Memento Vivere - Lembre-se de Viver escrita por Shalashaska


Capítulo 1
Morte e Silêncio


Notas iniciais do capítulo

Quem não gosta de dois personagens discutindo, não é mesmo?



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A outra Terra não era o que Yabbat ou Namor esperavam, embora eles não tivessem uma ideia concreta do que esperar. Num primeiro momento, mal sabiam se realmente escapariam de um planeta prestes a explodir, portanto quando a Incursão azul acima deles se fechou e a noite os engoliu, ele só conseguiram discutir o inferno que havia acontecido e debateram sobre as falhas de caráter um do outro. 

Yabbat aceitava as duras críticas do príncipe atlante, admitindo que era amoral e profana. Havia matado mundos e ensinado outros a fazer o mesmo. Era verdade, o que ela poderia falar? Respondia que havia ensinado outros a sobreviver e lá estavam os dois afinal. Namor estava vivo, ao contrário do que seus supostos aliados desejavam quando arquitetaram uma emboscada.

Apesar de suas habilidades regenerativas, ele ainda tinha hematomas no corpo de seu combate com T’Challa, o corte aberto por um punhal no tórax. Parecia mais ferido por entender que não era exatamente diferente da Cisne Negro, capaz de extinguir sua própria dignidade para garantir que seu povo estivesse a salvo. E era um tormento concordar com ela.

Por fim, haviam decidido caminhar a beira do riacho que encontraram, justamente para que o curso da água os levassem até alguma cidade. Era o mais próximo de ajuda que teriam naquele instante, ao menos para se recuperarem. O percurso naquela paisagem deserta e recortada de pedras e plantas durou algumas horas, não o suficiente para a noite se tornar dia, mas o bastante para exaurir as energias restantes dos dois. Só existam algumas estrelas pálidas no céu, a lua e o cricrilar ocasional da vegetação.

— Eu sei que você ganha mais vigor na água, príncipe, mas molhar o rosto de hora em hora não deixa o caminho mais curto. — A Cisne suspirou, sentando-se no chão e há alguns metros do riacho. Massageou as pernas um pouco, estudando a dor do cansaço em seus músculos. — Precisamos parar.

Ele ia na frente e apenas a olhou de soslaio. Não parecia inclinado a mais uma vez concordar com ela, ainda que Yabbat tenha notado o relaxar de seus ombros. Parou de andar e, de costas, disse:

— Eu posso te afogar, Cisne. Acabará com seu sofrimento.

— Seria bem inteligente da sua parte. — A voz dela era carregada de deboche. — Sem falar que mostraria muita gratidão afogar quem te salvou.

— Escute aqui, sua maldita. — Ele virou-se e veio andando rápido, a passos largos. Tensão cobria sua face franzida, o que fez Yabbat abrir um largo sorriso. — Eu não sei o que planeja com esse papo todo de querer ver o fim das coisas, mas sei que está aprontando alguma. Assim como se livrou de Thanos e os outros, pode querer se livrar de mim.

— Isso que eu vejo é medo?

— Eu deixo o medo para homens medíocres. Chame isso de prevenção. Não somos mais que aliados temporários.

— Nunca o vi ser cauteloso. Interessante. — Concluiu, numa alusão ao temperamento impulsivo do atlante. Quem sabe uma dose traições o tenha colocado nos eixos ou ao menos esfriado um tanto sua cabeça. — E se não quer que eu quebre nossa aliança, acho melhor me tratar com um pouco mais de gentileza, não?

— Você é doente.

— Olhe para mim de novo, príncipe. Acha mesmo que sei o que fazer agora? Algum plano mirabolante para cortar sua garganta? Estou exausta e faminta. Fraca.

Ele ergueu somente uma de suas sobrancelhas escuras, arqueadas já de natureza. Yabbat se deteve um momento para observar esse traço tão característico de sua face e achava difícil um par de sobrancelhas daquelas ser harmoniosa no rosto de outra pessoa. A expressão dele, no entanto, era de incredulidade - o que ela considerou inteligente da parte dele. Mesmo exausta, faminta e fraca, a Cisne Negro não era uma criatura indefesa.

— Você nunca parece que tem algo vil na cabeça, Cisne. Depois arruma todas as peças no lugar e arruma um caos que até seu deus destruidor duvida. — Deu uma pausa, exasperado. — Isso é que perturba meus nervos. Não posso descansar com uma inimiga ao lado.

— Você bebeu as melhores bebidas de Atlantis com T’Challa numa oferta de paz que depois fracassou. Aguenta algumas horas no meio do nada com uma mulher desarmada.

— Nós dois sabemos que você não precisa de arma alguma.

— Um elogio. — Sorriu. — Viu? Estamos chegando a algum lugar.

— Não se faça de sonsa.

— Não seja estúpido. Se quiser ir em frente, vá. Eu vou dormir aqui.

Dito isso, Yabbat encostou suas costas nas pedras do lugar e cruzou os braços. Observou o príncipe lhe dar as costas novamente e sair andando, apenas esperando o momento em que ele retornaria. A Cisne não sabia se ele odiava mais precisar dela ou o fato dela estar certa. Vislumbrar a dúvida crescer na cabeça dele enquanto se afastava era um tanto quanto satisfatório, seus pensamentos tão agressivos quanto suas palavras.

Yabbat não era capaz de ler pensamentos inteiros ou revirar a mente de alguém à distância, pois sua telepatia tinha certas limitações que ela se poupava de descrever para terceiros. De qualquer modo, foi divertido assisti-lo parar e voltar. Xingava mentalmente, mas permaneceu em silêncio até ficar ao lado dela, também encostado nas pedras e de braços cruzados.

— Sabe…

— Calada, Cisne.

— Eu só quero saber qual é o seu plano.

Ele estalou a língua, sem querer dizer. No fim, revelou suas ideias a contragosto.

— Quando chegarmos em alguma cidade, saberemos onde estamos, como é esse mundo e se...

— Se é parecido com o seu?

Namor inspirou fundo.

— Exato. Se existe uma Atlantis aqui, teremos ajuda. Mas antes, temos que chegar em alguma cidade, vilarejo, qualquer coisa que encontrarmos primeiro.

Suas palavras pairaram no ar. Depois daquele episódio no qual matou um herói trajado de verde durante uma Incursão, Yabbat foi atrás do que significava esperança. Foi uma longa e tediosa conversa com Maximus para debater o conceito que, por algum motivo, era também relacionado com a cor verde: Era uma vã expectativa de que coisas boas acontecessem à despeito da maré de possibilidades ruins. Tolice, quem sabe. Uma última coisa a se agarrar. A Cisne não julgava tal sentimento, não poderia julgar. Apenas não o carregava em seu coração, não mais. Não verdadeiramente. No entanto, foi o que notou na voz do príncipe. Levou um tempo para responder:

— A roda ainda está girando, Namor, e é só uma questão de tempo para que uma nova Incursão aconteça. Espero que esteja certo.

— Diz isso como quem não acredita de fato que eu esteja certo.

Yabbat o encarou.

— Não sentiu algo errado aqui? Neste mundo? — Ao assistir o rosto dele impassível, Yabbat apenas virou a própria face para o céu, apoiando a cabeça na pedra em que estava encostada. — Eu sinto a morte. E silêncio.

Ele não reagiu muito. Somente soltou um riso curto e presunçoso.

— Deixe essas suas histórias de terror para crianças, Cisne, e durma. Eu já vi coisas piores que morte e silêncio. 

Yabbat não discutiu, mas não concordava. Não, ele não tinha visto coisas piores. Coisas que haviam retirado aquela tal esperança de seu corpo. De qualquer modo, ela fechou os olhos e esperou ser tomada pelo sono.

* * *

Namor não comentou sobre Yabbat ter tremido e soluçado durante a madrugada. Passou perto de debochar dela pela manhã, mas havia notado algo diferente em sua postura sempre tão reticente. Era um silêncio a mais, quase um luto. Não havia medo, porém. Medo significava que havia vida ainda, e a urgência instintiva de mantê-la acesa. Não existia isso nos olhos vazios da Cisne Negro. 

Então não, ele não lançou deboche sobre ela, mas sim uma pergunta genuína:

— Você sonhou que perdeu uma chave? — Ela só o encarou em resposta, o que o fez se explicar. — Murmurou sobre uma chave enquanto dormia. Por que uma Cisne Negro ficaria tão transtornada com isso?

Ele esperou por silêncio ou então alguma farpa. Yabbat lhe ofereceu sua voz desprovida de emoção, embora suas palavras contassem outra história:

— O que é uma chave para quem está de frente com uma porta fechada?

O atlante não respondeu. Pensou na expressão de incredulidade dela quando disse que havia visto coisas piores que morte e silêncio. Agora imaginava o que seria mais terrível do que isso, coisas que tiravam o sono de uma mulher que já havia obliterado planetas inteiros sem remorso.

Voltaram a caminhar sem dizer uma única palavra um ao outro. Namor, já curado da apunhalada do dia anterior, pulou no rio para pegar algo para um desjejum e sentiu certa estranheza em perceber que não haviam tantos peixes assim, apesar da água não estar poluída. Sua pesca foi esquentada pelos disparos de energia dos olhos de Yabbat, que por sua vez comeu sem reclamar. Se alimentaram e partiram, a caminhada com um tom fúnebre.

A cada passo, a irritação de Namor crescia. 

Yabbat estava certa. A maldita tinha o veneno e a verdade nos lábios. Existia algo errado, ela dissera. Morte e silêncio. A vegetação nativa guardava vazios aleatórios, como se algo simplesmente tivesse desaparecido dali. Cinzas espalhadas, sem resquícios da violência do fogo. Seus ouvidos aguçados não captavam o movimento que se esperava de animais e insetos. Não fazia sentido. Namor se guiava pelo cheiro da maresia cada vez mais próximo, já era para ter encontrado vida, civilização.Ele tentava encontrar motivos racionais para que isso acontecesse, algo ingênuo como o fato de se direcionarem à um local de praia virgem; ideias complexas de que aquele mundo era inteiramente diferente da sua Terra. Até que enfim encontraram uma cidade.

E ela estava quase vazia.

Ele reconheceu o idioma pela escrita de placas. Grego. E ao menos sua suposição de que aquele mundo não era tão diferente do seu estava certa. Estavam na região do Peloponeso, sul da Lacônia e, aparentemente, numa sociedade civilizada do século XXI. Isso era bom, conhecia o lugar. Havia uma antiga colônia atlante ali, relativamente próxima sítio arqueológico submerso que os humanos chamaram de Pavlopetri, que poderia ainda guardar algum dispositivo para Namor entrar em contato com seu povo - ou ao menos o povo atlante que morava naquela Terra. Teriam que atravessar a cidade antes. Prédios, semáforos, propagandas, restaurantes. Tudo o que a modernidade prefere, somada a uma bela paisagem natural de praias e vegetação. Era uma cidade turística, com muitos hotéis e casas históricas. No entanto, mal haviam pessoas. Os tais prédios pareciam pouco utilizados, muitos dos restaurantes e outros estabelecimentos comerciais estavam fechados, abandonados. Semáforos desligados e trânsito inexistente.

Ao vê-los, as pessoas se afastavam. Namor assistiu um homem torcer seu rosto em pânico e afastar suas crianças da rua, puxando-as para dentro de casa. O príncipe não estava com uma aparência deplorável, mesmo com parte da roupa manchada por sangue seco, mas tinha que admitir que não era bom presságio ver um atlante caminhando com a Yabbat ao seu lado. 

E então, ele e a Cisne Negro entraram num bar. Parecia um começo de piada, uma daquelas que Namor ouvira da boca de Jim Hammond há muitos anos, mas tanto o barman quanto o par de clientes congelaram e som do rádio preencheu o silêncio mórbido. 

“...Completam hoje cinco anos do desaparecimento de metade da população mundial. São mais de três bilhões de pessoas que desintegraram em 2018, uma estimativa de 40 milhões morreram em decorrência de acidentes em…”

Um dos clientes saiu correndo. O príncipe não entendeu e estava mais confuso ainda pelas notícias do rádio. Avançou mais um passos, prestes a perguntar mais informações no idioma local, quando outro humano, visivelmente já bêbado pela manhã, arremessou uma garrafa.

O vidro estourou em seu ombro e ele mal piscou. Estava mais focado nas lágrimas insanas daquele homem de meia idade, seus olhos avermelhados pelo choro e pela fúria. 

— O que mais vocês querem de nós, criaturas do espaço? Eles se foram! — Ele tentou pegar outra garrafa, sem sucesso. — Se foram!

Os dois saíram do bar antes que aquela inconveniência se tornasse uma briga desnecessária. Cisne, para seu mérito, teve a frieza de apenas pegar alguns pacotes de comida industrializada e refrigerante antes de acompanhá-lo para fora. Evitaram mais contato com outras pessoas e se direcionaram até a praia, onde ele queria ir desde o início. Para onde sempre deveria voltar.

Namor sentou-se na areia e observou o azul das águas, seus pensamentos mais confusos que um redemoinho em alto mar. Enquanto ouvia Yabbat mastigando os salgadinhos ao seu lado, ele murmurou:

— “Criaturas do espaço”? Como que não reconheceu um atlante? O príncipe?

Yabbat engoliu e ergueu uma sobrancelha.

— É, de fato. — Deu de ombros. — Você não é muito discreto na sua Terra. Só que estamos em outro lugar, Namor. Talvez Atlantis não exista aqui.

Ele inspirou fundo. Isso era o menor dos problemas, na verdade.

— Entendeu o que o rádio disse? Sabe a língua?

— Sim. Reed Richards me testou enquanto eu ainda estava na cela. Li os textos de Platão e Aristóteles. — Ele não quis pensar muito sobre as escolhas literárias dela, mas era bom que Yabbat fosse poliglota. Ela era perigosamente inteligente e não demorou para que revelasse o que pensava da situação. —  Eu também ouvi algo nos pensamentos daquele homem. Apenas… Vislumbres. Nomes. Notícias de televisão. 

— Alguém matou metade da população, Yabbat. Há cinco anos.

— Thanos.

Thanos? — A conclusão não tornou nada mais fácil. Ele praguejou mentalmente, amaldiçoando a possibilidade de Atlantis não existir naquele mundo, mas Thanos sim.  — Como?

— As pedras. As jóias do Infinito.

Deuses. — Namor segurou as próprias têmporas. — Espere, você descobriu isso só de ler a cabeça daquele homem por cinco minutos?

Ela não pareceu confortável em lhe dizer como sua telepatia funcionava, no entanto cedeu explicações. O momento pedia que fossem minimamente transparentes.

— Você ouviu o rádio. Hoje é aniversário de morte de todas essas pessoas e aquele homem perdeu… Muitas. E ele estava bebendo, então os seus pensamentos estavam mais soltos ainda. Se lembrou do dia em que isso aconteceu, os noticiários… E a declaração de alguns heróis. Capitão América, por exemplo.

— Rogers? — Ele suspirou. Ao menos ele existia nesse mundo. No seu, ele e Steve eram amigos. Esperava que isso não mudasse em outra realidade. — Sabe onde está agora?

— Não. O homem no bar não pensou sobre isso. — Yabbat tomou um gole do refrigerante que havia furtado no bar. — Mas Steve parece diferente. Ainda sério, na verdade, só que mais amargo. Ele fica bem de barba.

— Ora, poupe-me de suas considerações sobre a aparência dele. — Detestava quando ela lhe oferecia aquele pequeno sorriso, quase imperceptível, em situações impróprias. —  Como pode ser tão cínica num momento desses? Fugimos de um universo para outro que foi dizimado pela metade. E as Incursões ainda vão acontecer.

A roda é implacável, Namor. Eu sei disso. Esse mundo foi fatiado em dois, depois será consumido por inteiro. Quando foi a vez de meu, não houve metade. Os Sacerdotes Sombrios vieram e mataram todos. Havia apenas eu e… — Ela olhou para baixo, para a própria mão apoiada no joelho. Parecia procurar um objeto há muito tempo perdido e Namor não pode deixar de concluir que se tratava de uma chave. A conclusão daquela frase, no entanto, foi omitida por Yabbat. — Nada muda o fato de que eu não posso fazer nada. E nem você.

Mais uma vez uma verdade incontestável. Seus ombros ficaram rijos, sua face dura. Ali, sobre a areia e sob o sol, a brancura de Yabbat era igual a um coral morto, um esqueleto calcário cheio pontas quebradiças e afiadas. Tal cor era frequentemente associada à morte na cultura atlante, de modo que a comparação com a Cisne não poderia ser melhor a cada sílaba que saia de seus lábios.

Ele era um príncipe, um atlante orgulhoso e louvado pelo seu povo. Mas o que era aquilo a frente do fim do universo? De todos os universos?

“O que é uma chave para quem está de frente com uma porta fechada?”

Ah, ele a odiava. Odiava suas sentenças inegáveis em uma língua enterrada. Wardum Uggae, ela às vezes dizia. Escravos da morte. Isso inflamava o seu peito de fúria e tormentas. O oceano também sabia dizer um sólido não e Namor era soberano dos Sete Mares. Foi o que ele disse quando convidou a Cisne e outras figuras hediondas para enfrentar o fim, para matar mundos e salvar o seu. Era inaceitável partir em silêncio. Namor se recusava.

Levantou-se e caminhou até sentir a água nos tornozelos. Ao se virar para Yabbat, enxergou uma pergunta em seus olhos. Ele não quis se explicar, não depois de enxergar a omissão de detalhes em seu discurso. No entanto, ela era a única pessoa que poderia se aliar no momento e aquela frágil aliança exigia um pouco mais de sua honestidade. Apenas um pouco.

— Há uma colônia atlante próxima. Deve restar algo para conseguirmos falar com meu povo. Não acho que os humanos daqui tenham interesse em nos ajudar. E não sei como entrar em contato com Steve, por enquanto. 

— Também não acho que ele vá atender ao telefone. Ou uma carta.

Ele estalou a língua. Além de previsões agourentas, Yabbat tinha humor duvidoso. Só alongou os braços e disse:

— Eu volto no final da tarde.

A Cisne ajeitou sua postura na areia, em silêncio. Encarava-o como quem sabia que, dada a oportunidade, ele não iria retornar. E era verdade, afinal, quando ele a encarava de volta, enxergava apenas… Morte e silêncio. Mas por que tal entendimento - de saber que a trairia sem dúvidas - o deixava tão pesado? Ele só sacudiu o rosto de maneira breve e entrou na água.

A sensação da correnteza e do sal contra o seu corpo revigorou não somente seu físico, mas também seu espírito. De início, entrar na água era sempre silencioso, ao contrário de caminhar para a terra. Aos poucos vinham os sons naturais da correnteza e de animais, de modo que o oceano sempre sussurrava uma canção. 

Parte dele afirmava que jamais deveria ter saído do mar, e outra parte o chamava de mentiroso. Mesmo que o fundo do oceano fosse seu lar, Namor sempre seria meio humano.

Um mestiço sujo. Uma cria ilegítima de um terrestre com a ingênua princesa Fen.

A mesma parte que se chamava de mentiroso também atenuava tais injúrias que tanto escutou na vida, justificando a dor dessas palavras. Era verdade, não era? Ele era meio humano e humanos eram seres vis. Também serviu para construir seu caráter, pensava. Tivera que se esforçar vezes mais que qualquer herdeiro antes dele para conseguir a aprovação de seu povo e hoje era louvado pela sua firmeza, pelo seu aspecto guerreiro.

Ainda assim, mesmo nadando e aspirando água do mar, Namor tinha aquele entendimento enterrado em sua cabeça de que nunca se sentiria inteiro, seja no oceano ou na terra. Mas não era o momento para divagações infrutíferas.

Pavlopetri era um sítio arqueológico de uma cidade humana, há quase cinco mil anos engolida pelas ondas. As ruínas por qual nadou eram restos de uma civilização diluída, a qual podia contar suas histórias somente através de cacos de cerâmica, às vezes pedaços de bronze. A colônia atlante ficava mais adiante, mais ao fundo e era mais antiga.

Aproveitou para gastar energia em movimentos fortes com os braços e pernas. Conseguiu percorrer boa distância em curto prazo, seus músculos sedentos para queimar sua frustração e ira em esforço físico. Não importava se tudo gradativamente se tornava cada vez mais escuro, frio ou denso. Ele era mais do que tudo isso.

Namor inspirou o sal da água e parou um instante, há incontáveis milhas da costa onde Yabbat estava. Seus olhos, mesmo com o aspecto humano, eram adaptados a enxergar nas profundezas. Agora, já em seu objetivo, notava pouco movimento na água. Não tantos animais marinhos quanto deveria sentir, embora felizmente o ambiente parecesse mais limpo do que de costume - já que os seres humanos tinham o péssimo hábito de sujar os mares.

As colônias nunca eram tão grandes quanto a capital, mas guardavam estruturas antigas, de uma época em que até mesmo os humanos veneravam e temiam os mares. Na atualidade, não passavam de cidades históricas e lar de poucos atlantes. A maioria preferia a segurança e conforto do ponto central do império, portanto as colônias serviam mais como referência de rotas de viagem ou peregrinação de templos. Quem morava lá preferia uma vida um tanto mais rudimentar em questão de disponibilidade de alimentos e o cuidado em se proteger da superfície. Geralmente três tipos de pessoas existiam em uma colônia:

Comerciantes, aventureiros e servidores públicos, os últimos cuja função era preservar as construções e representar o Império. Namor esperava encontrar as colunas características de templos, as estátuas imponentes, vilarejos, o Fórum e algas bem cuidadas nas praças. Ou ao menos algo próximo disso. 

Avançou mais abaixo, em direção à estrutura da colônia, construída acima de uma elevação nas pedras. À medida que chegava mais perto da antiga cidade atlante, Namor sentia um arrepio se formulando em sua coluna. Pelo vazio de animais e pessoas, compreendeu o terrível fato de que o Thanos daquela realidade não dizimou apenas metade de humanos, mas sim a metade da vida no universo. Isso por si só já era inconcebível, absurdo e herege, no entanto… Não explicava o porquê a colônia atlante se encontrava assim. Abandonada.

Não havia metade da população que esperava encontrar. Não havia… Nada.

A vegetação marítima tomara conta do lugar, bem como certos tipos de corais e cracas. Não sobrara mais do que as fundações das vilas nos limites periféricos da cidade e menos do que somente alguns assentos no teatro de arena, em pedaços soltos. O príncipe sentiu seu tórax afundar enquanto seu coração disparava. Nadou mais rápido, em busca de qualquer fragmento, qualquer dica que indicasse que alguém estivera no local. Nada no fórum. No lugar do pátio à sua frente, apenas ossos do esqueleto de uma baleia há muito tempo morta.

E o templo de Poseidon, destruído.

Com a boca trêmula, Namor se direcionou até a construção, ou o que restara de seu pórtico de pedra branca. Mesmo podendo simplesmente nadar até a entrada é atravessar seus portões, ele precisava sentir a solidez dos degraus. Era sempre um momento cerimonioso entrar num templo, e ele precisava mais ainda da firmeza divina naquele instante. Passo a passo, ele se subiu, observando rachaduras na superfície da pedra e as algas invadindo o espaço. Mais cracas revestiam as altas colunas, o ouro dos portões não estava mais lá. Entrou, a pele eletrizada. Os entalhes esculpidos foram apagados pelo tempo e pela correnteza, as oferendas que deveriam estar lá não existiam. 

A ironia da situação ardia em seus tímpanos, fazia seu sangue ferver. O príncipe pegou um pedaço de ânfora quebrada do chão, pensando em como ele repetia o mesmo trabalho humanos ao buscar vestígios, histórias inteiras em pequenos fragmentos esquecidos. Aquilo não era obra de Thanos. Não, cinco anos não fariam isso, não eram suficientes para tamanho vazio.

Ele olhou para o alto, para onde lhe doeria mais: o rosto da estátua central de Poseidon, a divindade mais venerada pelo seu povo. A pedra de sua face, de seus ombros e torso estava rachada e já lhe faltavam partes, enquanto outras jaziam infestadas pela cor cinza das cracas. Não havia mais o tridente em sua mão, nem mesmo sombra de sua aura sempre tão imponente quanto as ondas. Uma rachadura funda cortava seu rosto bem a partir do olho esquerdo, traçando um desenho do que poderia ser uma lágrima. 

Namor travou a boca, trêmulo. Atlantes não choravam abaixo d'água. Deuses não se derramavam em prantos. Ele, o príncipe, também não se derrubaria em tristeza ou desespero. Mas algo em sua garganta doía.

O que havia acontecido com os atlantes? Mais de mil anos ecoavam nas rachaduras da colônia, mil anos de solidão e abandono. Aquilo não era mais uma próspera colônia. Era, assim como Pavlopetri, ruína. 

E somente cacos davam dicas de seu passado.

 

Namor não quis pensar tanto no que viu enquanto voltava para a costa, mas pior ainda era pensar que ele estava voltando. Deveria ir mais a fundo ainda, rumar em direção ao Atlântico para descobrir o que houve com seu povo, não voltar a superfície, para sua estranha aliada, Yabbat.

Mas foi exatamente o que fez. 

Ela era uma criatura fora do normal. Crocitava sobre o fim e sobre horrores, embora desejasse permanecer viva até que testemunhasse o apocalipse final. Ela era uma das únicas que parecia conhecer o luto sem se deixar levar pela dor, sem se deixar levar por nada. E talvez fosse por isso que ele quisesse sua companhia, para aprender a não sentir uma única emoção.

Quando submergiu na água e caminhou pela areia, viu que o mundo era coberto pela luz alaranjada do entardecer, assim como tinha prometido para a Cisne Negro. Ao invés dela simplesmente estar sentada, talvez ainda comendo salgadinhos ou apenas olhando para o horizonte, Yabbat estava com o rosto colado na praia, uma dúzia de pessoas vestidas com roupas amarelas detendo-a. Namor não era exatamente letrado nas diversas facções criminosas no mundo da superfície, no entanto eles pareciam bem profissionais. Todos uniformizados, todos seguindo protocolos. Colocavam algemas no pulso dela, uma coleira em seu pescoço ao mesmo tempo que pressionavam seu corpo contra a areia. Nos poucos segundos que viu tal cena, notou que ela tinha hematomas sobre a pele - marcas de resistência, luta - assim como percebeu que ao menos dez agentes caídos ali perto, o que também indicava que Yabbat não caiu sem dar trabalho para eles, quem quer que fossem. 

Independente disso, era um fato notável que conseguissem abater a Cisne Negro.

Namor sentiu os músculos enrijecerem, sua postura adquirindo a firmeza necessária para um combate. Assim que o grupo notou sua presença, uma mulher se destacou dos demais veio falar com ele. A brisa da praia balançou seus cabelos na altura dos ombros, seu sorriso veio fácil enquanto caminhava em sua direção. Vestia roupas práticas, embora não fosse nem de perto o uniforme amarelo parecido com de apicultor dos demais. Seu traje era esmeralda. O príncipe fechou os punhos.

O que a mulher disse, na verdade, quase o fez rir.

— Sua amiga não é muito comunicativa, não? — Cruzou os braços. — Alguns moradores chamaram as autoridades depois de uma breve confusão no bar, então viemos. Tentamos conversar com ela, mas… Não deu muito certo.

— Quem são vocês?

— Apenas uma divisão de tecnologia avançada sem um governo definido. Queremos a evolução, não fronteiras. Mas isso é fazer propaganda, não é? Monica Rappaccini, da IMA.

— E vocês sabem quem eu sou?

Ela o encarou longamente, seu rosto indecifrável.

— Não, não sabemos. E é isso que viemos descobrir, caro…?

— Namor. — Por algum motivo, ele não se sentiu na necessidade de anunciar que era príncipe de Atlantis. Viu que Yabbat tentou dizer alguma coisa, sua expressão enraivecida, mas logo um dos agentes da IMA lhe injetou um tranquilizante potente no ombro. Seu pescoço ficou mole em segundos, de modo que as pessoas trajadas em amarelo a transportaram com facilidade para um veículo blindado. — Estão levando-a para onde?

— Oh. Perdoe-me a cabeça. — Ela rolou os olhos como se recriminasse a si própria, num tom ligeiramente divertido. — Vamos apenas levá-la para nossa base aqui no Mediterrâneo. A intenção era convidar os dois, mas… 

— Então por quê não aceitou um não?

— Vocês não recusariam se me permitissem falar. 

— Fale. Me convença.

Monica não pareceu abalada pelo despeito do príncipe. Apenas ajeitou sua postura é o tom de sua voz era calmo, bem didática em sua introdução:

— Não sei se sabe o que houve nesse planeta, Namor, já que não parece ter vindo dele.

— Thanos obliterou metade da vida com as Joias do Infinito. Continue.

— Estamos quase na mesma página. Ótimo. Nossa organização sempre financiou avanços tecnológicos ao longo dos anos e estamos trabalhando uma forma de entender como essas joias funcionam… E se podemos reverter o processo.

— E o que eu e Yabbat contribuímos com isso? 

— Ah, o nome dela é Yabbat? Bom saber, ela não nos disse. — A agente ergueu o punho para si mesma e anotou algo em seu bracelete tecnológico. — Bem, a IMA está perto de algo, Namor. Arranhamos outras realidades, mas precisamos de guias. Seres que vieram de outro lugar parecem bem convenientes, não acha?

— Vou poupar seu tempo: Estamos aqui praticamente por acidente. Não sabemos como reverter o fato de que metade do seu mundo morreu, senhorita Rappaccini. Existe algo pior do que isso. 

— Oh, é mesmo? Então parece que precisamos mais um do outro do que eu achava. Aliados?

A mulher estendeu a mão num cumprimento.

Namor tinha poucos segundos para considerar inúmeras variáveis. Se essa agência de tecnologia era tão grande assim, ele poderia descobrir com mais detalhes o que houve em Atlantis daquela Terra. E se estavam perto de descobrir algo que funcionava assim como as Joias do Infinito, talvez houvesse uma chance de retardar as Incursões - ou ao menos de rasgar a realidade no meio e salvar os atlantes que ainda viviam no mundo que ele deixou para trás. 

Ele encarou a mulher vestida verde e estendeu a mão de volta. O conforto de Yabbat era algo que ele estava disposto a sacrificar.

— Aliados.


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Notas finais do capítulo

Obrigada por ler! Comentários são muito bem vindos e excelentemente respondidos. Espero que tenham gostado do capítulo tanto quanto eu.

* Pavlopetri existe e as imagens de lá são bem interessantes.

* Monica Rappaccini e a IMA fazem parte dos Quadrinhos!

* A decisão de transportá-los de um universo das HQs para o MCU foi muito interessante, apesar de desafiadora. Quem sabe dê pra gente fazer mais fanfics a partir daí, né?



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