— Nossa, a Lívia tá passando vergonha lá embaixo — Ariane riu do próprio comentário e bebeu mais um pouco. — Acha que tá arrasando mostrando tudo com aquela saia, dá até pena.

— Não sei qual é a novidade, Ari. — O tom monótono de Olívia foi contrastado por mais um riso vindo de Ariane. — Seria estranho se ela não aparecesse numa festa minha com cara de quem comprou roupas três números menores do que deveria.

Ariane e Olívia comentavam várias coisas sobre as pessoas da festa, só que eu não conseguia acompanhar direito. Além de eu não saber quem eram aquelas pessoas muito bem, ou se eram de alguma outra turma, minha atenção estava voltada ao copo na minha mão e aos goles que eu tentava engolir. A bebida era amarga e forte, a minha cabeça ficou mais leve logo no começo e eu precisei me encostar contra a pia para não ficar muito tonta. Eu nunca tinha bebido antes e começar logo com um uísque provavelmente não era uma boa ideia; pelo menos, era essa a impressão que eu tive com todos os filmes e séries que já vi. Mas que outra opção eu tinha?

Mesmo depois de algum tempo e vários goles, eu ainda levava o copo à boca com calma e puxava só um pouco do líquido. Tinha que ser bem pouco. Bem pouco mesmo. Fiz isso por um bom tempo e torci em silêncio para que Ariane e Olívia, que continuavam a rir alto e falar rápido, não notassem. Eu não queria voltar a ser motivo de piada.

— Ah, Olívia, você tem que ver é a Emily dançando e se esfregando naquele cara. — Quase me afoguei com a minha bebida quando ouvi o comentário. Eu não esperava ouvir o nome de Emily assim, de repente e sem aviso. Será que o cara era Daniel? — Parece até que já estão se comendo lá no meio de todo mundo mesmo. Ela não perde tempo, hein?

— Tá aí mais uma coisa que tá longe de ser novidade! — O comentário de Olívia foi seguido por mais uma risada. — Festa sem a Emily se oferecendo no meio de todo mundo não é festa!

Será que elas estavam falando sobre Emily de propósito? Não… eu não queria deixar os meus pensamentos seguirem por aquele caminho. Não pensar muito, não era mesmo? Por via das dúvidas, preferi me manter em silêncio e continuei bebendo do meu copo.

— Aliás, desculpa, eu não consegui pegar gelo. — Ainda entre risadas, Ariane se explicou sem que ninguém perguntasse. — Tinha muita gente lá embaixo e eu não queria chamar atenção com a garrafa. Imagina se todo mundo fosse querer?

— Bom, para mim, não tem problema — Olívia respondeu e me olhou de relance. — Mas acho que a Lissa não tá muito acostumada, né?

Droga. Elas já perceberam. Até que estava demorando… eu não conseguia mesmo fingir direito.

— Não tem problema, vai com calma — ela continuou. — Vai, depois fica mais fácil. Você precisa relaxar um pouco.

Bebi mais um gole sem responder porque, por mais que eu detestasse admitir, Olívia tinha razão. Tentei não prestar atenção no gosto e nem no líquido que estava na minha boca, porém ele me queimou por dentro por inteiro e chegou como uma bola de fogo no meu estômago. Eu não conseguia entender como as pessoas se acostumavam com algo assim.

Roy balançou a cabeça com desaprovação e eu me forcei a lembrar mais uma vez: não pensar demais. Não era hora para pensar demais.

***

Meu corpo nunca foi tão leve antes. Quanto tempo tinha passado? Elas continuavam conversando com animação entre si, falando sobre pessoas que eu não conhecia e fazendo comentários que eu não conseguia acompanhar, enquanto eu ainda não sabia o que fazer. Tentei me concentrar em beber do meu copo e, aliás, quantos já tinham ido, mesmo? Três? Quatro? Eu não aguentava mais e não queria que elas percebessem isso, então fiquei quieta no meu canto até que Olívia voltou a falar comigo:

— Lissa, já que hoje você está se divertindo aqui com a gente… será que eu posso te fazer uma pergunta?

Sua voz era séria — talvez aquela fosse a única vez que eu já a tinha visto falar tão sério, sem desviar os olhos de mim e sem nem sequer mostrar algum traço de sorriso em seu rosto. Aquela imagem era um tanto intimidante. Eu encolhi os ombros antes de responder.

— Si-sim, claro.

Como eu poderia dizer outra coisa naquela situação? Eu respirei fundo e bebi mais uma vez para me preparar. Será que ela tinha notado algum dos meus hábitos estranhos? Será que ela sabia algo sobre os meus melhores amigos? Será que já tinha alguma coisa que eu estava fazendo errado? Ou então algo que eu não sabia?

— Bom, Lissa… — Os olhos de Olívia não se desviaram dos meus. — É que a gente queria saber daquela sua amiga, sabe. Aquela menina que morreu ano passado.

Aquelas palavras me acertaram como um tapa na cara. Eu não esperava que elas fossem falar sobre isso, ou se referir à Maya daquele jeito. Era isso que ela tinha passado a significar para os outros? Agora, ela era só “a menina que morreu?”

— Nossa, uma pena o que aconteceu com ela, né? Imagina só, ela tinha a nossa idade e sofreu um acidente daquele… não gosto nem de pensar se fosse comigo…

A voz de Ariane interrompeu os meus pensamentos e, pela primeira vez, eu me senti grata por ouvi-la. Eu não queria continuar aquele raciocínio.

— Pois é, é triste demais… mas, Ari, essas coisas acontecem, infelizmente… acho que não vai ter nenhum outro acidente grave assim, né? Pensa bem… quais são as chances? Enfim… — Olívia voltou a me encarar de repente. — Vocês eram bem próximas, não eram, Lissa?

Eu não sabia dizer se era a pergunta ou o álcool, mas a minha cabeça dava voltas. As duas me olhavam e esperavam por uma resposta como se aquilo fosse um interrogatório. Olívia riu para si mesma, o que fez com que Ariane também começasse a rir enquanto eu não entendia qual era a graça. Algo me dizia que aquela conversa estava começando a ficar mais estranha do que nunca.

Não pensar demais…

A risada de Roy também ecoou na minha cabeça. Bebi mais um pouco do meu copo e falei a primeira coisa que me veio à mente, sem pensar mais do que isso:

— Ela foi a primeira amiga que eu fiz aqui — respondi com mais um gole. — E eu nunca vou esquecer disso.

— Então vocês eram… digamos assim… muito íntimas? 

A pergunta de Ariane foi de arranhar os ouvidos. Eu sentia que havia curiosidade em sua voz, mas aquilo não era algo que eu queria falar para elas. Talvez eu não estivesse pronta para falar ainda, ponto. Ainda mais para duas pessoas que eu mal conhecia.

Aquelas perguntas e fofocas já tinham causado estrago demais e precisavam ficar no passado. E eu precisava parar de pensar tanto.

— Olha, gente… desculpa, mas eu não quero pensar nisso hoje. Eu quero é me divertir.

Fazer aquilo nunca foi tão fácil. E assim, de repente, por mais que eu tivesse medo de alguma repreensão, Olívia e Ariane estavam rindo. Toda a tensão que estava se formando ao meu redor desapareceu em um segundo, e só restou o riso de Roy.

— Boa, Mel! Você já conseguiu! Elas já estão rindo de você!

Eu “vi” ele jogar os cabelos para trás e se encostar contra uma parede, e então logo balancei a cabeça para afastar aquela imagem mental. As provocações de Roy não iam me contaminar hoje. Na verdade, dizer que eu não queria falar sobre aquilo foi mais fácil do que eu pensava e foi libertador. Do que eu estava com tanto medo? Por que o que elas pensavam importava tanto? Isso parecia tão pequeno agora que eu sentia até vontade de rir do quanto eu tinha sido idiota.

Não, não só vontade. Quando eu me dei conta, estava rindo com Olívia e Ariane como se tivéssemos ouvido a piada mais engraçada do mundo. Eu não sabia do que estava rindo, ou por quê, e isso não importava. Eu gostava de me sentir solta, de sentir a cabeça tão leve daquele jeito.

Pela primeira vez em muito tempo, eu só me deixei continuar e ri até o meu maxilar doer. Oliva e Ariane já tinham parado e, ainda assim, eu não me importei dessa vez.

— Aí, Lissa, você tem razão! — Olívia finalmente retomou a conversa. — Vamos nos divertir! Vem cá, o Jonas tá esperando para te conhecer esse tempo todo!

E simples assim, sem que eu tivesse tempo de entender o que estava prestes a acontecer, Olívia me puxou pela mão e tentou sair rápido, mas o meu corpo estava estranho demais. Eu simplesmente não consegui acompanhar, meu pé não alcançou o chão e eu caí com tudo sem saber como.

— Lissa!

— Melissa!

Senti as duas me segurando pelo braço e tentando me ajudar a levantar, mas era difícil acompanhar os movimentos. O mundo ao meu redor parecia estar em câmera lenta e as minhas pernas simplesmente não estavam me acompanhando como eu queria. Era uma sensação estranha, diferente de tudo que eu já tinha sentido e, por algum motivo que eu não conseguia explicar, tudo aquilo era muito engraçado. Eu comecei a rir de novo mesmo sem nem perceber.

— Você está bem, Lissa? — Olívia me perguntou. — Machucou?

— Tá doendo? — Ariane acompanhou a preocupação.

— Não, não se preocupem. — Eu ri mais uma vez e me reergui com o apoio da pia. — Eu tô bem, só não tô acostumada.

As duas riram entre si mais uma vez e Olívia segurou a minha mão com firmeza. Dessa vez, ela começou a andar com calma.

— Viu como é bom deixar de ser tão certinha? — Vamos lá, vem aproveitar a festa!

Olha, pensando bem, quer saber? Olívia tinha razão. Eu estava começando a sentir o gosto da liberdade pela primeira vez e não queria parar ali. Eu não sabia até onde isso ia me levar, mas, pela primeira vez, o que eu mais queria naquele instante era descobrir o que estava por vir sem medos e sem culpas.