Drania escrita por Capitain


Capítulo 2
Retorno




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Muitas pessoas me perguntaram depois, como era a viagem de volta. Eu não acho que um dia serei capaz de descrevê-la. O que eu posso dizer é que, pelo menos no final, foi quase como acordar. Acordar de um sono sem sonhos nem descanso, sentindo dor, exaustão, fome e frio. Mas talvez para você seja diferente.

Devagar, a escuridão foi tomando forma, e eu me vi em meio a uma densa floresta. Ainda era noite, mas eu não sabia onde estava. As árvores daquela floresta eram imensas, com troncos tão largos quanto uma casa. Olhei para o céu, e as estrelas ainda estavam lá, mas eu não conseguia ver alua. Esse deveria ter sido meu primeiro aviso de que algo estava errado.

Eu podia sentir meus braços novamente. Eu tinha controle sobre meus dedos. Olhei para as minhas mãos, tentando me situar novamente na realidade. Elas estavam lá, mas não do jeito que eu as tinha deixado. Eram definitivamente as minhas mãos, mas algo estava diferente. As minhas marcas de transmorfa haviam voltado, linhas azul-escuras serpenteando pelos meus braços, como tatuagens naturais perfeitamente executadas. Mas não era isso o que me incomodava.

Demorou algum tempo para eu entender o que era, mesmo no escuro profundo da floresta. Eu estava brilhando. Não era uma luz forte, como o fogo, mas um brilho tênue e contínuo, numa mistura de roxo e magenta. Levei mais alguns momentos para perceber que eu também era um pouco transparente. Eu era um espírito. Um fantasma.

Ok, sem pânico, pensei. Eu voltei dos mortos.

Então eu tentei dar um passo. E tudo desmoronou.

Primeiro, eu notei que não tinha pernas. Eu era agora uma criatura flutuante, transparente, brilhante, e sem pernas. tentando dar um passo, eu acabei me inclinado para a frente, e ao invés de caminhar, eu afundei. O chão se aproximou com uma velocidade impressionante, e eu fechei os olhos, esperando o impacto. Só que ele não aconteceu. Quando eu os abri de novo, não havia nada para ser visto.

Eu estava dentro da terra. Por alguns minutos, eu achei que fosse sufocar, mas então percebi que não estava respirando. é claro. Tentei então voltar para a superfície, mas instintivamente, sabia que não iria conseguir. Eu não tinha mais pernas, e embora meus braços seguissem o meu comando, eles eram incapazes e tocar qualquer coisa que fosse.

 Tentei imaginar-me escalando para fora dali, mas sem sucesso. Tentei cavar. Tentei nadar. Nada funcionava. Quanto tempo eu estava ali? Não fazia ideia. Eu não estava sufocando, então parte do meu senso natural de desespero não sabia para onde ir. Eu estava presa debaixo da terra. Será que era assim que todos os mortos acabavam? Quem sabe o pós vida fosse assim. Você se transforma em um fantasma e, incapaz de se mexer, fica preso debaixo da terra para sempre.

Não, não podia ser desse jeito. Eu já tinha ouvido histórias sobre fantasmas, espíritos e assombrações. Fantasmas que voavam, faziam coisas flutuarem, conjuravam doenças e possuíam as pessoas. Eu não sabia o quanto dessas histórias era mesmo real, mas fantasmas existiam. Eu era um. E se fantasmas existiam, eu também deveria poder fazer aquelas coisas. Em teoria.

Algo na ideia de possuir pessoas me era incrivelmente engraçado. Eu era uma transmorfa, capaz de copiar qualquer criatura viva, possuir qualquer aparência. Então, em vida, eu já era como um fantasma. Um fantasma capaz de tocar as coisas. Não sei dizer por quanto tempo fiquei ali, no escuro completo, tentando descobrir como me mover no meu novo corpo. Talvez tenham sido horas, mas pareceram semanas.

O pânico de estar presa em um lugar escuro já tinha ido embora fazia muito tempo quando eu finalmente entendi. Já que eu estava morta, não podia me machucar. Então eu podia demorar o tempo que fosse tentando ideias novas. Ok, uma por vez. mover o corpo não adianta. Talvez fosse porque eu era incapaz de tocar as coisas. Andar só funcionava quando eu era viva porque eu podia tocar o solo.

Depois de muito tempo, percebi que eu sabia em que direção era “para cima” e “para baixo”, o que devia significar que eu tinha peso. Não era muito peso. Eu era mais leve que o ar, com certeza. Se eu tinha peso, eu tinha que ter alguma substância. Eu não estava mais no vazio completo da morte. Eu tinha peso. Então porque eu não era capaz de tocar as coisas?

Suspirei. Ou, melhor, me imaginei suspirando, já que nenhum ar entrou pelo meu nariz. Eu estava começando a ficar entediada. Seria tão bom se eu pudesse só imaginar onde eu queria ir e... Eu estava me movendo, de repente. Algo havia mudado. Será que era tão fácil assim, só imaginar para onde você queria ir?

Não. Não era em quem estava controlando o movimento. Havia algo, alguém, me puxando para cima. Senti uma pressão suave e constante sendo distribuída pelo meu corpo etéreo. Era como se alguém houvesse me enrolado em um tecido bem fino, e estivesse levantando o tecido como uma rede de pesca. Era isso. Eu estava sendo pescada.

Dessa vez, como estava de olhos abertos, pude ver a maneira estranha como a superfície do solo de repente passou pelo meu rosto, como se eu estivesse espiando por sobre um muro. A terra, os musgos, o mato alto e as pequenas pedras e gravetos apareceram e eu podia vê-los agora, mesmo com a escuridão. Meus olhos mortos adaptavam-se ao escuro, como os meus olhos vivos antes faziam.

O puxão ficou mais forte quando eu aí do solo, e eu agora voava entre as árvores, atravessando tudo o que ficava no meu caminho, a uma velocidade crescente. Nas primeiras árvores que eu atravessei, eu me encolhi e fechei os olhos, como se fosse bater, mas não demorou muito até eu começar a me acostumar. A velocidade do meu voo aumentava a cada segundo, e eu percebi que não podia ouvir o vento cortando através das minhas orelhas, e que meu cabelo estava imóvel.

Não sei porque, senti-me um pouco triste com aquilo. A floresta ficava mais densa e escura conforme eu me movia, e de repente, eu emergi de entras árvores em uma pequena clareira, desacelerando até quase parar. Não senti desconforto ou vertigem com a parada súbita, o que era definitivamente um ponto positivo.

Perguntei-me finalmente quem seria o responsável por me guiar até ali. Calculei que devia ser algum tipo de mágica. A clareira era iluminada apenas pelas estrelas, e bem no centro, havia uma cabana. Ela era difícil de notar, com as luzes apagadas, porque era toda coberta de hera, e até alguns pequenos arbustos. Quem quer que estivesse me puxando, estava me levando para lá.

Conforme eu fui chegando mais perto, percebi mais alguns detalhes. A cabana era toda de madeira, com pequenas janelas redondas, e era cercada por uma espécie de horta repleta de plantas de todos os tipos e tamanhos. Havia uma porta, de madeira um pouco mais escura que o resto, que abriu subitamente, assim que eu cheguei.

De dentro da cabana, saiu uma mulher de pele clara cabelo louro escuro. Ela vestia um vestido longo, de cor verde escura, com as mangas arregaçadas até a metade dos antebraços. Ela ergueu mão direita, e a força que puxava meu corpo cessou, e eu flutuei ali, parada, em frente à desconhecida. Eu devia falar primeiro? Quem sabe me apresentar? Eu sequer era capaz de falar, naquela forma?

Antes que eu pudesse pensar em algo para dizer, a mulher sorriu largamente, fazendo um complicado gesto com as duas mãos. De algum lugar no interior da cabana, uma pequena luz azulada veio flutuando até repousar em sua mão esquerda. Com aquela luz, eu conseguia enxergar melhor o seu rosto. Ela tinha feições suaves, um queixo fino, dentes perfeitos e olhos de um pulsante verde com traços de anil.

— Boa noite – a bruxa disse – seja bem vinda de volta à terra dos vivos, jovem viajante.

Eu tentei falar e, para a minha surpresa, funcionou.

— Boa noite. – Eu respondi – meu nome é Drania – acrescentei, um segundo depois.

A mulher inclinou a cabeça em um cumprimento.

— Meu nome é Aurora – ela disse – eu sou uma bruxa.

Assenti com a cabeça.

— Obrigado por me tirar da terra, agora pouco. E por... hã... porque me trazer até aqui. Você poderia me dizer pra que lado fica Vralgongard?

Aurora ergueu a sobrancelha esquerda só um pouquinho.

— E o que faz você pensar que eu deixarei você ir embora?

Eu não respondi. O que eu diria, de qualquer forma? A bruxa havia me trazido até ali, quem podia dizer se ela não iria me usar em algum feitiço horrível? Eu não sabia nem me mover, como eu iria escapar de uma bruxa? Que tipo de magia ela podia usar contra mim? Nas ruas de Vralgongard, eu tinha sempre pelo menos uma pedra para jogar. Ou podia sempre correr. O que eu podia fazer, depois de morta?

— Eu estava brincando – Aurora disse, depois de um minuto de silêncio completo. – Eu posso te dizer para onde é Vralgongard. Mas primeiro, que tal entrar e conversar um pouco comigo? Imagino que você deva ter algumas perguntas.

Eu tinha. Um monte. E o que tinha eu a perder? O máximo que podia acontecer é eu morrer, certo? Eu estava errada, claro. Mas assenti, e a bruxa me puxou para dentro da cabana, fechando a porta atrás de mim.


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