A Ilusão da Realidade escrita por Kisara


Capítulo 31
Para Bem Longe




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Não, não, não, não, não, não, não, não! Ah, não! Com tantas pessoas naquela festa, isso tinha que acontecer logo na frente de Alexander? Agora que ele ia me odiar de verdade, e com razão. Aquilo foi nojento. Por que eu sempre estragava tudo?

— Você está passando mal — ele falou outra vez.

— Desculpa. Desculpa, desculpa mesmo. Ah, não, que droga, o seu tênis está sujo?

— Eu consegui desviar. Tá tudo bem.

Eu ainda não conseguia encará-lo, então olhei para o chão. Qual era a coisa certa a se dizer numa situação daquelas?

— Você está bem? Precisa de ajuda?

Aquelas eram as últimas palavras que eu esperava ouvir de Alex. Eu realmente estava esperando que ele fosse reclamar— ou talvez fosse Roy sussurrando bobagens na minha cabeça e brincando com os meus medos. Bom, se ele fizesse isso, eu não o culparia. Eu tinha acabado de vomitar bem na frente dele, e não foi pior ainda por muito pouco.

Essa noite não tinha como ficar ainda pior. Eu não aguentava mais.

—  Preciso sair daqui — respondi sem pensar. — Eu preciso sair daqui. Por favor, me tira daqui.

Eu não me importava se estava repetindo, e depois eu pediria desculpas pelo trabalho que estava dando. Naquele momento, eu só queria sair de perto daquelas pessoas e das vozes que ainda vinham lá de dentro da casa.

— Vem. Eu te acompanho até a saída.

Para minha surpresa, Alex não pareceu se incomodar, nem fez objeções. Ele deu um pequeno passo, olhou para mim e fez sinal para que eu o seguisse. Meus passos eram arrastados e pesados, e eu ainda estava um pouco tonta, mas segui sem dizer nada e nem fazer perguntas. Saber que eu logo estaria longe daquelas pessoas me dava forças para continuar de pé.

Acompanhei Alex até virarmos para a parte da frente da casa e eu reconheci a entrada. Estava ali perto esse tempo todo. Eu era mesmo uma idiota.

Continuei seguindo quando Alex saiu na direção da rua. O ar ficou mais leve quando pisei na calçada, porém Alex continuou andando a passos rápidos que quebravam o ar gélido da noite com o som seco que faziam. Eu apenas segui sem fazer perguntas. Ele levou a mão direita ao bolso para procurar alguma coisa e, logo em seguida, ouvi o ‘bip bip’ alto de um alarme de carro.

— Você precisa de água, vai te ajudar. Eu tenho uma garrafa aqui em algum lugar…

Por que ele sempre estava no lugar certo, na hora certa e com uma garrafa d’água para a minha salvação exatamente quando eu precisava?

Alex se sentou no banco do motorista e começou a procurar com a ajuda da luz interior do carro. Ele abriu o porta-luvas e uma chuva de papeis amassados desabou sobre o outro banco.

— Merda! Desculpa por isso. Acho que tá aqui…

Ele colocou a mão debaixo do banco da bagunça, puxou uma garrafa de água mineral e entregou para mim

— O-o…

A minha voz já estava falhando. A minha garganta doía, e isso também atrapalhava, mas eu não podia colocar a culpa da minha ansiedade só nela. Eu não ia cometer o mesmo erro outra vez. Eu tinha que falar o que estava sentindo.

— Obrigada — falei sem pensar, sem respirar, sem parar. — E não só isso. Digo, por hoje. Pela outra vez, também. Obrigada, de novo.

Eu ouvia as minhas pausas e a minha voz robótica — a dor na minha garganta não ajudava em nada mesmo. Foi horrível. Ainda assim, eu me sentia mais leve por ter finalmente dito aquelas palavras. Alex me observou por um instante e, talvez fosse coisa da minha cabeça, mas ele também me pareceu perder a respiração por um instante. Será que eu o peguei de surpresa? Bom, se o meu agradecimento era tão surpreendente assim, pelo menos ele não ia mais achar que eu era uma ingrata.

Abri a água e bebi da garrafa mesmo. Eu precisava tirar aquele gosto da boca, não dava para esperar mais.

— Você ainda está pensando naquilo?

Aquela pergunta veio tão do nada que eu quase engasguei e por pouco não jorrei a água que estava tomando pelo nariz. Isso era tão estranho assim?

— Você não está?

— Não sei, eu deveria?

Eu não conseguia entender o raciocínio dele, nem aquela conversa. Não estávamos chegando a lugar algum.

— Desculpa — respondi por reflexo e fiz uma pausa. Eu precisava respirar. — É que você me ajudou bastante naquele dia. E agora. Acho que eu não consigo entender o porquê.

O que eu não disse era que eu sabia que ele provavelmente não ia muito com a minha cara. Aquela primeira conversa que nós tivemos ainda estava gravada na minha mente e, bem, eu também não ia gostar muito de alguém que vive me derrubando e me dando trabalho. Eu conseguia entender isso sem problemas, sem ressentimentos.

Alex continuou me encarando com a sobrancelha arqueada. Eu provavelmente não era a única que não estava entendendo muito bem o que estava acontecendo ali.

— Olha, eu não sei do que você está falando. Você estava bem nervosa naquele dia, e o que eles fizeram hoje… sei lá, precisa de motivo? Eu nunca pensei nisso.

Eu também não sabia o que pensar, muito menos o que dizer. Continuar bebendo água me pareceu ser a melhor forma de evitar aquela conversa, então eu fiz isso sem pressa alguma.

Alex continuou sentado no banco do motorista, as pernas para fora do carro, uma mão apoiada no volante e os olhos foçados no painel. Talvez fosse impressão minha, mas ele também parecia não saber o que fazer.

De repente, ele se virou para mim e perguntou:

— Você precisa de mais alguma coisa? Quer que eu te deixe em casa?

Foi só quando ele falou aquilo que eu me dei conta de que ele estava dirigindo aquele carro. Será que era dele? Talvez de um irmão, ou de alguém da família? Ir embora para bem longe dali não era uma má ideia, mas…

— Você está bem para dirigir?

— Ah, é, verdade! — Alex balançou a cabeça. — Eu não bebi nada, você não precisa se preocupar. E eu tenho habilitação. Você quer ver?

— Não, não precisa.

Alex era tão direto que me deixava sem reação. Normalmente, isso me intimidava; naquele momento, eu me sentia grata porque estava facilitando tudo.

— Me leva para longe daqui, por favor — pedi sem hesitar. — Eu preciso sumir desse lugar. Preciso ir para longe deles.

Aquelas vozes, aqueles xingamentos ainda ecoavam na minha cabeça. Eu não conseguia acreditar que tinha sido tão burra e caído no plano delas direitinho feito a boba que eu era. O pior de tudo é que eu nem tinha percebido que tinha apostado tanto nessa chance. Eu achei que estava atenta o suficiente e que tinha aprendido a manter o pé no chão, e as coisas simplesmente foram acontecendo. Eu me deixei levar e não percebi, e a minha recompensa foi a maior humilhação da minha vida.

Por que quem eu gostava ou deixava de gostar importava tanto? Que diferença fazia? Ou será que havia mais algo de errado comigo que eu mesma nem sabia ainda?

— Para onde você quer ir?

A voz de Alex me fez voltar para o presente. Era mais uma pergunta simples e direta, e eu não fazia a mínima ideia de como responder.

— Longe. Para bem longe.

Ele assentiu em silêncio e apontou para o banco do passageiro. Eu me sentei, coloquei o cinto e deixei o meu corpo ficar ali apoiado no estofamento sem me mexer. A garrafa ainda estava nas minhas mãos. Por algum motivo, me segurar a alguma coisa fazia com que eu me sentisse protegida.

Alex fechou a porta e ligou o carro. Eu não sabia para que direção ele tinha decidido nos levar e não me importava nem um pouco com isso.

***

Eu pensei que aquilo tinha acabado. Eu pensei que as piadas, os comentários, as fofocas idiotas e os boatos eram coisa do passado. Pelo jeito, essa era só mais uma das milhares de vezes que eu tinha me enganado.

Por que isso importava tanto? Será que nunca iam me deixar em paz? Já não tinham me atormentado o bastante, já não tinham tirado a paz de Maya para sempre? O que mais queriam de mim? Quando isso ia acabar? Será que eu nunca ia poder me sentir como se pudesse ser mais alguém entre os outros ao meu redor? Por que essa ideia me parecia tão estranha, tão errada? Só de pensar nisso, eu me sentia como se estivesse planejando matar alguém ou roubar um banco. O que tinha de errado comigo? Como eu ia conseguir entender se nem sabia como me sentia?

Eu amava Maya. Não, eu sempre vou amá-la. Ela não estar mais aqui não mudaria isso, nunca, nem por um segundo. As fofocas sobre nós sermos “próximas demais” se espalharam rápido e eu nunca entendi o porquê. Ela nunca se afastou de mim, nunca me fez perguntas, nunca me julgou, nunca me tratou de outro jeito, mas agora eu sabia que a forma como falavam de nós duas e as coisas que eles nos chamavam a afetavam mais do que ela me deixou perceber. Eu devia ter percebido. Talvez ela ainda estivesse aqui se eu tivesse entendido a tempo.

E eu… eu nunca tive tempo nem de entender o que eu sentia. E isso não importava agora. Era o que menos importava nisso tudo. Se o resultado tinha que ser esse, eu abriria mão de qualquer coisa e qualquer sentimento para que Maya não tivesse que sentir tanta dor. Talvez isso poderia ter mudado tudo, feito toda a diferença. Só que eu não vi a tempo, e agora era tarde demais.

A garrafa escapou das minhas mãos. Puxei o celular e olhei a hora — duas e quinze da manhã — porque pelo menos assim eu tinha uma desculpa para continuar segurando alguma coisa. Não havia nenhuma mensagem, ligação, notificação, absolutamente nada. Eu não tinha sido descoberta, só que isso era o que menos me importava. Eu realmente não devia ter saído de casa. Eu devia ter ouvido a minha mãe. Sempre que eu ignorava os avisos dela, alguma coisa horrível acontecia. Sempre, sem falhar.

Algo pingou na tela do meu telefone. Eu não tinha percebido, mas, em algum momento, comecei a chorar. Na verdade, as lágrimas escorriam sem que eu tivesse controle algum sobre isso. Logo na frente de Alex, e depois daquela cena toda. Eu tentei não fazer barulho e nem suspirar alto, mas era difícil quando aquilo estava entalado na minha garganta há tanto tempo. Por que eu sempre chorava nos piores momentos possíveis?

— Você quer alguma coisa? Mais água? Eu também tenho um carregador no porta luvas. E… bom, pode ter mais alguma coisa, se você precisar.

Alex não tirou os olhos da estrada em momento algum. Olhando por um instante, só então eu me dei conta de que ele estava vestido do mesmo jeito que na festa da minha irmã: jeans surrado, cinto de spikes, luvas de couro (devidamente removidas e deixadas de lado enquanto ele estava na direção) e uma camiseta de outra banda que eu não conseguia reconhecer no escuro. Talvez houvesse outros acessórios, mas eu não conseguia ver direito de onde estava e não queria olhar demais. Na verdade, ainda era estranho saber que era assim que ele se expressava quando não estava de uniforme. Eu nunca teria imaginado se não o tivesse visto assim antes.

Abri o porta luvas outra vez e, entra a bagunça, encontrei um pacote fechado de lenços de papel. Por mais que eu não estivesse nada feliz com aquela situação, limpar o rosto não era uma má ideia.

— Obrigada.

Alex voltou a prestar atenção apenas na estrada à sua frente, os olhos fixos e concentrados sem mover nem um milímetro do caminho. Pela primeira vez na minha vida, eu não odiei o silêncio que me cercava, que pairava entre nós dentro daquele carro. Não era pesado, nem constrangedor. Alex me dizia muito mais do que eu esperava dele mesmo com poucas palavras e eu gostava disso. Às vezes, eu quase me sentia compreendida pela primeira vez em muito tempo.


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