Nota de passagem escrita por Blue Butterfly


Capítulo 2
Capítulo 2




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II

A parte mais difícil do trabalho, Jane aprendeu há muito tempo, é o primeiro encontro com o paciente, especialmente com aqueles mais debilitados, aqueles cujas chances de recuperação são mínimas. É difícil porque todos eles se encontram no mesmo estado: num desespero silencioso expressado apenas pelo olhar, numa angústia justificável verbalizada em palavras baixas e desanimadas, e lá, bem no fundo do poço negro dos olhos... Esperança. Embrulhada em várias camadas de aflição e ofego, ela se manifesta da maneira mais urgente, covertida na maior parte das vezes em precipitação:

‘Eu vou recuperar todos meus movimentos?’ É sempre a primeira pergunta a ser ouvida.

A resposta é ‘isso é imprevisível’. Entretanto, Jane aprendeu também que nesse momento duas coisass são importantes: 1) não fazer promessas falsas para pacientes, e 2) não desmotivá-los a darem o melhor de si durante o tratamento, mesmo quando as estatísticas não são muito otimistas, porque, para ambos os casos, nunca se sabe.

As possibilidades são várias, mas são apenas isso: possibilidades. Porcetagens não se aplicam a todos os casos, e o corpo humano é uma máquina que ainda está sendo estudada e entendida. Quantas vezes Jane já leu sobre pessoas com cancer terminal que se recuperaram depois de insistir em tratamentos? Ou, quantas outras vezes ela soube de cirurgias simples que levaram pacientes ao óbito?

Ao certo, nunca se sabe.

 No meio termo, então, ela também precisou aprender a ser política. Então, quando Maura Isles, sua nova paciente, lhe pergunta se irá recuperar seus movimentos por completo, ela trabalha o roteiro que há tanto vem ensaiando.

‘Senhorita Isles...’ Ela começa, arrumando o arquivo da paciente nos braços, ‘vamos aos fatos?’ Sua mão percorre a pasta e ela encara as imagens do raio-x, agora diminuta em uma única folha de fotografia impressa, e diz com cuidado. ‘Você tem uma lesão na coluna lombrar, no nervo L5. Não há nenhuma fratura em si na coluna, o que é, dentro dessa situação, uma notícia boa. Certo?’ A mulher se vira para a médica ortopedista que acompanha a primeira consulta da paciente. Ambas estão ali para analisar o caso juntas, e discutir o plano de ação com a paciente. Depois de receber um meneio de cabeça, ela continua. ‘Bem... Também sabemos que você tem uma fratura estável no quadril, lado direito. Você sabe o que isso significa?’ Seus olhos negros encontram os olhos da mulher, e ela se dá conta de que são verdes da cor do oceano, com um leve caramelo adicionado perto da pupila, como se fosse deliberadamente colocado ali.

Ela parece um tanto incerta. ‘Me disseram que é uma fratura, mas que o osso não se separou, necessariamente, por isso o melhor tratamento no momento é fisioterapia, não uma cirurgia.’

‘Exceto se seu quadril deslocar, mas nós vamos trabalhar para que isso não aconteça.’ Kira, a ortopedista, complementa o raciocínio da outra, apontando todos os ângulos da situação. ‘Assim, seu osso vai voltar a se fixar, sem precisar que seu corpo passe por outro trauma - o cirúrgico, no caso.’

Maura meneia a cabeça de leve, e depois de encarar as duas por um minuto, instiga. ‘E quanto os movimentos?’ Ela insiste, não satisfeita por não ter uma resposta assertiva.

Jane respira lentamente e diz com cuidado: ‘a ausência de fratura na coluna vertebral é um bom sinal. Você ter sentido os toques na perna também acrescenta algo de positivo. É difícil dizer com precisão os danos causados ao nervo, mas tudo é possível, senhorita Isles. Nós estamos muito otimistas.’

A mulher não parece muito satisfeita com a resposta, mas decide deixar assim por enquanto, e toma outro caminho. ‘Me chame de Maura, por favor. Quando começamos a fisioterapia?’

Kira coloca a mão no ombro de Jane e sorri. ‘Bem, a Rizzoli aqui vai conversar sobre horários e atividades com você. Ela é a tua responsável aqui dentro. É a melhor que temos, isso eu posso te garantir.’

 Jane revira os olhos, não em rebeldia, mas em modéstia. ‘Você pode me chamar de Jane. Já que vamos passar bastante tempo juntas, prefiro deixar as formalidades pra lá.’ Ela oferece um sorriso para a paciente, que o devolve, embora o mesmo não alcance os olhos.

Com um pedido de licença, Kira deixa o quarto, e então são somente as duas. Jane se sente um pouco mais relaxada agora que a ortopedista saiu - Kira é uma excelente profissional, sem dúvidas, mas é muito rígida quando se trata da relação paciente e médico, não abre espaço para qualquer envolvimento pessoal. Jane entende; nunca é uma boa idéia se envolver emocionalmente com pacientes, mas ela, que trata diretamente e diariamente com eles, acha por vezes difícil manter a conversa apenas sobre os exercícios que fazem juntos. Um pouco de risada e bom humor sempre lhe caiu bem, e torna as sessões fisioterápicas mais suportáveis para quem está se tratando.

‘Bem, Maura Isles...’ Ela começa, estralando os dedos. ‘Por que não começamos nossa avaliação inicial e seguimos daí?’

A mulher deitada na cama concorda com a cabeça, parecendo ansiosa e desanimada ao mesmo tempo. Aqui, na clínica, os pacientes são permitidos a usarem roupas confortáveis em vez de roupas de hospitais. Maura, Jane observa, veste um simples shorts preto de ginástica - fácil de colocar e tirar também - e uma simples camiseta azul clara, que destaca bem a cor dourada dos seus cabelos.

Nos pés da cama, a morena aponta e depois da permissão dada pelo olhar da mulher, começa uma sequência de exercícios leves e alternados, e depois faz o mesmo com a perna. Enquanto trabalha, em silêncio, Jane não consegue deixar a curiosidade de lado, lembrando-se de que na noite anterior Thomas tinha dito que Maura era uma paciente incomum, e que, mais tarde na conversa, se sentiu um tanto ridicularizada por não saber quem ela era. Verdade seja dita, é bem possível que Maura seja uma atriz ou algo do tipo - ela é indiscutivelmente linda, magra e um tanto pequena. Só que Jane Rizzoli não assiste TV, e pouco se importa com redes sociais ou plataformas de compatilhamento. O que é que esteja lá fora, no mundo da internet... é desconhecido à ela. Dessa forma, ela não saberia nem dizer qual o último seriado da moda, muito menos quem são os famosos que estão em baixo do holofote no momento.

Voltando a atenção ao que está fazendo, ela troca o lado esquerdo pelo direito, com um tanto a mais de cuidado. ‘Você sente alguma dor? Além do que provavelmente já estava sentindo.’ Ela pergunta enquanto exerce uma série de movimentos.

‘Esse lado é o que dói mais. A dor me parece a mesma.’ A outra murmura. Seus olhos piscando lentamente.

Ela parece tão cansada, Jane nota. E infeliz. E então...

‘Por que não consigo mexer minhas pernas?’ A voz, dessa vez, vem embargada de emoção. Ela solta uma ardafa de ar, provavelmente por fazer força para segurar lágrimas não derrubadas.

Ah, não. Não, não, não, não! Jane pensa. Ela odeio quando pacientes choram, simplesmente porque não pode consolá-los. Não pode devolver algo que lhes foi roubado. É incapaz de acabar com essa aflição com um estalar de dedos.

‘Ei, Maura...’ Ela solta a perna da outra com cuidado, e se dirige ao lado dela na cama. ‘Respira fundo, ok?’ Ela aguarda um minuto para a outra se recompor e então continua. ‘Há uma série de motivos pra isso tá acontecendo. Eu sei que você deve tá com medo, e tá ansiosa por não ter algumas respostas... Mas, como eu já disse, é um bom sinal você poder sentir os toques nas suas pernas. Seu corpo passou por um trauma grande, é a maneira dele reagir. Nós vamos trabalhar nisso.’

‘E recuperar o movimento?’ A outra pergunta, seus olhos verdes brilhando por causa de medo, ansiedade e lágrimas.

Jane se perde ali por um instante. Que armadilha mais bonita, pensa. Ela quase gagueja ao falar, perdendo a linha de raciocínio. ‘Você... nós! Nós vamos usar de todos os métodos para que isso aconteça.’

‘Eu realmente preciso das minhas pernas de volta, Jane.’ Ela devolve, e no fim da frase há um leve tom de súplica.

‘É melhor a gente trabalhar duro, então.’ Jane brinca, tentando quebrar a atmosfera carrega de tristeza. ‘Vou pegar pesado com você, todas as sessões. Você vai gostar tanto de mim nesses primeiros dias.’ Ela diz com um tanto de ironia, brincalhona, conseguindo arrancar uma risadinha da outra.

‘Você não faz promessas, não é mesmo?’ A loira pergunta, um tanto esperançosa, um tanto derrotada, já prevendo a resposta.

‘Não. Não faço.’ Jane diz honestamente. ‘Faço o melhor trabalho que posso fazer, e conto que meus pacientes também façam a parte deles. E daí, só então, eu espero pelos melhores resultados.’

‘Parece justo.’ Maura cede, apertando os dedos da mão num ato de nervosismo. ‘É só que não é muito confortável.’

‘Sei que não.’ Jane afirma. Agora que entende que Maura não se importa com sua posição, não recua no assunto. ‘Mas tudo é possível, não se esqueça.’

Maura meneia a cabeça. ‘Eu vou me apegar nas possibilidades boas.’

Jane sorri, e ergue uma sobrancelha levemente. ‘É geralmente assim que bons resultados aparecem.’ Ela pega a mão de Maura, e começa uma nova série de exercícios.

A loira franze o cenho, confusa. ‘Achei que você fosse só trabalhar na parte inferior do meu corpo.’

Jane faz um barulho de escárnio. ‘Você acha mesmo que vou fazer metade do meu trabalho? Ora, Maura Isles... Você não me conhece.’ Ela brinca e estala a língua, parecendo ofendida.

‘Não...’ Maura concorda, ela abre um sorriso cansado e tenta. ‘Por que não conta de você para mim?’

Jane ri baixinho e diz, ‘você mostra o seu, eu mostro o meu! É assim que funciona.’ Ela provoca, embora seja apenas por descontração.

Maura suspira e encara olhos negros como a noite de lua nova. ‘Eu toco piano. É o que mais gosto de fazer.’

A morena abre um sorriso, encara Maura por poucos segundos e dá de ombros. ‘Eu gosto de baseball. Nada muito chique, muito popular.’ Ela espera então que a loira ofereça outra informação, e a troca ocorre naturalmente, durante todo o processo de fisioterapia. A loira se mostra delicada e inteligente, e vez ou outra solta uma risada baixa quando a morena revela uma coisa muito absurda de si. No fim, depois de tantas coisas ditas entre as duas, é apenas horas depois, em casa, que Jane finalmente descobre quem Maura Isles é, e porque todo mundo na clínica de reabilitação parece conhecê-la.


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