Olhos na Escuridão escrita por Lanan Tannan


Capítulo 1
Capítulo Unico




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Parou. O corpo curvado, as mãos sobre os joelhos, a respiração ofegante e o coração disparado.

Sabia que não podia ficar daquele jeito por muito tempo. Cada segundo parado ali, era um segundo a menos em sua vida. Mas ele não tinha mais forças para continuar, precisava de alguns minutos — que sabia não ter — para recuperar o fôlego antes que resfolegasse sobre aquele chão úmido e imundo.

Ele não sabia como, mas tinha sobrevivido a queda do segundo andar. Seu coração ainda batia de forma descompassada, o lado direito de sua barriga doía pela intensa corrida desesperada que fizera. Sentia suas pernas tremerem a cada passo. Sentia sua respiração falhar e seus pulmões clamarem por oxigênio. Sentia o sangue escorrer pelos cortes em seus braços e sua cabeça girava..., mas não podia fazer nada a respeito. A não ser continuar correndo e afastando-se para o mais longe que pudesse da casa.

Ele sabia que deviam ter saído de lá! Nenhum de seus companheiros apoiaram a ideia, todos exultantes por encontrarem um lugar “seguro” depois de tanto tempo se escondendo nas entranhas daquela floresta.

E ali estava ele agora, correndo por sua vida com o eco dos gritos retinindo em seus ouvidos.

Fez menção de continuar a correr, mas não conseguiu avançar muito uma vez que suas pernas amoleceram e seus joelhos bateram contra o barro; o som oco ressoou no meio daquela assustadora noite silenciosa. Suas mãos se fecharam em punho, os dedos agarrando a terra furiosamente. As lágrimas que segurava a tanto tempo finalmente caíram de seus olhos, pingando sobre a poça de lama em que estava. Raiva, desespero, medo... tudo se misturava em um turbilhão em seu interior. Não sabia como aquilo tinha acontecido. Não sabia como ainda estava acontecendo. O que eles haviam feito para merecerem um martírio como aquele?

Sentiu alguns pingos em suas costas e ergueu a cabeça aos céus, deixando a recente chuva molhar a face. A lama em seu rosto escorria por seu pescoço, levando consigo o sangue dos cortes que acabara fazendo quando pulou a janela desesperado.

Ouviu um farfalhar de folhas no chão e arregalou os olhos. Ficou imóvel, ouvindo atentamente por sobre o barulho da chuva. Nada. Exceto sua respiração trêmula que não conseguia controlar.

Não havia nada por perto que ele conseguisse observar.

Mas ele conseguia sentir. Aqueles olhos estavam cravados em sua direção, tinha certeza daquilo. Os mesmos olhos que o fitaram da ponta da escada e o perseguiram pela escuridão de seu quarto. E que iniciaram todo aquele pesadelo.

Amaldiçoando-se, começou a correr novamente. Ele havia ficado parado por tempo demais. Seus pés escorregaram, mas ele se apoiou em uma das árvores e conseguiu evitar a queda. A adrenalina e o medo já percorriam seu corpo mais uma vez, servindo como impulsionador de sua corrida por meio da densa floresta.

A chuva estava mais forte e pesada agora; o chão já encharcado prendia seus pés e tornava quase impossível se manter em pé quanto mais correr. Seus pulmões imploravam por ar, mas ele não poderia se dar ao luxo de parar para recuperar o fôlego novamente, não quando conseguia ouvir as passadas pesadas que se aproximavam mais rápido do que ele poderia ter imaginado.

Forçou suas pernas a se moverem. Seu pé esquerdo ficou preso no barro molhado mais uma vez e ele sentiu a dor em seu tornozelo quando o puxou violentamente. Segurou-se brevemente em uma das árvores tortas e se lançou para frente. Não podia parar, não podia parar, não podia parar...

E então aconteceu.

O caminho que seguia o levou em direção a um barranco em meio a floresta. Parou bem a tempo, seus pés a centímetros da beirada. Ele não conseguiria descer por ali sem se machucar gravemente e aquilo só o atrasaria. Não tinha tempo, não tinha tem-

Um grito rasgou sua garganta na mesma intensidade em que aquelas garras rasgaram a carne de suas costas. O ataque o jogou barranco a baixo e o som gutural preencheu o silêncio da noite, misturando-se aos seus próprios gemidos de dor.

Não soube por quanto tempo e qual a distância em que caiu, apenas sentiu o caminho. Sentiu o mato arranhando seu rosto, os galhos perfurando suas roupas, as pedras rasgando seu corpo... e a dor cruciante em suas costas. Não conseguiu evitar um som agonizante escapar-lhe dos lábios quando bateu contra uma árvore, o corpo desfalecendo, o rosto mergulhado em meio a lama.

Acabou. Foi a única palavra que surgiu em sua mente.

Acabou.

Acabou.

Ele tossiu e sentiu todo seu corpo tremer com esse gesto. Seu corpo inteiro doía insuportavelmente. Suas pernas não respondiam mais ao seu comando, assim como seus braços se tornaram inúteis naquele momento. A chuva que batia em suas costas e no horrível ferimento apenas o fazia querer gritar e gritar, mas nem isso conseguia mais. O cheiro metálico de sangue estava por todo lugar.

Não existia mais possibilidades de escapar.

Acabou.

Acabou.

Estava longe o bastante da casa? Longe o bastante para que o que estivesse perseguindo-o não retornasse e procurasse por mais vítimas? Longe o bastante para que pudesse garantir o tempo necessário para que os outros — isso se houvessem outros — conseguissem fugir?

Ele não sabia, mas esperava que a resposta fosse sim.

Um baque pesado soou próximo, muito próximo. Não havia mais nada que pudesse fazer. Ergueu a cabeça pesadamente, apenas o suficiente para que seus olhos fitassem a lua minguante refletida na água. Seu reflexo sob a luz da meia lua era aterrorizante, seus olhos estavam vazios.... Estava completamente sem esperanças.

Ele não havia se despedido...

E ele nunca mais o veria...

Moveu os dedos, arrastando-os pela terra e tocou na água. As pequenas ondas tremularam no momento em que refletiram os olhos vermelho-sangue que pairavam sobre o garoto. Não tinha mais forças para reagir e, nem mesmo quando seu corpo foi virado brutalmente e seus olhos encararam aquelas fendas avermelhadas da morte, a única coisa que ele pode fazer foi fechar os olhos e se entregar.

Acabou...

 

...

Abriu os olhos abruptamente. Sentou-se, os músculos de seu corpo rígidos de tensão, a respiração pesada e descompassada. Virou a cabeça com receio, observando atenciosamente cada canto do cômodo em que se encontrava; alguma coisa estava terrivelmente errada ali. Apertou a lateral do colchonete que haviam encontrado no dia anterior e relaxou um pouco mais ao ver seu irmãozinho dormindo ao seu lado, abraçado com a inseparável manta azul.

O quarto estava mais gelado do que quando foram dormir, o que era estranho considerando que a janela ainda permanecia fechada. Levantou-se em direção a janela e a puxou para cima e, como aconteceu quando encontraram aquela casa, não conseguiu abri-la. Permanecia emperrada, mas o quarto estava estranhamente frio.

Ele ainda tinha a sensação de que deviam ter saído daquela casa pela manhã. Não deviam ter ficado tanto tempo parados num mesmo lugar.

Encostou a cabeça no vidro e observou em busca de algum sinal de perigo ao redor da casa. Não havia nada, a não ser a densa e escura floresta banhada pela lua minguante no céu.

Não havia notado o quanto era assustador.

Um grito ecoou pela casa inteira. Ele pulou pelo susto e acabou batendo a cabeça no vidro. Ouviu o segundo grito. Depois o terceiro. Depois o quarto e então ele já estava aterrorizado demais para contar. Sabia de onde vinham aqueles sons: da sala, o primeiro lugar de acesso da casa e o lugar onde alguns de seus companheiros de sobrevivência escolheram dormir.

Viu um feixe de luz surgir por baixo da porta, porém não se atreveu em sair do quarto e ir descobrir o que estava acontecendo. Só torcia para que não fosse o que imaginava — e que, se fosse, permanecesse bem longe daquele quarto.

Quando os gritos se tornaram mais altos, o pequeno garotinho começou a despertar de seu sono. Rapidamente o mais velho afastou-se da janela e correu de encontro ao irmão, abraçando-o fortemente enquanto cobria sua boca. O pequeno abriu os olhos, assustado pelo gesto do irmão e foi quando percebeu os gritos que vinham do andar de baixo.

Pela fraca luz que entrava no quarto, o mais velho pode ver as finas lágrimas que começaram a correr pelo rosto infantil do irmão. As mesmas lágrimas que ele próprio lutava contra.

Precisava protegê-lo.

Ainda com a mão sobre a boca do pequeno, ergueu-o em seu colo e encaminhou-se para o outro lado do quarto, onde se encontrava um antigo armário de madeira. Abriu a porta cuidadosamente, observando o interior vazio.

Seu irmãozinho o fitava com os olhos arregalados, as pequenas mãos agarradas na manta azul. O mais velho beijou-lhe a testa demoradamente e logo após o colocou dentro do armário. Pôs o dedo indicador sobre os lábios, em um gesto de silêncio ao mais novo. O pequeno garoto acenou afirmativamente e se encolheu mais ao fundo do armário, fechando os olhos e abraçando sua manta.

O mais velho fechou com cuidado a porta do armário, procurando se manter calmo mesmo que seu corpo tremesse pelos gritos que ouvia do andar de baixo. Certificando-se de que seu irmãozinho estava bem escondido, aproximou-se a passos lentos da porta do quarto. Encostou a cabeça na porta e esperou.

E esperou. As batidas de seu coração ecoavam em seus ouvidos, deixando-o mais aflito.

E então aconteceu. Os gritos acabaram tão rápido quanto começaram.

Silêncio.

Ele não se atreveu nem mesmo a respirar quando se afastou da porta. Olhou para trás, para o armário onde seu irmãozinho estava escondido. Não podia tirá-lo de lá, mas também não podia deixá-lo a mercê de... o que quer que estivesse acontecendo na casa.

Voltou-se novamente para a porta; aquele silêncio o aterrorizava mais do que os gritos. Seus dedos tremiam ao tocar a maçaneta. Houve um rangido assim que entreabriu a porta e um choramingo soou de dentro do armário. Fechou os olhos com força, implorando em silêncio para que seu irmão não fizesse nenhum barulho... e abriu a porta.

A primeira coisa que viu foi a origem da luz: a porta do quarto da frente estava aberta e a luz acesa. Apesar disso, não havia ninguém no corredor. Lentamente se pôs do lado de fora do quarto, o corredor pouco iluminado devido a luz fraca.

Observou as escadas que levavam para o andar de baixo, seu coração pulsando em níveis alarmantes. Não havia nenhum vestígio de luz vindo lá de baixo, o caminho descia para a mais completa escuridão.

Pôs as mãos sobre a boca rapidamente, impedindo-se de gritar. Alguma coisa havia acabado de passar em frente às escadas! Não conseguiu ver exatamente o que era, apenas uma rápida imagem da silhueta. E esta foi o suficiente para assustá-lo.

Cuidadoso, deu um passo para trás, procurando retornar ao quarto. Interrompeu-se ao ver a silhueta na base da escada novamente. Ela se aproximou, olhos vermelhos piscando como chamas na escuridão.

Alguma coisa embaixo dos olhos se repuxava para cima, primeiro como uma linha fina e depois uma meia lua... com dentes compridos e pontiagudos... Como um sorriso maligno e afiado em sua direção.

Em sua direção!

O garoto correu para o quarto e fechou a porta no exato momento em que a coisa se jogou contra ela, do outro lado.

Ele saltou para trás, a respiração irregular e os olhos arregalados pelo terror. A imagem daqueles olhos vermelhos em meio a escuridão estava impregnada em sua mente. E os dentes...

Ele nunca tinha visto nada tão... tão...

Não havia palavras para descrever o quão aterrorizado estava.

Outra pancada na porta o fez se encolher. Não demoraria muito para que aquela porta de madeira fosse reduzida a pedaços estraçalhados no chão.

E seu irmãozinho estava escondido no armário!

Aquilo trouxe foco para sua mente. Não podia ficar ali.

Ele olhou pela janela.

Não havia outra escolha.

Precisava afastar aquilo de seu irmão.

Nem que para isso precisasse sacrificar sua própria vida.

Ele correu em direção a janela, ergueu os braços em frente ao rosto e saltou. O som do vidro se quebrando misturou-se ao eco da porta ao ser lançada para dentro do quarto.

 

As lágrimas desciam pelo rosto do pequeno escondido no armário. Seus olhos estavam tão apertados que ele sentia a cabeça doer. Mas tinha que ser forte; se chorasse seria encontrado. Então as lágrimas continuaram descendo silenciosamente e pingando sobre a manta azul.

Ele ouviu tudo. A porta sendo batida. A respiração alta de seu irmão. Alguma coisa quebrando e uma pancada que o fez se encolher mais ainda. O rosnado gutural tão próximo do armário o fez perder os sentidos.

Quando acordou, não sabia quanto tempo havia se passado. Sua roupa estava molhada, o líquido quente em sua pele fria de medo. Ainda agarrado a manta, pressionou os lábios para impedir um soluço e ouviu.

Silêncio.

Será que era hora de sair?

Seu irmão poderia estar na casa ainda, escondido como ele. Poderia sair e encontrá-lo…

O menino esperou mais um pouco e, felizmente, não ouviu nada. Com as mãos tremendo, empurrou a porta do armário. Nenhum ruído. Empurrou a porta e desceu do armário.

Um calafrio percorreu o corpo do menino; o quarto estava extremamente frio. Foi quando se lembrou de ter ouvido o barulho de algo quebrando. Sua atenção rapidamente foi para a janela.

Abraçou a manta e aproximou-se da janela. Estava quebrada e uma corrente de ar frio passava por ela, junto com uma fraca luz. Ele não conseguia enxergar muita coisa do lado de fora; estava fora de seu alcance.

Não havia mais porta no quarto, agora ela estava partida em duas próximo a cama. Aquilo fora a criatura…

O lábio inferior do menino tremeu quando ele voltou a observar a janela.

Seu irmão devia ter pulado ali...

Suas pernas amoleceram e ele desabou de joelhos em meio aos vidros quebrado. Se arrastando pelos estilhaços de vidro, chegou até o batente da porta. Tinha que encontrar alguém. Qualquer um. E depois iriam atrás de seu irmão.

Atravessou o corredor, arrastando-se lentamente sobre o piso. O odor ocre que sentiu assim que chegou no meio da escada trouxe lágrimas aos seus olhos.

Quando sua mão direita encostou em algo molhado, o menino se pôs de pé. Ergueu a mão em frente aos olhos, o fedor metálico e toque pegajoso quase o fizeram gritar. Encostou-se no corrimão da escada, procurando continuar a descer os degraus sem pisar naquela poça.

Ele sabia o que era. Mas não queria pensar. Estava tentando se controlar, ser um bom menino, e não gritar. Se fizesse barulho seria encontrado.

Cada centímetro de seu corpo tremia quando avistou uma pessoa deitada ao pé da escada. Não conseguiu identificar quem era. Seus olhos estavam úmidos e a luz que entrava na sala era insuficiente.

Havia mais. Um sobre o sofá, outro caído ao lado da televisão quebrada. Dois próximos ao batente da porta — que também fora arrancada. Outras formas estavam jogadas em todos os cantos da sala.

Mas não havia um som sequer.

Todos eles estavam...

O chão estava empossado. Os pés do menino escorregavam a cada passo trêmulo, a manta sendo arrastada e as lágrimas caindo sem controle.

O menino tropeçou em uma forma desconhecida e caiu, o rosto batendo no piso. O gosto daquele líquido em sua boca fez seu estômago embrulhar. Colocou a mão sobre a boca e a mordeu, impedindo-se de gritar. Levantou-se rapidamente, procurando equilíbrio sobre as pernas fracas.

Seu irmão não estava ali. Ele não podia estar… estar…

Iria encontrá-lo!

O menino olhou para a porta, o coração aos saltos. Apenas a escuridão. Podia correr por ali…

Voltou o olhar em todo o perímetro da sala.

E ali, em frente à janela estilhaçada, surgiu algo que fez um soluço doloroso escapar pela garganta do menino. Ele caiu de joelhos. Apertou a manta manchada pelo sangue dos mais velhos que morreram ali – e que logo estaria manchada com seu próprio. Porque aquilo foi a última coisa que viu: olhos vermelhos na escuridão da noite.


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