Drania escrita por Capitain


Capítulo 54
Estalo


Notas iniciais do capítulo

nem dá pra chamar isso de atraso mais. desculpa mesmo.



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Nossos olhares se separaram. O mundo voltou a girar. Um transmorfo com marcas roxas? Eu nunca tinha ouvido falar disso. As marcas deviam ser azuis ou vermelhas. Sim ou não. Então porquê eu tinha a sensação de que já tinha visto marcas como aquelas?

De novo, havia algo profundamente familiar na postura do Arauto. No jeito que ele andava. Na forma como ele calmamente se posicionou em frente a Rasth, sem hesitação, sem nem mesmo erguer os punhos. Confiante. Calmo. Inabalável. O que era aquilo? O Arauto tinha o mesmo rosto que Caleb, mas seu porte físico era bem inferior. Ele estava ativamente usando seus poderes quando duelamos, então era possível que todos aqueles músculos fossem apenas parte do disfarce. O Arauto era Caleb? 

Esse é apenas um rosto, a voz de Zhar ressoou em minha cabeça. Um transmorfo pode ter qualquer um. Seria aquele seu rosto verdadeiro? com as marcas roxas, eu não tinha como saber. Tentei me lembrar de tudo o que tinha lido quando toquei Caleb em nosso duelo. Os detalhes estavam confusos. Rasth era pelo menos três vezes mais alto que ele, absurdamente mais forte. Sem magia, a vitória deveria estar fora de cogitação. Então porque ele parecia tão calmo? Rasth atacou.

Tudo o que ele precisou foi um soco. O Arauto ergueu as mãos para proteger o rosto, mas o impacto sobrepujou imediatamente, jogando seu corpo contra o chão, seus braços torcidos em ângulos estranhos, sua cabeça estalando ao fazer contato com o chão. Ele não emitiu nenhum som. Seus pulmões deviam estar vazios. Rasth riu.

— Não é grande coisa sem sua magia, hã? – ele debochou – eu esperei tanto tempo por esse dia!

O Arauto levantou devagar, cada movimento trazendo consigo estalos e rangidos, o som de seus ossos quebrados raspando uns contra os outros. Sem falar uma palavra, ele pôs-se em pé, ainda com a aparência de uma postura despreocupada, mesmo com ossos aparecendo em seu braço esquerdo.

O que era aquele estilo de luta? Eu sabia que ele não devia estar sentindo dor, mas mesmo assim era exagero. E ao mesmo tempo, era tão familiar... de certa forma, era a mesma coisa que eu havia feito na nossa disputa no ringue. Apostar na aparência...

— Sua maior vantagem é parecer fraca – Zhar dizia, com seu característico sorriso e expressão avoada – então não deixe que eles vejam como é forte logo de cara.

Rasth atacou novamente, seu punho imenso varando o ar com a velocidade de uma bala de canhão. O único som a ser ouvido após o impacto era o de ossos se despedaçando e carne sendo esmagada.

Faça-os acreditar, além de qualquer dúvida, faça com que saibam disso. Não deixe espaço para qualquer cogitação. Deixe de ser digna de respeito, depois de pena, e até de ter sua presença reconhecida.

O Arauto era agora pouco mais que uma massa de carne e robes roupas negras, e suas vias aéreas cheias de sangue produziam um gorgolejar quando ele arfava, mal respirando. Dessa vez ele caiu e não levantou. Por um segundo, Rasth hesitou.

— Já? – Rasth debochou – achei que vocês troca-peles fossem mais fortes!

Não pare! Eu pensei. Continue atacando!

Mas Rasth nada fez.

—Torne-se menos que uma mosca na parede...- Zhar dizia em minhas memórias, seu sorriso bobo se transformando em um pequeno sorriso debochado – E então, ataque.

Os sinais estavam todos lá, mas ninguém havia notado. Mesmo um humano normal ao menos conseguiria desviar de alguns dos golpes. E mesmo que fosse razoável esperar alguns ossos quebrados recebendo dois socos de alguém que tinha facilmente dez vezes o seu peso, a forma como o Arauto fora imediatamente obliterado fazia parecer que seus ossos eram feitos de vidro. Então eu vi. Escondido sob o sangue e a poeira, no rosto desfigurado do Arauto, havia um leve sorriso.

Merda.

— NÃO PARE DE ATACAR! – eu gritei, o mais alto que pude.

Mas já era tarde.

Em um piscar de olhos, o corpo no chão havia sumido. Rasth mal teve tempo apenas de erguer os punhos, antes do primeiro golpe. O som do impacto foi como uma explosão, acompanhada do som inconfundível de ossos quebrando, e seguida de silêncio.

O Arauto se encontrava em pé, de costas para Rasth, sua postura relaxada, ombros soltos, mãos abertas. Seus ossos voltavam lentamente aos seus lugares, estalando e rangendo conforme raspavam uns contra os outros. O som gorgolejante do sangue derramando pela sua garganta se transformou em uma risada, primitiva. Animalesca. Selvagem.

As exclamações de choque da multidão levaram os magos a sacudir a cabeça, em uma negativa categórica. Mesmo Aurora respondeu com um leve aceno. Não havia magia em uso. Aqueles eram apenas seus poderes naturais.

Uma nuvem de poeira levantou-se do chão quando o Arauto partiu para a ofensiva, numa velocidade sobre-humana, golpes atrás de golpes, direcionando seus ataques com precisão cirúrgica.

Rasth se viu recuando e recuando, mal tendo tempo de amarrar um pano ao redor do braço ferido, bloqueando e desviando do que podia. Prensado contra o limite da área de combate por uma enxurrada de ataques, ele acertou um poderoso chute, que mandou o Arauto voando. Dessa vez, o transmorfo aterrissou em pé, ileso, com um sorriso jovial.

Sem uma palavra, ele saltou ao ataque, usando a velocidade ao seu favor. Rasth, recuperado do choque, apertou o curativo no braço e se colocou em uma posição defensiva. Com o braço direito praticamente inutilizado, o único jeito que ele poderia vencer agora era...

Imobilização. Transformar a luta dinâmica em uma competição de força bruta, levando o Arauto a exaustão. Exatamente como Caleb fizera no ringue. O Arauto percebeu a mudança no estilo de luta de Rasth e respondeu com sua própria mudança de planos: ele começou a crescer.

Enquanto trocavam golpes, o Arauto ficava cada vez mais alto e forte, seus músculos atingindo um crescimento explosivo. Em pouco mais de alguns instantes, ele atingira o dobro do tamanho.

Como ele vai manter isso? Ele não parecia estar mostrando nenhum sinal de febre ou cansaço , mesmo depois dessas alterações absurdas. Acelerar a regeneração, melhorar seus reflexos, e agora praticamente triplicar sua massa corporal. De onde estava saindo aquela energia extra? Não, até matéria. Não é possível, mesmo para um transmorfo, criar matéria do nada. Além do custo em energia, é preciso comer o suficiente para repor a demanda de nutrientes e outras substâncias. Água, no mínimo.

Ele devia estar usando magia. Era a única explicação. Os magos do culto, com certeza... mas Aurora não tinha motivos para mentir. E ela certamente saberia se ele estivesse usando magia, ou, pelo menos, magia que ela reconhecesse. Seria isso um tipo obscuro de magia?

Rasth havia abandonado sua expressão de deboche, e agora tinha uma careta de concentração, o silêncio indicando que levava a luta a sério agora.

Conforme o Arauto ficava maior, seu estilo de ataque e defesa começava a se parecer mais e mais com o estilo de luta que ele usara com Goroth. Orc contra orc. O peso de cada golpe era agora comparável a um barril cheio de pedras, cada impacto propagava-se pelo ar e chão como uma onda de choque.

Rasth tentou derrubar o Arauto para fora da área de combate com uma rasteira, e este usou o braço direito para apoiar-se na perna do orc e saltar sobre ela como um muro. Rasth aproveitou-se da brecha e seguiu com uma tentativa de agarrar o pescoço dele para prendê-lo em uma chave de braço.

O Arauto, agora com a cabeça presa, respondeu apoiando os dois pés no chão e impulsionando seu corpo para cima, prendendo suas pernas ao redor da cabeça de Rasth, e tentando forçá-lo ao chão com o peso do próprio corpo, que agora estava quase do mesmo tamanho.

Rasth gritou e soltou a cabeça do Arauto, cujo queixo estivera pressionando seu braço quebrado, e cambaleou por um momento. O Arauto se aproveitou do desequilíbrio do oponente e inclinou-se para a frente, derrubando o chefe orc de costas no chão. Ele agora estava maior do que Rasth, pensando-o entre suas coxas e o solo, atingindo o seu rosto duas, três vezes.

Rasth tentou se libertar, sem sucesso, os dentes cerrados para tentar salvar a própria mandíbula, cada soco fazendo sua cabeça imensa ricochetear contra o chão, as contas nas suas tranças tilintando sobre a pedra.

Dos braços, Rasth libertou apenas um. O direito, o quebrado, que em um movimento desesperado ele colocou entre si e O Arauto, tentando desequilibrá-lo, empurrá-lo para longe, sem sucesso. Mais um gancho. A cabeça de Rasth jogada para a direita. Outro. Sua têmpora atingia a pedra à esquerda. O Arauto não se preocupou em restringir o braço de Rasth novamente, se concentrando em continuar a esmagá-lo com seu peso, e prensar seu crânio contra o chão a cada golpe.

Três orcs seguravam Goroth, cujos gritos eram abafados pelo som esmagador de cada soco. Aurora continuava a assistir em silêncio. Se alguém fosse interferir, teria que ser eu. E teria que ser agora.

Quem se importa? — Zhar disse, em minha cabeça. - isso não é problema seu. Rasth não era meu amigo. Nada do que aconteceu comigo desde que eu morri era problema meu. Seria melhor deixar que o Arauto ganhasse, e me levasse com ele. Implorar pela vida de Alice, fugir para algum canto do mundo onde ela estivesse segura.

Fugir. Mas então o que seria de Greg? Frieda? A família de Alice? As crianças que brincavam no rio e saltavam das pedras… fugir. Aurora e Goroth, os orcs e soldados… Fugir. Haviam barracos em chamas, gritos de crianças, gritos de adultos, gritos de morte, medo e dor.

A dor retornou a mim, tão clara quanto o dia, meus dedos dilacerados, o cheiro de sangue…

Rasth, num último esforço desesperado, seu rosto inchado já nem reconhecível, colocava toda a sua força em seu braço direito, simultaneamente torcendo as pernas na direção contrária, tentando se libertar.

Mãos que me agarravam, imagens borradas, sons e cheiros indistintos, completo caos.

Rasth não conseguiu se libertar completamente, mas empurrou O Arauto um pouco para o lado, e girou o torso, agora não mais totalmente imobilizado, mas de costas para o adversário.

O vazio que me consumia, as emoções e memórias que eu esqueci.

O Arauto sorriu, seu tamanho e peso agora muito superiores. Uma mão sob o queixo de Rasth, segurando a presa esquerda entre os dedos. A outra atrás da cabeça, os dedos em concha sobre a sua orelha direita.

Zhar ainda sorria para mim, mesmo encurralado, em meio ao sangue e o fogo.

Que se foda tudo.

Eu explodi em chamas roxas, queimando minha pele, minha carne, meu sangue, e disparei na direção da luta, raios estalando ao meu redor, meus braços transformando-se em longos tentáculos, minhas mãos varando o ar na direção do pescoço do Arauto. Se ele usar magia, mesmo que seja para me parar, ele perde. Eu só preciso… eu só quero

Uma barreira invisível me obrigou a parar em pleno ar, esmagando cada centímetro do meu corpo com a força de um torno. Meu fogo foi extinto, e toda a dor me atingiu de uma vez só, embaçando minha visão. Eu consegui? Me perguntava, O Arauto me parou?

Quando abri os olhos, um dos três magos do Culto tinha suas mãos levantadas. O Arauto parecia surpreso, mas não havia levantado um dedo contra mim. Ele ergueu a cabeça, e seus olhos cruzaram com os meus, cortando um talho em meu peito. Tristes. Profundos. Cheios de confusão e dor. Por um instante. E depois, não havia mais nada além de apatia.

 

Seus braços se moveram em um borrão, e um estalo alto foi ouvido. Rasth estava morto.

 


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