Drania escrita por Capitain


Capítulo 11
Consumo


Notas iniciais do capítulo

mais um capítulo curto, dessa vez dentro do prazo, hehe
é tão bom descobrir finalmente onde cada pedaço da história vai se encaixar.
enfim, boa leitura!



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— Ma...tar?

Eu nunca tinha matado ninguém. muitas pessoas tinham morrido ao meu redor, e a morte era algo que eu estava acostumada a ver. Pessoas morrendo de frio e fome. Os atormentados matando por qualquer coisa de valor. Zhar... Talvez a morte de Zhar, quando eu tinha sete anos, fora o mais próximo que eu chegara de pensar em matar alguém. Eu queria fazê-los pagar, a todos eles, por terem matado meu amigo.

Mas eu nuca o fiz.

— Bem, mata-los não é estritamente necessário, mas certamente é a norma. Afinal, como eu já disse, a consciência se dissolve depois de um tempo, e quanto mais recente for a morte, mais energia pode ser aproveitada... – Aurora deve ter se assustado com minha expressão nauseada. – Você está bem?

Não, eu não estava bem.

— Como você consegue ficar tão calma enquanto fala uma coisa dessas? – eu indaguei.

A expressão confusa que Aurora vinha exibindo deixou o seu rosto, substituída por uma expressão compreensiva.

— Você nunca matou ninguém, não é?

— E você ainda pergunta, é óbvio que não!

Aurora ficou pensativa após essa reposta.

— Eu sabia, você é diferente. – Ela disse, com convicção – deve ser por isso que vi tanta incerteza no seu futuro.

— Espera, incerteza? – eu não entendi a princípio do que ela estava falando – quer dizer aquela conversa mole sobre “destino grandioso”?

— Eu já disse, a maior parte dos fantasmas são pessoas... questionáveis para dizer o mínimo. – Ela disse – os outros fantasmas que encontrei eram assassinos, tiranos ou loucos. Se você parar para pensar, esse é o arranjo mais natural, que se encaixa com as duas leis da morte.

— Como assim?

— Uns cientistas espertinhos na antiga cidade de Shaagrin, que um dia já foi a capital das quatro províncias, descobriram que o universo, isto é, as estrelas, os mundos, as luas, tudo isso estava “em expansão”, ou seja, todos os corpos celestes estão se distanciando uns dos outros em uma velocidade crescente. – Aurora explicou – Intrigados a respeito do que poderia estar causando esse fenômeno, eles descobriram a matéria escura: um tipo de matéria que parece não interagir com os outros tipos, e calcularam que a matéria escura preencheria quase 90% de toda a matéria no universo.

— E eu sou feita dessa coisa. – Eu só queria entender onde Aurora queria chegar com aquilo.

— Correto. – Aurora parecia não querer chegar a lugar nenhum.

— porquê?

— Não se sabe ao certo. Muito conhecimento sobre o assunto foi perdido quando Shaagrin foi destruída pela Grande Desgraça, e estudar necromancia é abertamente proibido pela Ordem, bem como pelo Baronato de Thorsten, e embora não seja estritamente proibido em Argoth, é visto com maus olhos. O único lugar onde se pode estudar necromancia em paz é Risandal, como era de se esperar. – Aurora deu um sorrisinho orgulhoso – eu nasci lá, se está se perguntando. É o melhor lugar par se viver dentro das quatro províncias.

— E o que tudo isso tem a ver com as leis da morte? – eu ignorei a parte sobre Risandal. – Toda essa matéria escura e expansão do universo e tal.

— A matéria escura é a responsável pela expansão do universo, e a expansão do universo é o que o traz mais próximo da morte: eles calcularam que o universo irá acabar num futuro muito distante, quando toda a matéria, energia e calor deixará de existir, e a expansão é um dos fatores chave disso. – Ela explicou – Tende a sobreviver por mais tempo o fantasma que estiver mais confortável com a ideia de matar, e assim a primeira lei é cumprida até mesmo por quem tenta desobedece-la: tudo tem que morrer.

— Mas eu não poderia só, sei lá, caçar um animal ou cortar uma árvore?

— Infelizmente não – Aurora disse – os únicos capazes de manter sua força vital depois da morte são as criaturas capazes de pensar. Uma árvore não tem consciência, então a energia acumulada se dissipa imediatamente após a morte.

Se eu quisesse continuar, eu teria que matar pessoas. Qualquer coisa que eu tivesse a dizer para Alice valeria a vida de alguém? A Drania do meu sonho, a Drania que eu era quando viva, seria capaz de matar outra pessoa, mesmo que fosse para continuar viva? Se houvesse um jeito de encontrar aqueles que mataram Zhar, eu...

— Não. – Eu respondi. Nem para vingar Zhar. – Não, não, não... eu prefiro morrer.

Aurora suspirou.

— Você realmente é uma boa pessoa, não é? – ela sacudiu a cabeça, mas sorria em aprovação – Isso é realmente raro, hoje em dia, até entre os vivos. Entretanto, é um fantasma. Quer dizer que você tem um motivo muito forte para continuar viva...

— Eu preciso voltar até Alice... – eu disse – Mas... Esse culto de assassinos vai continuar atrás de mim, não vai?

Aurora aquiesceu.

— Então... Eu não posso voltar agora. – Decidi – Eles viriam atrás de mim e Alice poderia...

Eu me aproximei do cadáver do assassino mais próximo. Ele havia sido atingido pelo gelo que Aurora conjurara, e jazia de lado, o rosto contorcido em uma careta. Seus olhos não haviam fechado. E havia sangue. Por todo o lado, espalhado sobre o manto negro. Ele ainda segurava a espada recurva e negra como a noite, com se a abraçasse, numa tentativa fútil de se salvar.

— Se eu quiser voltar a ver Alice, eu preciso... – eu estendi a mão sobre o corpo sem vida. E a recolhi de volta imediatamente. – Não dá.

— Se quer minha opinião, eu acho que você está nos atrasando com essa sua hesitação toda. – Goroth apareceu subitamente ao meu lado, carregando um saco repleto de todos os tipos de coisas – Eles quase mataram Aurora, e sabe-se lá o que fariam com você caso a tivessem levado. Nós temos que sair daqui logo, ou mais deles vão voltar e nos matar.

— Mas...

— Nós temos que ir – ele me interrompeu – Eles já estão mortos. E morrer por causa do seu moralismo barato é um enorme desperdício.

Ele estava certo, é claro. Eu já havia me decidido. Precisava descobrir o que o culto de Kraaz queria comigo, e precisava voltar a Vralgongard. Depois disso, não me importaria em morrer.

— Aurora – eu disse – você tem alguma ideia de como eu “absorvo a energia” deles?

— Se você se concentrar um pouco, deve ser capaz de sentir – ela respondeu – do mesmo jeito que você faz para sentir a matéria ao seu redor, como faz para duplica-la.

Eu tentei imaginar como essa energia seria, e lembrei da luz que vi Aurora receber de Goroth mais cedo naquela manhã. Aquilo devia ser parte da sua energia vital sendo usada pela bruxa. Quem sabe eu conseguisse... eu voltei a estender a mão até o cadáver, e ao aproximar a minha mão para tocá-lo, eu senti um estranho formigamento espalhar-se pelo meu braço. Eu nem sequer precisei fazer esforço algum. A energia simplesmente apareceu e foi absorvida pela minha pele num instante, contorcendo meu braço em um espasmo involuntário, atravessando meu corpo fantasmagórico num piscar de olhos.

Então a lembrança apareceu, sobrepondo a minha visão, tomando conta dos meus sentidos. Eu era um assassino, e eu estava numa sala de pedra iluminada por grandes tochas vermelhas. À minha frente estava um altar, e sobre ele havia um livro aberto. Atrás do livro, havia um homem em um manto negro, o rosto encoberto pela escuridão.

— Eu juro lealdade à Kraaz, ao caminho do Caos, e ao fim dos tempos. – Minha voz era clara e determinada. Eu queria aquilo. Eu viveria por aquela causa. Eu morreria por ela.

Eu dei um passo à frente, colocando a minha mão sobre o livro, e olhei uma última vez para a figura sem rosto que seria meu mestre a partir daquele dia. em algum lugar na escuridão do capuz, havia um sorriso, eu podia sentir.

— Bem vindo, Ormuz – a voz do homem de preto era doce, profunda e melodiosa, mas mais do que isso, era familiar. Eu já tinha ouvido aquela voz. Onde eu já tinha ouvido aquela voz?

A visão passou, e eu estava de volta à clareira. Aurora estava ao meu lado, e Goroth estava um pouco mais distante, ainda segurando o saco com suprimentos. Eu havia absorvido uma alma humana.

— O que houve? – aurora perguntou – você simplesmente congelou por alguns instantes.

— Eu... – eu não tinha certeza do que exatamente acabara de acontecer – eu acho que revivi uma das memórias dele...

Eu notei algo estranho na clareira. Havia uma diferença na forma como eu a via. Eu conseguia ver todos os cadáveres agora, havia um distinto brilho vermelho ao redor de cada um deles, uma aura, como uma pequena nuvem luminosa.

— Vocês estão vendo isso também? – eu apontei para o conjunto de auras brilhantes.

— Ver o que? – aurora perguntou – eu não vejo nada fora do normal.

— Os corpos estão brilhando – eu disse – tem uma aura vermelha...

Antes que eu pudesse completar a frase, as pequenas nuvens vermelhas começaram a se distanciar dos corpos, flutuando no ar, unindo-se em uma grande nuvem cor de sangue, e brilhando mais intensamente que antes. E então essa nuvem convergiu em minha direção, me engolfou em um fogo vermelho, que me queimava como óleo fervente. A última coisa que eu vi foi vermelho, e a última coisa que ouvi foi a voz de Aurora, à distância, gritando.

Então fui consumida pelo fogo vermelho e mergulhei na escuridão.

 

 


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Notas finais do capítulo

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