eu poderia apoiar meu peso nele, mas ao invés disso, deitei no chão e apoiei minha cabeça na perna de Zero.

—Escorreguei.

Zero segurou uma risada.

—Eros, você é o ser humano mais descarado que eu já conheci.

—Eu posso levantar se você estiver desconfortável.

Ele desviou o olhar, como se não quisesse me dizer não, e eu pensei por uns segundos que fosse pedir para eu sair, mas então Zero passou a mão pelo meu cabelo, soltando o elástico, e começou a brincar com as pontas dos fios tão devagar que eu mal conseguia sentir.

—Essa é a sua forma esquisita de dizer que eu posso ficar aqui? — perguntei.

Olhando para cima, eu conseguia ver os olhos azuis de Zero e a parte de trás da lente de seus óculos, e umas sardas no pescoço que eu nunca havia notado que estavam ali.

Ele estava olhando para o outro lado, como se a luz da varanda de repente fosse a coisa mais interessante do mundo.

—Se você soubesse o quanto é legal te deixar constrangido... — sussurrei.

Zero olhou para mim novamente, um pequeno sorriso escondido no seu semblante irritado.

—Você é ótimo em mudar de assunto — falou, chamando minha atenção.

—Tá bom, tá bom — reclamei. Coloquei a mão no rosto, fingindo que segurava um microfone. — Senhoras e senhores, nesse momento começamos o podcast que eu gosto de chamar de Os Traumas de Leonardo.

Zero riu por meio segundo, então empurrou minha mão, devagar.

—Não. Eu sei mais do que ninguém como é usar humor como forma de defesa, mas você está proibido de tentar me contar isso de uma forma engraçada.

Suspirei, fechando os olhos e prestando atenção nos dedos de Zero no meu cabelo. Pensei comigo mesmo por um tempo, tentando colocar as coisas em ordem, tentando fazer com que minha respiração se acalmasse porque só pensar em tocar no assunto me deixava ansioso.

Por fim, abri os olhos e disse:

—Eu já te contei como minha família funciona?

Zero negou com a cabeça.

—Éramos oito irmãos no total — continuei. — Wendy era a mais nova. Depois vem Erick e, logo em seguida eu. Victor e Gabriel, as duas pestes que você conheceu. Henrique e Hugo, que são os gêmeos, e Fernanda. Nessa ordem. Se você me perguntasse uns 5 anos atrás, eu diria que a gente era uma família relativamente feliz. Quer dizer, uma família meio fodida, mas até que ok. Minha mãe e meu pai passam muito tempo viajando ou trabalhando, então a gente foi praticamente criado por um monte de babás. Eu via Henrique quase como... uma figura paterna, sei lá — falei.

Aquelas palavras faziam eu me sentir quase como se a decepção pudesse fisicamente queimar meu estômago.

Respirei fundo, segurando o choro.

—Ele me ensinou... quase tudo que eu sei. Como amarrar meus sapatos, como andar de bicicleta, como lidar com corações partidos. De um jeito meio fechado, mas ele estava sempre comigo. Eu cuidava de Wendy e Erick. Ele cuidava de mim. Tudo de ruim que os outros irmãos faziam, ele anulava. Henrique me defendia quando as brigas se tornavam feias, me apoiava a seguir meus sonhos. Ele me deu minha primeira caixa de tintas e convenceu meus pais a me darem um piano. Quando eu me assumi, Henrique foi o único adulto na família que ficou do meu lado.

Eu conseguia sentir as lágrimas descendo enquanto memórias tão felizes se tornaram amargas conforme eu as relembrava.

Continuei:

—Mas aí... tudo mudou do nada. Naquela época, Henrique e Hugo haviam acabados de se formar lá no Instituto e os dois haviam sido contratados como professores. Os gêmeos não eram muito amigáveis um com o outro, mas eles faziam tudo juntos. Fizeram o mesmo curso, arrumaram o mesmo emprego. E aí Henrique ficou distante. Não atendia minhas ligações, não queria falar comigo ou me dar uma explicação. Não aparecia mais aqui. Eu pensei que... não sei o que eu pensei. Que ele estava sobrecarregado? Que estava passando por uma fase difícil? — soltei uma risada nervosa — Eu queria que tivesse isso.

Olhei para Zero, tentando me certificar de que ele ainda estava ouvindo. Ele acenou levemente em resposta, como se pedisse para eu continuar.

—Mas então... e essa é a parte em que tudo fica confuso... eu não sei bem o que aconteceu exatamente. Eu só me lembro... — minha garganta travou.

Levantei do colo de Zero, me sentindo sujo. Era como se eu encostasse nele, o deixaria sujo também.

Ele me olhava como se quisesse falar algo, mas não soubesse exatamente o quê. Zero manteve o olhar firme em mim, tentando me encorajar.

Continuei:

—Eu só me lembro de ter saído com Wendy um dia de manhã. Era época de férias, então Hugo e Henrique deveriam ter vindo para casa. Eu não sei bem onde eles estavam. Eu saí de manhã e aí... eu comecei a me sentir esquisito, como se tivesse sido drogado. Sendo sincero, acho que realmente fui, embora não consigo pensar em nenhuma forma que isso possa ter acontecido. Alguém... — eu apertei os olhos, tentando colocar todos os flashes de memória que eu tinha em ordem. — Isso é difícil! — reclamei. — É como tentar contar de um sonho de anos atrás que eu me esqueci assim que acordei. Eu... não me lembro bem. Não consigo dar uma ordem ou um sentido.

Zero fez um sinal com o braço, pedindo que eu chegasse mais perto, ao que eu neguei e desviei o olhar.

—Só... — ele falou, baixo — não precisa tentar dar um sentido. Só fala o que você lembra e quiser falar, ok? —e então abaixou a voz para falar um "está tudo bem" que eu mal consegui ouvir.

Deixei o choro me sufocar por uns segundos, para então me forçar a parar e conseguir contar o resto.

—Eu me lembro de eu e Wendy sendo arrastados para algum lugar. Um carro, talvez? Eu não parava de gritar para Wendy fugir. Eu tentei fazer algo, qualquer coisa, mas minha força física não serviu de nada no estado que eu estava. Algo doía, mas eu não me lembro bem. Talvez eles tenham me machucado. Não sei. Eu só me lembro de me sentir tão desesperado e tão inútil porque tudo que eu fazia só piorava as coisas. Aparentemente, se passaram três ou quatro dias. Eu não tenho noção nenhuma do tempo que passamos lá na estação de trem — falei, e senti que precisava explicar:

—Não era exatamente uma estação de trem, mas era um galpão abandonado embaixo de uma estação de trens de carga. Algumas vezes, ainda agora, eu consigo ouvir os barulhos dos trens passando. Eu tenho poucas memórias de quando estávamos lá. Eu só lembro que olhava para Wendy, e parte de mim fica feliz que eu não consigo lembrar como ela estava, mas eu pensava que ela era só uma criança e que ela não merecia aquilo. Que iríamos morrer. Que estávamos morrendo, e estava tão agonizantemente devagar.

Eu estava tremendo tanto que, mesmo com os braços segurando os joelhos, conseguia sentir meu corpo balançando. Tentei fazer parar, mas quanto mais eu tentava, mais eu tremia.

Eu conseguia perceber que Zero estava se forçando a manter uma expressão neutra, embora seus olhos demonstravam algo que eu não saberia dizer se eram espanto ou compaixão. Ele não havia tentado chegar mais perto de mim depois que eu o afastei, mas eu sentia que se segurava para não me abraçar.

—A maior parte das minhas outras memórias são só... sentimentos — falei. — Não me lembro do que fizeram com Wendy. Ou comigo. Eu só lembro de me sentir assustado, desesperado, tentando sobreviver às custas de qualquer força que eu ainda tinha. De ficar sem ar, não sei bem porquê. Eu me lembro do rosto de Henrique, mas de uma forma tão borrada e distante. Eu nunca consegui achar um sentido do porquê... porquê logo ele faria isso com a gente... comigo...

Parei de falar por uns segundos, respirando fundo, tentando me lembrar de novo e de novo onde eu estava. No terraço. Com Zero. Tudo isso havia acontecido, anos atrás.

Cheguei perto de Zero, encostando meu ombro no dele para me lembrar de onde estávamos e que ele estava ali comigo, mas pedi para ele não encostar mim.

—E aí... eu me lembro de fugir — falei. —Não sei como consegui, e nem como tive força física para sair de lá depois de todo aquele tempo. Eu só me lembro de ver alguma brecha e pensar "É agora. Se eu não fugir agora, eu vou morrer aqui". E eu fico tentando me lembrar... — minha garganta travou novamente — fico tentando me lembrar de Wendy, mas eu não consigo. Eu fugi. Eu saí de lá sozinho.

Depois de alguns segundos chorando, de olhos fechados, pronunciei as palavras que me assombravam:

—Ela morreu por minha culpa. Porque eu deixei ela lá.

—Não foi sua culpa — Zero murmurou. Por mais que fosse reconfortante ouvir aquilo de outra pessoa, eu não consegui evitar a não ser repetir:

—Foi minha culpa.

—Eros, você não fez nada de errado. Você só estava tentando sobreviver.

No momento que as palavras saíram da boca de Zero, meu choro se tornou mais intenso, e eu me encolhi, soluçando.

—Você não acha que eu sou uma pessoa horrível? — perguntei.

Zero suspirou, como se tivesse sido pego de surpresa pela pergunta.

—Eu... é claro que não. Eu acho que você sobreviveu à muitas coisas horríveis feitas por pessoas horríveis. Eu... — ele encolheu os ombros, sem saber o que fazer. — Eu sinto muito.

—Você pode me abraçar agora se quiser — embolei as palavras, quase em um sussurro.

—Isso é ótimo, — Zero falou, passando os braços pelo meu ombro — porque eu acho que nunca quis tanto abraçar alguém.

—Eu tô com medo, Yan — sussurrei. — E se...

—Sem "e se". — interrompeu. — Tá tudo bem.

Me encolhi novamente e fechei os olhos.

Zero me chamou apontou para a varanda.

—A gente pode ir até ali? — perguntou.

—Pra que?

—Estrelas.

Da varanda descoberta, conseguíamos ver o céu noturno. Ele deitou no chão apesar da poeira, e eu deitei do lado. Eu me sentia exausto e não parava de tremer.

Zero tentou me acalmar me mostrando todas as constelações que ele conseguiu achar no céu cinzento da cidade. Eu conhecia o truque dele agora, mas não me importava.

A porta abriu do outro lado, nos assustando. Meu pai apareceu, com a expressão fechada.

Instintivamente, agarrei a manga do casaco de Zero- ou melhor, do meu casaco que Zero estava usando.

Eu e Zero levantamos, desconfortáveis. Eu não sabia o que meu pai estava fazendo ali, mas queria que fosse embora. Ele olhou para Zero, e depois para mim.

Então estendeu a chave do carro.

—O quê? — perguntei.

—Você não estava reclamando mais cedo que queria ir embora?

Peguei a chave, desconfiado.

—E você está facilmente me emprestando o carro assim?

Meu pai me analisou por uns segundos.

—Nós dois sabemos que eu não sou o maior fã de todo esse seu drama. Ao contrário da sua mãe. Ela se alimenta de drama, e aí escreve um livro sobre. Você pode ficar aqui até terça e esperar o sermão longo e complicado dela. Mas se quiser voltar para o Instituto, a chave está aí.

—Ah, obrigado— falei, ignorando completamente o comentário sobre como ele odiava meus dramas. — Posso levar Erick? Aí ele não perde aula.

Meu pai deu de ombros.

—Se ele quiser ir com você.

Enquanto meu pai saia, Zero perguntou:

—Você dirige? Hugo não te deixou nem chegar perto do volante na viagem.

—Ele morreria antes de me deixar dirigir o carro dele. E, sobre a primeira pergunta... mais ou menos.

Zero arregalou os olhos.

—Se a gente está prestes a fazer uma viagem de carro de 6 horas, mais ou menos é a última coisa que eu quero ouvir.

Dei um sorriso constrangido.

—É que... faz um tempo que eu não pego no volante. Mas vai dar tudo certo. Sem problemas.

—Você sabe o caminho?

—Você está fazendo perguntas muito difíceis.

Eros!

—É para isso que existe GPS!

Ele cruzou os braços, me olhando como se não soubesse se ria ou se brigava comigo.

—Você tem certeza que não quer esperar?

—Zero, você viu a bagunça que essa família é. Eu realmente quero sair daqui o mais rápido possível. Mas se você quiser ficar...

—Eros, se a gente se perder, eu vou falar tanto no seu ouvido que você vai se arrepender de ter parado de me odiar.

—Quem disse que eu parei de te odiar? — falei, rindo.

Ele abriu um sorriso e revirou os olhos.

—Inacreditável. Só... vamos arrumar as coisas antes que eu desista.

Fui até o banheiro lavar o rosto. Considerei tomar um dos remédios para ansiedade que eu guardava e fingia para minha mãe que estava tomando, mas, se eu ia dirigir, precisava estar alerta o suficiente. Erick quis ir junto e, felizmente, me assegurou que sabia o caminho.

Meu pai havia mandado eu ir em um dos carros de Hugo e deixar no apartamento dele de lá. Eu sabia que não poderia, de forma alguma, deixar qualquer coisa acontecer com aquele carro. Hugo olharia até se as poeiras estavam no mesmo lugar de antes.

Arrumamos as malas o mais rápido que conseguimos, mas já estava ficando bem tarde quando saímos.

Eu decidi que afastaria minha tristeza e o clima ruim na base do ódio.

Zero estava sentado no banco do meu lado, fazendo questão de repetir tudo que o GPS falava, e Erick estava no banco do meio da parte de trás, jogando.

—Agora sim é uma viagem decente! — falei, sorrindo e abrindo as janelas. — Os três mosqueteiros. A gente deveria colocar música!

—Eu quero dormir — Erick reclamou.

—E eu não posso dormir — respondi — então vocês vão me ajudar a me manter acordado.

—Erick, posso bater no seu irmão se ele cochilar? — Zero perguntou.

Por favor, faça isso. Leonardo, você não ouse.

Eu soltei uma risada, sentindo o vento passar pelo meu rosto.

—Então a música ou...?

Zero deu de ombros.

—Por mim tanto faz. Erick?

—Tá, tudo bem.

Passamos mais ou menos meia hora tentando decidir quem controlaria o rádio: eu ou Zero.

—Você está dirigindo! — ele reclamou.

—Não tem problema, eu tenho várias playlists prontas.

—Eros, você não vai me fazer ficar cinco horas ouvindo Britney Spears.

—É uma ofensa você assumir que meu gosto musical é Britney Spears!

—Eu não assumi nada, você ouve música perto de mim, Leonardo! — comentou, rindo.

—Mas se você for escolher, eu vou ter que ficar ouvindo algum indie triste depressivo.

—Sem músicas tristes — ele prometeu, sorrindo ao saber que estava quase me convencendo.

Zero começou a me falar uma lista das bandas que ele ouvia para procurarmos algo em comum, o que não foi nada fácil.

Eu me perguntei como duas pessoas poderiam ser tão diferentes e, mesmo assim, se darem tão bem.

No final, achamos um total de 3 coisas em comum no nosso gosto musical: The Neighbourhood, Arctic Monkeys e Queen.

Eu estava pegando o jeito com dirigir novamente, apesar de, vez ou outra, sentir que o carro estava esquisito. Zero cantava baixinho quando passava alguma música que ele gostava, e eu estava fazendo o mesmo.

Quando começou a tocar Good Old Fashioned Loverboy, eu desisti de me segurar e comecei a cantar o mais alto que consegui.

—É injusto cantar com você! — Zero reclamou, rindo. — Você canta bem demais, não tem graça!

Respondi virando rapidamente para ele e cantando: oh, loverboy, what you're doing tonight?

Ele riu novamente, ainda mais alto. Era raro ver Zero genuinamente se divertir, e eu estava feliz que aquilo estava acontecendo.

Meu cabelo se soltou com o vento e fios de cabelo começaram a cair pelo meu rosto, que eu lutei para arrumar sem tirar a mão do volante.

Zero pegou o elástico da minha mão e se debruçou contra o banco para prender meu cabelo. Dei uma olhada rápida para ele, que parecia cansado, mas feliz.

—Meu Deus, eu não sei o que é pior: — Erick falou, do banco de trás — Quando vocês estão brigando ou quando estão... assim.

Aquilo era exatamente como eu faria as coisas serem todos os dias se eu pudesse decidir.

Eu me sentia leve.

E novo. Como um adolescente rebelde num filme de romance, desbravando as estradas e não se preocupando com nada além do aqui e agora.

O que talvez tenha sido meu erro.

Estávamos em uma longa estrada, e foi só quando saímos dela e entramos em outra mais movimentada que eu comecei a me questionar se talvez não fosse eu dirigindo, mas sim o carro que realmente estivesse estranho. Eu não me lembrava de ter que pisar tão forte no freio para ele funcionar.

Abaixei um pouco a música, mas sorri para Zero, tentando evitar estresse desnecessário.

Estávamos em alta velocidade- não além do permitido pela pista, mas ainda assim, relativamente alta. Não precisaríamos parar em uns minutos, então tentei desacelerar o carro de leve. O indicador de velocidade não saiu do lugar.

Tentei novamente, pisando no freio com mais força.

Nada.

Os dois minutos até precisarmos parar antes de bater em outro carro de repente parecia tempo de menos.

Minhas mãos estavam tremendo.

Pisei no freio com força o suficiente para parar o carro abruptamente se estivesse funcionando, mas, ainda assim, não consegui.

—O que foi? — Zero perguntou, abaixando a música. — Você não parece bem.

Considerei minhas opções por um breve segundo.

—Está todo mundo usando cinto? — perguntei.

Erick e Zero concordaram.

—Ótimo — falei. — Porque o freio não está funcionando.

O quê? — Erick gritou. — Tipo... literalmente?

Tentei me manter o mais calmo possível.

—É. Literalmente. Eu não consigo parar o carro ou diminuir a velocidade.

—Eros, tem um sinal a menos de dois minutos da gente — Zero sussurrou, assustado.

—Eu sei. Eu sei. Eu estou tentando desacelerar com as marchas.

Zero estava claramente entrando em desespero.

—Não dá tempo!

Vai dar tempo.

—Eros, eu fiz um cálculo aproximado. Mesmo se o carro começar a desacelerar nesse segundo, não vai parar antes da gente bater. E não me parece estar desacelerando.

—Merda — murmurei. — Merda! Se eu puxar o freio de mão agora...

—O carro vai rodar e a gente vai bater do mesmo jeito! — Zero interrompeu, embora aquelas estavam prestes a ser as palavras que eu ia dizer.

—Joga no canto da estrada! — Erick gritou.

O carro deslizou com a curva que tentei fazer.

Ouvi Zero fazer um barulho que eu não consegui reconhecer e, no canto da visão, consegui ver ele apertando a blusa na altura do coração.

—Não, não, não... —murmurei.

Olhei ao redor. Não sabia quantos segundos tínhamos até bater nos carros da frente. Mesmo com o carro o mais próximo possível da beirada da pista, não havia acostamento ou nenhum espaço que pudéssemos tentar parar o carro com segurança.

Então resolvi fazer algo arriscado.

—Tá bom, vocês dois vão precisar confiar em mim.

Sem repensar, joguei o carro de lado contra as barreiras de proteção na estrada.

Sacudimos violentamente, e o cinto bateu com força contra meu pescoço.

Estávamos deslizando contra a barreira com toda a força, sendo arrastados. Eu conseguia ouvir o barulho da lateral do carro sendo completamente estragada.

Se eu estivesse certo, o atrito contra a barreira nos ajudaria a diminuir a velocidade.

Mesmo que batêssemos, não seria tão ruim.

Eu continuei tentando fazer tudo que conseguia lembrar para parar o carro completamente, mas foram poucos segundos até que déssemos de frente com a traseira de um carro.

Demorei alguns segundos para conseguir processar o que havia acontecido. A barreira havia diminuído nossa velocidade consideravelmente. Meu ombro e meu pescoço doíam. A pessoa do carro da frente parecia estar bem.

—Erick, Yan! Vocês estão bem? Alguém machucado? —gritei, ignorando a dor para tirar o cinto e virando para trás.

Erick parecia apavorado, pálido e recuperando a respiração. Sua expressão era de quem estava prestes a começar a chorar.

—Erick, você se machucou? — repeti.

Ele negou.

—Zero? — perguntei, voltando para o banco da frente.

Meu corpo todo se tensionou quando vi que Zero estava, não só inconsciente, mas seu rosto estava ficando azul.

—Merda! — falei, arrancando o celular do bolso.

Joguei o celular para Erick e fui até Zero verificar.

Tudo que consegui falar foi:

—Ambulância. Rápido. Acho que ele não está respirando.

 


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