Memento Vivere - Lembre-se de Viver escrita por Shalashaska


Capítulo 6
Atlantis




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A descida foi lenta e escura no oceano. As pálpebras de Yabbat fraquejavam mais uma vez e seus ombros pesavam no corpo, mas se ela falhasse, se sua esfera de energia psiônica fragmentasse… Dúzias e dúzias de metros cúbicos de água salgada preencheriam seus pulmões, além de quebrarem seus ossos devido à pressão extrema. Ela então segurava o Cubo Cósmico como se aquilo fosse uma âncora para sua consciência. Focava-se em sua textura com as pontas dos dedos, sua energia pulsante.

Não fazia ideia do que eles tinham feito consigo no laboratório da IMA, o que significavam os furos em seu braço e nem o porquê seus olhos mudavam de cor quando vinha uma Incursão azul. Ela só podia imaginar… E eram pensamentos fúnebres. Preferiu então contemplar a imensidão azul dos animais que cruzavam ocasionalmente o seu caminho. Peixes, mamíferos, uma tartaruga… Namor empurrava a esfera de energia para zonas cada vez mais abissais e não respondeu quando Yabbat perguntou se ele conseguia falar com o cardume que passou por eles. No entanto, por mais que o cenário fosse interessante, logo o silêncio e a exaustão cobraram seu preço. A inconsciência fisgava-a e, embora não fosse admitir fraqueza, ela temia não aguentar por mais tempo na escuridão. De repente despertava em alerta, sua pele arrepiada. Entre piscadas gradativamente mais longas e sustos, ela notou algo diferente na água. Uma canção.

Era fluida e frágil como um sonho. Por vezes, a voz apenas parecia narrar algum fato, alguma história naufragada, no entanto a cadência de sua pronúncia, seu tom, mantinham o aspecto cristalino. Ela não sabia dizer se tratava-se de uma alucinação ocasionada pelo oxigênio escasso dentro da bolha, uma ilusão de um sono inevitável. Simultaneamente, parecia vir de Namor, ainda que ela não pudesse distinguir entre suas palavras e seus pensamentos naquele instante. Ele estava cantando? Ou só pensando tais melodias? Chegou a girar um pouco o pescoço para encará-lo, mas pouco viu entre a cortina de águas-vivas luminosas que atravessavam sua visão. Tudo o que entendia era que não conhecia a língua, mas… Já tinha ouvido uma vez, também num sonho.

Não lutou mais contra a correnteza de tal som. Piscou os olhos uma última vez e deixou a escuridão afogar seus sentidos.

Ao acordar, sua mente parecia ter sido arrastada por um buraco negro. Seu corpo estava encolhido dentro da esfera de energia psiônica, quase em posição fetal entorno do Cubo Cósmico, e sua respiração pulsava fraca. Se lembrou de sonhar com a cor verde, igual ao dispositivo que lhe permitiria salvar seus entes queridos… e que foi confiscado por Reed Richards. Esmeralda como o traje do herói que ela matou durante uma Incursão; Uma tonalidade feito a roupa de Monica Rappaccini, sua captora mais recente. Verde, a cor de terríveis esperanças e horrores certeiros. Verde, a cor de algo que somente os piores pesadelos de Yabbat ousavam recordar.

Algo havia batido na superfície da esfera, provocando um som semelhante ao bater no vidro. A Cisne Negro abriu as pálpebras e levantou o corpo, encontrando logo a face familiar do príncipe atlante e seus olhos… Olhos azuis esverdeados. Ele fez um gesto apontando para cima, de modo que Yabbat acompanhou seu olhar. Ao ver o brilho de uma luz e o ondular da água na superfície, ela se apressou em direcionar a barreira de energia para cima. Deveria ter ar lá em cima, oxigênio.

Foi capaz apenas de manter seu escudo por mais alguns instantes, mas na realidade se surpreendeu por ter durado tanto tempo, mesmo inconsciente. O restante do percurso ela nadou segurando o Cubo com uma das mãos, sua pele eletrizada com a diferença de temperatura. Nem bem raciocinou ao encontrar uma plataforma sólida para se apoiar, algo semelhante a uma longa escadaria. Arrastou-se para fora da água e deitou-se de barriga para cima assim que seu corpo estava longe o suficiente das espumas salgadas. Respirou de forma entrecortada, necessitada. Se passasse mais tempo dentro daquela esfera… Iria morrer de asfixia.

Namor submergiu logo depois. Caminhava normalmente, inabalado pela a longa viagem. Ele alongou os braços e veio até Yabbat, agachando-se para conferir seu estado. Estudou-a por um minuto inteiro para então sorrir, seus dentes levemente mais afiados do que a Cisne se lembrava.

— Eu lhe disse que ficaria segura, passarinho.

Ela abriu a boca, mas não respondeu. Sua mente girava e mal impedia a acidez na língua ou a impulsividade de seus membros. Observava o rosto salpicado de gotas de Namor, o cabelo escuro que escorria água. Quando deu-se por si, uma de suas mãos tocou o pescoço do príncipe atlante, examinando as fissuras de sua pele em um ponto atrás e pouco abaixo de suas orelhas pontudas.

— Você… Você tem guelras?

Talvez estivesse delirando ainda, mas ela jurou perceber desconforto e rubor no atlante.

— Tire a mão daí, sua tola! Ninguém toca em Namor assim.

Ela obedeceu, sem se questionar o porquê ele se referiu na terceira pessoa, e tentou se focar no novo ambiente ao seu redor, enquanto Namor ficava de pé de novo. Sua atenção repousou nas paredes amplas e esculpidas, depois subiu para a o alto da cúpula semiesférica, mais exatamente da abertura por onde vinha a luz. Era uma construção antiga, embora vazia. Existiam apenas os entalhes em pedra, algo semelhante à mármore, e os dois ali dentro. Não era um templo, no entanto. Sem imagens, estátuas ou oferendas.

— Onde exatamente nós…?

— Bolsões de ar, Yabbat. Eu disse que existiam estruturas assim em Atlantis.

— Eu sei. E não acreditei. Por que atlantes precisariam disso?

Ele inspirou fundo, mas a pergunta dela não era infundada. Atlantes puros eram capazes de respirar ar por apenas dez minutos sem equipamentos sofisticados ou poções, que aliás eram muito raras atualmente. Ao menos em sua realidade, as poções um dia já foram comuns para a realeza, de modo que atlantes se isolavam em segurança em certas estruturas com oxigênio na capital de Atlantis. Essas luxuosas moradias de ar abaixo do oceano foram abandonadas depois de uma catástrofe envolvendo uma princesa atlante e um humano. Baniram-se as poções e a receita se perdeu... Mas isso não impediu que sua mãe encontrasse uma para desbravar a superfície.

Muitas vezes, Namor desejava que ela não tivesse cometido tal loucura, mas não era hora para tais informações. Resumiu ao que era necessário Yabbat saber.

— Há mais de uma razão: Armazenamento de bens que conservam melhor no oxigênio, tortura de prisioneiros, privacidade para aqueles que conseguem respirar ar… Aqui é um primeiro armazém depois das muralhas de pedra.

— Não há nada aqui.

— Eu sei. Não há nada, nem ninguém.

Houve silêncio. Somente a água murmurava contra as escadarias, somente gotas pingavam em alguma poça ali perto. A acústica do local era semelhante a de uma caverna submersa e, Yabbat pensou, talvez a estrutura realmente tenha sido esculpida em rocha, já que o príncipe mencionara muralhas de pedra. O que deixava seu corpo receoso, porém, não era o fato de estar abaixo de quilômetros de água ou ter desmaiado de exaustão durante a entrada em Atlantis; Era que o tom usado por Namor jazia entre a melancolia e a fúria. Ela conhecia aquele tom, aquele luto. Ouvira o mesmo de sua garganta muitas vezes.

— Não havia ninguém junto com as serpentes marinhas da primeira barreira. Nenhuma sentinela. Nada na muralha de pedra, nada na Grande Cúpula ou após as barreiras de repressurização. Não vi uma única alma atlante, assim como… Como na colônia perto de Pavlopetri.

Ela não reconhecia as tais serpentes, nem sentinelas ou a Grande Cúpula, mas entendeu o que ele queria dizer.

— Então é por isso que voltou aquela tarde. Não encontrou ajuda.

— Só me vi entre ruínas, Cisne, e talvez tenha sido amaldiçoado por suas palavras. Morte e silêncio.

Absorveu a afirmação amarga sem ressentimentos. Tentou encontrar uma razão para tal coisa acontecer.

— Não foi Thanos, então, senão teria já encontrado alguém. A dizimação através das joias foi pela metade e talvez não tenha sido proporcional em todo o universo, mas… A probabilidade de se deparar com atlante ainda existiria. Se não há ninguém, algo ocorreu antes.

Ele passou a mão sobre o rosto, franzindo os cenhos e inspirando fundo. Yabbat escutou os ecos de seus pensamentos tumultuosos e o esforço descomunal para manter a compostura. O príncipe estava no seu limite, era nítido, entretanto foi capaz de sufocar seus impulsos de fúria. Quando falou, sua voz ainda carregava aquela ponta de esperança que a Cisne tanto tinha pena.

— Ainda estamos nas zonas mais periféricas da capital. — Constatou, deixando implícito que considerava mais provável de encontrar algo no centro da capital. Era um raciocínio lógico, mas Yabbat já perdera coisas demais, pessoas demais, para se deixar levar por qualquer otimismo. Nada disse. — A porta que quero encontrar está na parte velha da capital, mais ao fundo. É num templo de uma deusa antigamente cultuada na cidade. O lugar já era um tanto esquecido mesmo na Atlantis de meu mundo… Mas há outra estrutura com oxigênio, então não se preocupe com isso.

Yabbat assentiu, permanecendo quieta. Seu corpo clamava esfomeado por descanso pleno, mas ela não diria tal coisa. Ardia por uma folga e ardia por saber o porquê o príncipe teria familiaridade com templo para uma esquecida deusa das profundezas... No entanto, a pergunta que saiu de sua garganta foi a mais venenosa de todas:

— Na IMA e agora, no mar… Por que você cantou para mim?

A gargalhada de Namor ecoou no cômodo, sua voz rebatendo na água salgada.

Por que eu cantaria para você, Cisne?

Ela não respondeu, pois não sabia a explicação e os pensamentos deles jaziam em zonas abissais demais para entender. Namor apenas lhe deu as costas e começou a descer as escadarias, voltando para o oceano.

— Descanse. — Foi só o que ordenou. — Não suporto te ver trôpega e alucinando. Vou trazer uma refeição para quando acordar.

Yabbat o deixou partir sem ressalvas, mas o questionamento da razão por trás daquele simples gesto de cantar ainda ecoava ácido em sua cabeça, assim como a risada dele havia transbordado o ambiente de deboche.

Por que ele tinha feito aquilo?

Não sabia. Talvez nem tenha sido real, como ele disse. Ou talvez nem ele soubesse a razão.

No entanto... Sendo falso ou verdadeiro, por que algo dentro de si sentira tamanho alívio?

Novamente, sem respostas racionais, ou melhor, sem respostas que ela realmente admitiria para si. A implicação do que aquilo significava ardia incômodo em seu tórax, mais do que quaisquer outras dúvidas, mais que sua ânsia por descanso. Ao fim, ela adormeceu encarando a bela cúpula acima de si, ciente que seu sono duraria pouco e que logo a roda giraria mais uma vez.


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