Memento Vivere - Lembre-se de Viver escrita por Shalashaska


Capítulo 8
Plumas Negras




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A visão de Yabbat se escureceu antes mesmo de chegar ao fundo. Seu corpo mal lutou contra o oceano tumultuado pelos tremores no templo ou pela estátua de dragão que despencara do teto. Estava inerte, carregada pela correnteza. Enxergou vultos na água. Talvez fossem apenas os fragmentos da escultura, suas escamas negras e de superfície lisa, quem sabe suas presas e garras. Talvez fossem memórias que a Cisne não queria lembrar, de uma época em que ela era cega… Não pela escuridão do cosmos, mas sim pelo brilho de um deus.

Rabum Alal.

No coração da Biblioteca de Mundos, havia um salão para seu deus destruidor, um lugar distante e colossal. Inabitado. Nenhum ser, mesmo uma Cisne Negro, com a visão perfeita suportaria o olhar do Grande Destruidor. Somente as Irmãs Cegas chegavam mais perto para servir aos seus pés, seus globos oculares arrancados do rosto há muito tempo num ritual voluntário. 

Rabum Alal dizia que apenas os cegos poderiam aguentar a luz do sol… E o que mais ele era, com tudo orbitando ao seu redor? Uma estrela no centro de todo o caos.

Yabbat se lembrava da vida com seu bando de Cisnes. A luta diária por sobrevivência, os combates contra Sacerdotes Sombrios, contra Cartógrafos, contra heróis… E os rituais de sacrifício de um homem só, em suas milhares de versões no multiverso. Era o objetivo de todas as Cisnes matar aquele homem para aplacar a fome do seu deus e poupar o resto dos mundos. Mas os universos continuavam a morrer em azul e em vermelho. Sofrimento, sangue, fim. Como aquele que tudo vê não enxergava tal fato?

Ele não a viu entrar em seu salão; ela e outras de seu bando, entre a névoa espessa e lilás. Ou então era o destino todas elas, pequenas Cisnes, arderem pela verdade. Na pedra escura, entre a cor roxa e o preto, estava Rabum Alal trajado em um longo manto verde.

Um homem. Apenas um homem. Sua aura luminosa e magia nas mãos, porém… Somente um ser, de carne e osso. Um buraco negro faminto. O brilho de Rabum Alal cegava por suas mentiras.

Ela e seu bando separaram das demais. Hereges, infiéis, traidoras. Tolas. Passaram a oferecer mundos ao verdadeiro destruidor, a roda implacável que nunca cessaria. Não havia rosto naquela força devoradora, não havia verde. Somente fome insaciável, amorfa. Qualquer esperança daquelas Cisnes de um destino melhor deixou de existir. Restava apenas Yabbat.

Sacerdotes Sombrios, Cartógrafos, Reis de Marfim, Rabum Alal, o falso Rabum Alal  heróis e vilões… Havia muitas peças naquele jogo entre Mundos e, independente de quem jogasse melhor, a roda continuava a girar.

O fim era tudo o que Yabbat conhecia. Era tudo que sempre existiria.

*

Sua consciência só se tornou menos turva quando Namor apoiou seu corpo no chão de pedra do templo, no lado onde existia o imenso espelho. Ela não entendia ao certo o que estava acontecendo. Lembrava-se do príncipe falhar em abrir o portal, lembrava-se de sentir uma dor aguda e… Oh, e cair. O atlante ainda a segurava, parado ao lado dela, enquanto Yabbat tossia e regurgitava cada gole de água salgada que a invadira.

Tremia inteira, seu corpo obedecendo apenas os reflexos e instintos naturais. Frio, pavor. Restou-lhe o impulso tolo de balbuciar coisas vagas, sua boca trêmula ao revelar - mesmo que de maneira implícita - suas vulnerabilidades. Segurava de volta os braços de Namor, agora sentada, e as poucas lágrimas que escaparam de seus olhos poderiam ser confundidas com água. Isso não importou para o príncipe, se eram lágrimas genuínas ou não, pois ele também estava assustado por vê-la assim, quebradiça.

Ela tinha visto o começo de tudo e seu fim. O falso deus. O verdadeiro deus.

— Eu estou tão cansada. — Foi só o que foi capaz de dizer, sua voz frágil. — Tão cansada. Eu…

Namor, ajoelhado, a abraçou devagar, trazendo-a lentamente para seu peitoral. Sua pele era morna e estranhamente macia para quem vivia no sal do mar. 

— Eu sei, Yabbat. Eu sei.

Não conteve o soluço estrangulado na garganta, nem mesmo quando ele docemente segurou sua nuca. Mas, aos poucos, a sua respiração voltava ao normal. Seguiu-se um silêncio absoluto por muito tempo, até que a Cisne Negro parasse de tremer tanto, e então Namor pediu um instante para recuperar o Cubo. Pulou na água para atravessar o outro lado do templo, o caminho obstruído pelos restos da imensa escultura de dragão. O lugar sofreu com os tremores e com a queda da estátua, mas não tinha colapsado por inteiro, nem mesmo a água de fora assolou-os em zonas abissais. Apesar de rachaduras, estava de pé.

Não demorou tanto para que o príncipe retornasse e, por fim, lá estavam os dois novamente. Namor havia sentado no chão, com as costas apoiadas no espelho. Exausto. O Cubo Cósmico jazia entre eles, iluminando seus reflexos tristes no templo.Havia uma pergunta no ar:

E agora?

— Minha intenção era abrir os portais para trazer os atlantes para cá. Não sabemos se vamos conseguir parar as Incursões, mas ao menos… — Deu um estalo com a língua, desviou o olhar. — Ao menos meu povo estaria seguro, já que ninguém aqui ainda tem planos de explodir o planeta.

— Ainda teríamos que explodir o outro se quisermos sobreviver por mais tempo. — Yabbat rebateu, sua conclusão pesada. O ciclo de destruição de mundos não iria parar, independente do que fizessem. — Esses portais de Einalia… Realmente levam para a Biblioteca de Mundos, eu senti.  Porém, sem a chave meu conhecimento é inútil. Com uma da própria Biblioteca, todas as Grandes Damas podem acessar as portas. São quase como… Chaves-mestras, porém certas portas possuem entraves específicos, como feitiços ou até mesmo chaves diferentes. Tentaremos de novo com o Cubo? Eu poderia...

— Não. Acredite, os portais não vão se abrir e não é por causa do Cubo. Sem falar que você morrerá no processo e sua morte seria em vão. E… não conheço nenhuma outra Cisne para atravessar a Biblioteca. — Uma pausa. Somente gotas d'água distantes, pingando no pouco do oceano que havia invadido o local, cortavam o silêncio. — Eu sei de alguém que vai nos ajudar com a chave.

— Steve Rogers?

— Não. Ele não tem o necessário para lidar com chaves interdimensionais.

— Príncipe… — Ela suspirou. Como ele podia ser tão teimoso contra o inevitável? Tão ingênuo? Tão… Esperançoso? Não de uma forma passiva, é claro. Violento. Tolo. — Você sabe que algumas coisas podem existir em vários universos, mas outras são simplesmente diferentes. Aqui, por exemplo. Atlantis existe, viva e próspera em seu mundo, mas nós jazemos em suas ruínas nesta Terra. Quem quer que seja sua esperança agora, talvez essa pessoa não exista nesta realidade. Não se apoie em ilusões.

— Eu entendo o que diz, mas sei que essa pessoa existe sim aqui. Eu vi pelos arquivos da IMA e sei que não é tão diferente de como o conheço. Pelos deuses, é até amargo saber que é a única pessoa com quem posso contar agora.

— Quem?

Von Doom. — O som do nome reverberou na água e no espelho, seguindo-se um breve silêncio. Já com um pouco mais de veneno nos lábios, Namor continuou: — Meu amigo Victor parece que é um homem interessado nas artes místicas em mais de um universo. Ele vai saber onde há uma chave, ou ao menos como fazer com que o Cubo Cósmico nos ajude.

Yabbat demorou um segundo a mais para comentar.

— Von Doom não é esperança alguma. Ele lhe negou ajuda no passado, no mundo onde vocês eram aliados… Vai negar de novo.

— Ele é um homem indigno, vil e sedento por poder. Victor vai desejar sobreviver, Cisne, e mesmo que não por altruísmo, vai nos ajudar por interesse. 

— Isso mal é um plano.

— É tudo o que tenho, mas o caminho é longo até a Latvéria. — Deu de ombros. — Poderá pensar em alguma sugestão melhor até lá.

— É estupidez. Por que está rindo? — O fogo lunar era refletido pelas gotículas de água salpicadas sobre a pele dele; o seu sorriso com um brilho de escárnio. No entanto, havia algo mais em seus devaneios. Leveza. Maciez. Plumas negras. — E por que… Seus pensamentos estão cheios de penas?

— Porque você está certa. É estupidez, talvez. Mas eu lhe disse ao juntar a Cabal que eu não me entregaria tão fácil. Eu vou sobreviver.

— Isso não explica as penas em seus pensamentos.

— Ah, passarinho. Há muito tempo, as sereias eram representadas por mulheres aladas, não metade peixes. Talvez tenha lido em algum dos livros que Reed lhe deu.

Ela assentiu. Reed Richards lhe deu títulos considerados pesados, dentre eles a Ilíada e a Odisseia, de Homero. Yabbat considerou o momento oportuno, senão irônico, para comentar da segunda obra. O retorno do herói ao lar.

— Seduzem marinheiros com melodias. Matam-os depois.

— As canções delas são lamentos de guerra, de luto e sofrimento. O fim de suas músicas é a morte. Todas são verdadeiras e é por isso que doem tanto. Então me diga, Cisne… — Encarou-a diretamente. — Como eu não lembraria de você? Diz coisas tão cruéis. Coisas tão honestas.

Silêncio.

— Eu não canto.

Ele riu, riu e riu. Apoiou melhor a cabeça no espelho, inclinando-a para cima, depois soltou um suspiro e fechou os olhos. Escorreram-se minutos. A Cisne se levantou um tanto trôpega e foi até seu lado, sentindo o contato com a pele morna dele. Namor, por sua vez, não pareceu se incomodar com Yabbat encolhida perto si, abraçando os próprios joelhos. Ele estava certo em dizer que ela era franca, mas era um tolo ao achar que a Cisne lhe contava tudo. Não, existiam coisas que ela não ousaria dizer…

Como o verdadeiro motivo para não querer visitar Victor Von Doom.

A Cisne se permitiu não pensar em tais circunstâncias naquele instante. Estava exausta, assim como seu aliado atlante, e não tinha como argumentar contra a ideia. Namor não entoou nenhuma canção em sua língua nativa, mas isso não foi necessário para fazer Yabbat entrar num sono cada vez mais profundo. 


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