Amarelo- Lírio e Fogo Azul escrita por Ash Albiorix


Capítulo 10
Capítulo 10- Zero


Notas iniciais do capítulo

Depois de um tempinho de bloqueio criativo, estou de volta yayy
Obrigada a Isa Dias, Olhos de Vênus, Rebecca McLean e Littlelinha que deixaram comentários no ultimo cap aaaaa ♥
Cap 10, o que significa que estamos chegando na metade da fic e.e obrigada a quem ta lendo até aqui!!
Enfim, espero que gostem do capítulo ♥



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Zero

O som distante de alguém falando me acordou logo que adormeci. Abri os olhos devagar, sonolento, e vi Eros na cadeira do lado, a expressão preocupada e o rosto pálido, a mão tremendo e segurando o telefone. Não consegui distinguir exatamente o que ele estava falando, não havia acordado completamente, mas Eros não parecia feliz. Assim que desligou, a curiosidade falou mais forte e decidi perguntar:

—O que foi?

Eros respirou fundo, os olhos estavam levemente arregalados, como se não soubesse que reação ter.

—Nada, nada — murmurou, falando rápido. — Era... hum, era Alice. Ela pediu pra eu encontrar ela na casa da mãe de Davi.

Franzi a sobrancelha.

—O quê? Por quê?

—Eu não sei. Ela não quis falar. Só mandou a localização. Ela parecia... sei lá, nervosa? Não deve ser nada. Eu devo tá preocupado por nada. Certo?

Por mais que eu quisesse concordar, não sabia exatamente se deveria, então apenas dei de ombros.

—Alice falou algo sobre você ir junto... — ele continuou. — Mas não precisa. Não deve ser nada.

Eros levantou e ia se afastar, mas fui atrás dele.

—Ei! Ei, espera aí! — o segui, irritado. — Se ela falou pra eu ir junto, deve ter um motivo! Deve ter algo a ver com o Davi, eu quero ir.

Ele suspirou, frustrado, mas acabou cedendo. Comemos algo antes de sair e me enchi de café novamente para tentar me manter acordado.

Eu estava completamente ciente de que eu tecnicamente não podia beber café, e o barulho incômodo do meu coração palpitando acelerado fez questão de me lembrar disso.

Durante todo o caminho, Eros batia o pé no chão do carro, nervoso. Ele sempre parecia ridiculamente avulso as situações, mas, desde o incidente com aquele homem, Eros estava bastante impaciente. Eu continuava me lembrando da primeira vez que o vimos, nesse mesmo bairro, e na forma como ele olhava fixamente para mim, mas, no segundo que viu Eros, se escondeu.

Eu sabia que, muito provavelmente, se conseguíssemos descobrir quem aquela pessoa era, muitas perguntas seriam respondidas. Mas, ao mesmo tempo, torci para não o encontrarmos novamente. Não naquele dia.

Eu só queria um pouco de paz, só por uns minutos.

Infelizmente, paz parecia algo que estávamos cada vez mais longe de alcançar. Assim que chegamos, Alice abriu o portão para nós e entramos em silêncio, indo até a sala. Nos encaramos por uns segundos, de uma forma quase que constrangedora.

Eros passou a mão no cabelo, confuso.

—Então...?

Alice olhou ao redor.

—Você tá vendo alguém aqui? — ela perguntou, como se apontasse algo óbvio.

—Não?

—Exatamente. Cadê a Renata?

Foi quando percebi que a casa, realmente, estava vazia.

—Espera — falei. — Ela não tava lá na igreja mais cedo. Ou eu não reparei?

Alice parecia extremamente intrigada.

—Não. Não tava — a garota afirmou. — Eu pensei que ela, sei lá, tava muito abalada pra ir ou algo assim. Mas que tipo de mãe perde o enterro do próprio filho? Eles nem eram tão próximos assim, mas... — Alice suspirou, frustrada, e sentou no sofá, ao que Eros sentou também. — Eu vim aqui ver se eu poderia oferecer algum tipo de apoio, não sei. Eu tenho uma cópia da chave que ela deixou comigo da última vez que vim. Cheguei aqui, e a casa tava vazia. Pensei que ela tinha saído, mas... ela não atende o telefone. Eu liguei pra outra filha dela, Pamela, que disse que também não a viu. Pamela disse que iria checar com os parentes e me avisar se tivesse alguma notícia, mas até agora nada. Vocês não acham isso estranho pra caralho?

Alice jogava as palavras emboladas no ar como se estivesse com raiva, e provavelmente estava mesmo.

—Você acha que aconteceu algo? — Eros perguntou.

—Você não? Fala sério, vocês realmente tão acreditando que ele simplesmente se matou? E agora a única pessoa que poderia nos dar alguma resposta sobre se ele realmente esteve aqui ou não some. E vocês acham que seja coincidência?

Eros olhou para mim, o olhar assustado e levemente culpado. Nós dois sabíamos que havíamos deixado de fora uma parte muito importante: a mensagem que deixaram, o que fizeram com nosso quarto logo depois da primeira vez que viemos aqui.

Talvez não tenha sido a coisa mais amigável a se fazer com Eros, mas resolvi deixar os dois sozinhos para que ele pudesse contar. Eles eram mais próximos entre si, de qualquer forma.

—Eu vou olhar pela casa e ver se acho algo que possa indicar o que aconteceu — avisei, saindo discretamente.

Eros me olhou como quem dizia "Sério? ", mas eu apenas continuei pelo corredor, a tempo de ouvi-lo falando:

—Alice, acho que eu tenho que te contar algo que aconteceu.

Aproveitei para realmente fazer o que falei que ia, e comecei a olhar ao redor da casa. Não haviam louças na pia, coisas espalhadas ou janelas abertas. Não era uma casa grande, mas estava arrumada. Se alguém tivesse ido até lá para fazer algo de ruim com a jovem senhora, definitivamente teriam sinais de uma saída inesperada. Ou de qualquer coisa inesperada. Mas estava tudo perfeitamente encaixado em seu devido lugar.

Passei pela cozinha, e depois pelo banheiro, aproveitando a oportunidade para lavar meu rosto e tomar um dos remédios que havia enfiado na minha mochila antes de sair. O único cômodo que restava era o que me parecia ser o quarto. Ao sacudir a maçaneta, percebi que estava trancado.

—Alice? — chamei, interrompendo a conversa agitada que ela e Eros estavam tendo. Os dois foram andando até mim, parecendo chateados um com o outro. — Por acaso você tem a chave dessa porta? — perguntei.

Alice balançou a cabeça negativamente.

—Não. Só a do portão e a da porta principal.

Eros apontou para o final do corredor.

—A gente pode quebrar a janela pelo lado de fora e entrar — sugeriu.

Ei! — interrompi, antes que ele realmente colocasse aquilo em prática. — Não vamos quebrar a janela de ninguém.

Olhando para sua expressão, ele parecia quase decepcionado.

—Eu acho que consigo abrir isso — continuei, olhando a fechadura de perto. — Algum de vocês tem um grampo de cabelo ou clipe de papel? Dois desses, especificamente.

Eros me encarou, surpreso.

—Eu me recuso a acreditar que você consegue abrir uma fechadura com um grampo.

Dei de ombros.

—Minha mãe costumava me trancar nos lugares de vez em quando. Tive que aprender.

—Isso é deprimente pra caralho — Alice comentou, mexendo em sua bolsa à procura de algo que eu pudesse usar.

Ela me entregou dois clipes, ao que eu tentei desamassar, mas minhas mãos estavam tremiam e eu estava completamente sem forças. O clipe não desamassou completamente, ficando quase num formato redondo.

Suspirei, frustrado.

—Minhas mãos estão tremendo demais. Não sei se consigo — murmurei, me sentindo humilhado o suficiente.

Eros foi até o meu lado e esticou a mão.

—Me dá. Você me explica e eu vou tentando.

Hesitante, coloquei os dois clipes na mão de Eros, sentindo que aquilo não iria dar em nada.

O mostrei como dobrar os clipes e comecei a explicar como uma chave funcionava, ao que ele me interrompeu:

—Muito bonitinho você animado explicando, mas menos mecânica e mais "o que eu faço com isso".

Estalei a língua, e ele deu um sorriso quase imperceptível.

Expliquei cuidadosamente o que ele deveria fazer com os grampos, e a cada vez que eu falava, ele seguia as instruções, concentrado.

—Coloca o primeiro clipe, e empurra até sentir que chegou no final. Agora o outro, e empurra pra cima até achar um pino. Achou?

Ele me olhou, confuso.

—Não.

—Continua tentando. Você vai ouvir um barulho, como se fosse um clique.

Ele ficou em silêncio por uns segundos, então disse:

—Consegui! E agora?

—Agora precisa achar os outros pinos.

Eros bufou.

—Outros?

Depois de longos 10 minutos de tentativa e erro, conseguimos destravar a porta.

Eros virou para trás, olhando para mim com os dois grampos na mão e a sombra de um sorriso orgulhoso. Ele abriu a boca como se fosse comemorar, mas rapidamente mudou de ideia, provavelmente percebendo que não era a situação adequada.

Alice estava calada, os braços cruzados, nem um pouco feliz com nós dois por termos escondido tanta coisa dela. Mas, assim que entramos no quarto vazio e começamos a olhar ao redor, a preocupação dela se alternou para outras coisas.

Alice abriu o guarda-roupa de Renata, e olhou para nós dois, esperando que chegássemos a mesma conclusão que ela.

—Vazio — murmurei. — Ela arrumou as próprias malas. Provavelmente fugiu.

—Por vontade própria — Eros completou.

—Por que...? — Alice começou, e logo depois respirou fundo. — Por que ela sairia por vontade própria sem avisar ninguém? Nem mesmo a própria filha, que deve estar agora mesmo ligando pro resto da família tentando descobrir onde a mãe está.

—Talvez tenha sido o trauma — Eros murmurou. — Talvez ela tenha ficado muito abalada, e só quis se esconder do mundo. É entendível, não é?

—Ou talvez ela tenha pessoalmente algo a ver com isso — Alice disparou, sem pensar duas vezes no peso das palavras.

Nos encaramos em silêncio, talvez ela tenha percebido que estava sendo julgada, porque continuou se explicando.

—Zero, você era amigo dele! Como era o relacionamento dele com a mãe mesmo? — Perguntou, sabendo a resposta, ao que eu murmurei:

—Nada bom.

—Exatamente!

—Tá, mas não faz sentido nenhum! — Eros interrompeu. — Como uma senhora de, sei lá, 60 anos, que mal tem dinheiro pra pagar uma casa com mais de dois cômodos separados, teria influência ou contatos o suficiente pra entrar no Instituto e ameaçar nós dois? Não pode ter sido ela, a velha provavelmente só surtou e fugiu!

Enquanto eles falavam, empurrei minha cadeira até o canto do quarto, onde estava um computador Windows antigo. Demorei alguns segundos para me lembrar como se ligava aquele modelo de computador, mas, assim que o liguei, um usuário desbloqueado com a foto da mãe de Davi apareceu. O papel de parede também era uma foto dela, sorrindo.

Eros e Alice estavam ocupados demais discutindo suas próprias teorias que nem perceberam que eu havia me ausentado da conversa.

Abri o navegador e fui no histórico, a procura de qualquer coisa levemente suspeita, mas ele, aparentemente, havia sido excluído, não mostrando nada de nenhuma data.

Depois de algumas tentativas, consegui encontrar o arquivo do sistema onde o histórico estava, e recuperar algumas versões antigas, o que, felizmente, me dava acesso ao histórico recente.

Estava tão concentrado que demorei a reparar em Alice e Eros, que agora estavam parados do meu lado. Eros me olhava, atenciosamente.

—Você é exatamente o estereótipo de um nerd da informática e, mesmo assim, eu tô levemente impressionado — murmurou.

Agora que o histórico estava ali, exposto, só bastava a parte de procurar algo. Mas, assim que olhei para a tela, as letras ficaram desfocadas. Coloquei a mão no rosto, me certificando de que estava usando os óculos.

Pisquei novamente, o computador voltando ao foco.

—Ali! — Alice disse, apontando a um link, ao qual eu cliquei.

Um site de passagens aéreas, que nos direcionou imediatamente a uma página de compra de passagens para o Canadá.

—Aqui tá sua resposta — murmurei para Eros. — Ela não consegue comprar um computador novo, mas comprou passagens para o Canadá? Alguém a pagou para ficar quieta e sumir do mapa. A mesma pessoa que invadiu nosso quarto e, talvez, a mesma pessoa que nos seguiu no velório.

Alice parecia perplexa.

—E ela aceitou — falou, quase enojada. — Ela sabia, sabia que ele não se matou e simplesmente aceitou fugir, dias depois da porra do filho dela ter sido claramente morto! Vadia.

Eros começou a falar como fazia sentido alguém ser rico e influente o suficiente para manipular e subornar quem quer que fosse, como a polícia ou o Instituto, e que estávamos mexendo com algo mais poderoso do que poderíamos imaginar. Alice disse que não se importava, e que a única coisa justa com a memória de Davi era a verdade.

Aos poucos, a conversa deles começou a ficar apagada, como se minha cabeça estivesse embaixo d'água. Eu estava ciente das minhas mãos geladas e o som do meu coração batendo como se estivesse nos meus ouvidos, mas o ambiente ao meu redor foi sumindo aos poucos, até que senti um baque e apaguei.

Quando abri os olhos novamente, tudo estava confuso.

—O quê...? — Murmurei. Tudo estava embaçado, mas dessa vez, eu estava sem os óculos. — Meus óculos...?

Alguém os colocou na minha mão e, assim que consegui enxergar de novo, vi Eros me olhando, a mão apertando o próprio braço como se estivesse nervoso.

—Pergunta importante. Eu deveria estar surtando e ligando pra emergência ou...?

—Não — respondi. — Não precisa.

Reparei que eu estava deitado numa cama e, olhando ao redor, não havíamos saído do quarto de Renata.

—Como eu vim parar aqui? — Perguntei, raciocinando a resposta instantaneamente e me arrependendo de ter perguntado.

—Eu te coloquei aí — Eros falou, e então deu de ombros. — Você não é muito pesado.

Escondi o rosto com a mão, envergonhado. Não havia nada que poderia deixar aquele dia pior.

Assim que tentei me mexer, senti uma dor aguda no ombro, e apertei o lugar, fechando os olhos.

—Você meio que bateu o braço quando caiu — Eros disse, sentando na cama do meu lado.

—É. Eu percebi isso — reclamei.

Meu coração estava batendo num ritmo normal novamente, mas tudo ainda estava meio brilhante demais, saturado, como olhar o mundo através de uma lente de câmera desregulada.

—Tem certeza que você não precisa ir pro hospital? — Insistiu.

—Tenho — respondi, me esforçando para sentar na cama, colocando meu peso no braço que não estava doendo. Olhei ao redor, procurando minha cadeira que, felizmente, estava intacta, do lado da cama. Eu raramente caía dela quando desmaiava, mas, quando acontecia, eu ficava desesperadamente com medo de algo ter quebrado, porque eu com certeza não teria dinheiro para comprar outra.

Eros perguntou se eu precisava de algo, ao que eu neguei, mas ele trouxe um copo de água mesmo assim. Alguma coisa nele sendo tão estupidamente atencioso me deixava com raiva. Eu sempre me sentia assim quando precisava de ajuda de alguém em qualquer circunstância, um tipo de vulnerabilidade disfarçada de ódio, que se tornava particularmente intensa quando se tratava de Eros.

As atitudes dele me deixam genuinamente confuso, e eu não conseguia decifrar se ele realmente me odiava e só tem pena de mim, ou se genuinamente me via como alguém que ele gosta de estar perto. Pensar na primeira opção me fazia querer gritar com ele, implorar para ficar longe de mim. Implorar para parar de me confundir.

—Temos que voltar — ele avisou. — Pro Instituto. Amanhã tem aula, ou seja, de volta à prisão de saídas controladas.

Já deveria estar tarde da noite. Num dia onde tudo estivesse funcionando normalmente, estaríamos ferrados. Alice disse que iria passar a semana longe do Instituto, mas que qualquer coisa nos avisava. Eros tentou puxar assunto comigo no caminho da volta, mas eu estava tão cansado, dolorido e triste que mal prestei atenção. Ele disse algo sobre a prova da classificação mensal ser em alguns dias e soltou uma piadinha, mas eu apenas acenei e fechei os olhos. Não tinha cabeça para prestar atenção em provas e nem para responder a provocações bobas de Eros.

Ele parecia estar intencionalmente tentando me animar, mas acabou que Eros calou a boca e desistiu, fechando a cara e cruzando os braços. Eu me senti meio mal por isso, mas deixei de lado.

Quando chegamos no Instituto, fiz tudo o que eu pude para me manter o mais confortável possível: tomei todos os remédios que precisava, tomei banho e tentei comer algo. Eu me conhecia o suficiente para saber que os próximos dias não seriam nada bons, então apenas juntei tudo que eu precisava e coloquei numa mesinha do lado da cama, e dormi pela primeira vez em mais de 24 horas.

Perdi completamente a noção de tempo, ou de qualquer outra coisa. Eu mal me lembrava de aplicar insulina ou de comer algo, nem de tomar os remédios, mas sabia que tinha o feito pelos resíduos de comida, comprimidos faltando e vidrinhos de insulina que estavam se acumulando pelo chão. Eu estava bem o suficiente para fazer essas coisas, mas confuso o suficiente para não me lembrar claramente delas.

Eu tinha uma regra: só ir ao hospital ou a enfermaria quando tinha algo iminente me deixando em perigo ou quando estiver com mais dor do que posso suportar sozinho. O que eram medidas questionáveis, eu sabia, mas esperar passar sozinho era mais eficiente do que viver mais tempo dentro de hospitais do que fora dele.

Meu braço havia parado de doer, mas meu coração continuava batendo de forma irregular, não importava quantos remédios que me deixavam zonzo e enjoado eu tomava. Eros tentou conversar comigo, perguntar se eu precisava de algo, ao que eu disse que eu precisava descansar, só isso. Tecnicamente, eu não estava mentindo. Só precisava descansar e esperar aquilo passar.

Além de tudo, eu estava extremamente triste. Meu corpo fodido não me deixava nem ficar de luto decentemente sem que todo o resto atacasse e eu precisasse me manter sedado. Quando acordado, ou eu estava desconfortável pela dor ou me sentindo culpado pela morte de Davi.

Eu sabia que, tecnicamente, não era minha culpa. Mas também sabia que, se eu tivesse impedido, se eu tivesse sucedido em fazer algo, talvez o tivesse encontrado vivo. Eu não era ingênuo o suficiente para acreditar, depois de tudo, que ele havia se matado. O que significava que, desde o início, eu estava certo sobre ter alguém ter feito algo com ele. Minha mente não parava de imaginar o período entre ele ter sumido e ter sido encontrado morto. A imagem de um Davi em algum lugar, esperando uma ajuda que nunca chegou, me fazia pensar o que poderia ter acontecido se as situações fossem diferentes. Se tivéssemos tipo apoio da polícia ou se eu não fosse tão incompetente.

Eu gostava de pensar que eu era uma pessoa bondosa. Mas, ao mesmo tempo, todas as vezes que eu lembrava do fato de que alguém tinha potencialmente matado uma pessoa que eu gostava, e saído impune, a palavra "vingança" passava pela minha mente.

No dia da prova, ouvi Eros me chamando, tentando me acordar. Abri os olhos, confuso.

—A gente tem prova hoje. Você vai? — perguntou, baixo. Balancei a cabeça negativamente. Eu definitivamente não conseguiria me recompor o suficiente para fazer aquela prova. — Imaginei. Só queria ter certeza. Diana me perguntou de você.

—Fala que eu tô bem — murmurei.

—Então... mentir?

—Não é mentira, eu tô bem.

Eu nem precisava estar de óculos para saber que Eros estava me julgando com o olhar.

Ele bufou e saiu, e eu tentei pegar o celular para me distrair.

Toda vez que eu me mexia de posição, sentia uma pontada como se meu coração estivesse sendo literalmente apertado. Na hora do desespero, resolvi fazer algo que odeio: ligar para alguém.

Mexi entre os contatos, mais ciente do que nunca de que eu não tinha muitas pessoas nesse mundo que pudesse ligar em momentos de desespero. Considerei ligar para minha mãe, mas sabia que o máximo que eu iria ouvir era um "deixa de drama" ou "estou ocupada".

Então liguei para Ana, minha madrasta.

—Yan? Fazem meses que você não me liga. Esqueceu que tem mãe?

Ela se auto intitulava minha mãe, às vezes. Eu não a chamava assim, mas ela sabia que eu não me importava, e até meio que gostava, quando ela falava algo do tipo. Era algo como uma demonstração de carinho.

—Oi — murmurei, a voz tremendo.

Pensei: "por favor, não chora", enquanto sentia um nó se formando na minha garganta.

—O que aconteceu? — ela perguntou.

Eu fiquei em silêncio por alguns segundos.

—Não é nada. Deixa pra lá. Vou desligar.

—Ei, ei! Espera! — interrompeu, antes que eu desligasse. — Você tá no Instituto?

—Sim.

—Tá no seu horário de aula. Não foi hoje?

—Não.

—E você tá bem?

Respirei fundo, cedendo.

—Não.

Ana me conhecia bem o suficiente para saber que eu precisava estar muito desesperado para admitir que eu não estava bem.

—Yan, você quer vir pra casa, querido? Eu posso te buscar aí de carro.

Comecei a chorar, desejando que ir pra casa não fosse uma experiência tão ruim. A gentileza de Ana não compensava o resto.

—Não. Obrigado.

Ela continuou tentando me fazer falar exatamente o que eu tinha, ou tentando descobrir o que ela poderia fazer para ajudar.

—Ana, eu vou me resolver aqui, tá tudo bem — falei, quando me acalmei um pouco. — Acho que só precisava ouvir sua voz.

Minutos depois que desliguei, Eros entrou no quarto, com o rosto cansado de quem tinha acabado de fazer prova.

—Se eu ficar em primeiro lugar só porque você não fez a prova, eu vou ficar bastante decepcionado — falou, sentando na própria cama e soltando o cabelo.

—Pensei que você fosse ficar feliz — murmurei, tentando me virar para o olhar direito, o que fez com que uma pontada me atingisse, e eu me encolhi. Naquele ponto, eu estava tão exausto que apenas voltei a chorar novamente, sem conseguir respirar direito.

—Zero? — chamou, cuidadosamente chegando perto — Da última vez que eu perguntei se você tava bem e você me disse que sim, eu te encontrei no outro dia desmaiado no banheiro. Vou perguntar dessa vez, mas se você disser que sim e depois desmaiar ou algo do tipo, eu vou ficar muito puto. Você tá bem? Quer que eu te leve até a enfermaria?

Balancei a cabeça positivamente.

—Quero.

Eros me empurrou na cadeira até lá, e eu cobri o resto tentando ignorar a tontura e a sensação de que todos estavam me olhando. A estrutura da enfermaria do IN era severamente limitada, então acabou que a enfermeira apenas me medicou o suficiente para que eu aguentasse até irmos a um hospital de verdade, que, felizmente, ficava apenas alguns minutos de lá.

Não me lembro do caminho, só me lembro de acordar numa cama de hospital, com Eros sentado do meu lado lendo um livro. A dor finalmente havia passado, depois de longos dias, e eu me senti infinitamente aliviado. Mas também estava confuso e muito cansado.

Eros levantou o olhar, percebendo que eu estava o observando.

—Oi — falou. — Finalmente, você acordou. Eu tava ficando entediado — brincou.

Aquela sensação de raiva voltou a surgir. Eu queria me sentir grato, eu juro que queria. Mas a única coisa que eu conseguia sentir era que ele estava se forçando a ser legal comigo porque estava com pena. Que ele provavelmente me odiava tanto quanto antes.

—O que você tá fazendo aqui? — perguntei.

—O que era pra eu fazer? Te jogar na enfermaria e te deixar lá sozinho? Que tipo de monstro você acha que eu sou? — perguntou, sorrindo.

—Bom, você pode ir embora agora — murmurei, desviando o olhar.

Eros parecia... decepcionado?

—Ah, tá bom. Mas, se quiser companhia, ainda tenho metade desse livro para ler... — falou, apontando o exemplar do que eu reconheci ser Anne Frank.

—Não precisa. Só vai embora — respondi, seco.

Eu me senti um idiota no momento que as palavras saíram da minha boca. Eu sabia que estava sendo desnecessariamente rude, e que ele não tinha feito nada de errado naquele momento especificamente. Não entendia muito bem a vontade absurda que eu tinha de afastar ele, mas eu só queria ficar sozinho.

—Você realmente me odeia tanto assim, hein? — Eros murmurou, um tom de voz quase triste. — Não precisa responder. Eu tô indo.

No momento que ele saiu pela porta, eu estava finalmente sozinho, como queria. E aí não quis mais estar sozinho.

Durante o resto do dia, eu ficando mais acordado e menos enjoado conforme a dor passava e a quantidade de remédios diminuía. Uma das enfermeiras entrou pela porta, segurando uma pequena pilha de roupas dobradas.

—Seu amigo passou pra deixar isso — ela avisou. — São suas roupas pra quando você tiver alta.

—Que amigo? — perguntei, esperando que fosse Eros.

Ela se esforçou para lembrar algo.

—Não me lembro do nome. Um alto, loiro, cabelo grande.

—Ele já foi embora?

—Não sei.

—Você pode ver se ele ainda tá aqui?

Ela assentiu, e saiu. Eu não sabia bem porquê eu estava me sentindo mal em ter sido meio babaca com Eros, ele havia sido babaca comigo diversas vezes antes, e vice-versa. Mas, ao mesmo tempo, pelo menos dessa vez, ele não mereceu.

Alguns minutos depois, Eros entrou no quarto, de uniforme, cara fechada e nariz empinado. Se posicionou do lado da porta e cruzou os braços.

—O que foi? Vai reclamar comigo de novo? Eu só vim aqui deixar suas coisas porquê me pediram pra fazer isso, não é como se...

—Não — interrompi, antes que ele continuasse. — Eu queria pedir desculpas. Por mais cedo.

Ele descruzou os braços devagar, abaixando a guarda. Sua expressão fechada foi se desfazendo aos poucos, dando lugar a uma leve confusão.

Apontei para a cadeira vazia encostada na parede, do lado da cama.

—Você tem aula agora ou...? — falei.

Relutante, Eros foi até lá e sentou, ainda chateado.

Eu não era bom com sinceridade. Ou com falar as coisas em voz alta. Mas resolvi tentar.

—Eu queria ficar sozinho mais cedo, mas eu não deveria... não deveria ter te expulsado daquele jeito. Desculpa — murmurei, embolando as palavras.

Eu esperava que ele respondesse algo na defensiva, ou irritado, ou qualquer uma dessas coisas típicas de Eros.

Mas ele abaixou o olhar, suspirou e disse:

—Eu não entendo. Eu sei que tenho sido um idiota com você por muito tempo. Mas, ultimamente, todas as vezes que eu tento ser seu amigo, você me afasta.

—Você tava tentando ser meu amigo? — perguntei, genuinamente me dando conta do fato. — Eu só achei que... sei lá. Uma hora, você me odeia. E aí depois não odeia mais. Você não pode agir como um babaca e depois como a pessoa mais legal do mundo e esperar que eu não fique confuso.

—Pra ser justo, você faz a mesma coisa — respondeu, e eu abri um sorriso culpado.

Eu não era bom com fazer amizades, de nenhuma forma. Mas fazer amizade com alguém a quem nutri raiva por tanto tempo era especialmente confuso. Eu não odiava Eros, não mais. Nossas provocações meio que me faziam rir, e eu gostava de ter a companhia dele, mesmo que fosse para me meter em encrenca. Mas algo em mim ainda apertava o botão de alerta quando eu estava perto dele.

Eros se ajeitou na cadeira, e abriu a boca para falar algo, mas desistiu.

—Posso ser sincero com você, Zero? — falou, desconfortável, como se já estivesse se arrependendo. Dei de ombros e esperei ele continuar. — Você sempre foi alguém que eu usava pra me comparar e me colocar pra baixo — disse, arrastando as palavras. —Você sempre é o primeiro lugar nas provas, todo mundo fala o quanto você é um ótimo aluno, e inteligente, gentil, você participa de vários projetos, monitorias, e eu... sei lá... Eu sempre me senti insuficiente. Pelo menos as pessoas achavam que eu era um gênio da arte atormentado ou algo do tipo— disse, e deu uma risada amarga. — Mas, depois que você chegou, elas tinham outra pessoa pra admirar. E não ajudava nada você ser diretamente comparado comigo nas notas da Classificação. Era um escape conveniente pensar que você, no fundo, era tão babaca quanto eu. Você não é. Você é tão ridiculamente bondoso e inteligente quanto falam que você é. E eu meio que me arrependo de ter avançado essas conclusões antes de te conhecer de verdade.

Eros deu uma risada constrangida, e se apoiou nas costas da cadeira, olhando para o teto e murmurando:

—Uau, eu tô arrependido pra caralho de ter dito tudo isso e prestes a sair correndo.

Eu soltei uma risada baixa, ainda tentando absorver o que ele tinha dito. Aquela era uma dose absurda de honestidade para a qual eu não tinha sido preparado, mas que eu definitivamente gostava.

Eu estava tentando achar as palavras certas para me expressar que não fossem "eu te acho legal também, desculpa por ser extremamente inseguro e acabar te afastando não intencionalmente", mas eu não bom com palavras como Eros era.

Acabei dizendo:

—Tá tudo bem. Nós dois vacilamos um com o outro. O tempo todo, por muito tempo. Apesar disso, de uns tempos pra cá, não tem sido de todo ruim ter você por perto.

Eros abriu um sorriso levemente convencido, indicando que o momento de vulnerabilidade havia acabado, mas seu rosto ainda parecia gentil.

—Bom. Porque pretendo ficar por perto sempre que puder pra encher seu saco até você perder a paciência comigo — concluiu, e deu uma piscadinha.

Eu poderia jurar que ele fazia de propósito para me deixar constrangido.

—Então você me acha inteligente, hein? — rebati, rindo, ao que ele me olhou, surpreso.

—Não, não! Que audácia. Você não tem direito de usar algo que eu falei desabafando contra mim — falou, soltando uma risada.

Eros passou o resto da tarde lá comigo. Eu costumava ficar extremamente entediado e solitário quando precisava passar algum tempo no hospital. Mas aquele dia foi o oposto de solitário. Algo em ter alguém ali para rir comigo, e me distrair, mesmo que fosse alguém potencialmente irritante, foi o suficiente para que uma pontada de esperança surgisse em mim em relação ao futuro. Eu estava assustado, culpado e triste.

Mas, pela primeira vez em muito tempo, fiquei feliz em não estar sozinho.


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