A Herdeira do Oceano escrita por carlotakuy


Capítulo 7
Raízes


Notas iniciais do capítulo

E aí, estavam com saudades?



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Quando o corpo de Lia se chocou com a água os tentáculos pareceram apertá-la ainda mais. O ar sumiu de seus pulmões e ela, desesperada, viu a superfície lhe escapar rapidamente.

A jovem continuou sendo puxada para o fundo e quando o azul do mar do mar se transformou em escuridão, os tentáculos lhe soltaram. Mas a garota estava sem forças e o resto de fôlego preso lhe deixava a um passo da morte.

Lia não queria morrer, mas seria isso ou um lento e doloroso afogamento até lá e ela não sabia se estava preparada. Pensou em Ana, em Cadu, em Pierre e em Kevin. Lembrou da expressão de terror que cruzou o rosto do loiro quando a viu ser capturada.

Ele quase se jogou junto com ela.

Lia fechou os olhos, pedindo silenciosamente perdão. Perdão por não poder salvar seus amigos. Perdão por não poder libertar Pierre.

Seu coração apertou e a garota sentiu uma leve pressão em seu peito. Seria a morte? A pressão oceânica?

Com o pouco de coragem que lhe restava ela abriu os olhos e com uma exclamação de surpresa, que lhe roubou o resto de ar que tinha, viu uma tartaruga marinha apoiada nela.

Lia tentou buscar o ar que deixou escapar, certa de que morreria quando a água invadisse seus pulmões, mas ao invés de água oxigênio lhe foi oferecido. Lentamente ela respirou, flutuando no fundo nebuloso do mar.

— Eu estou... respirando – constatou e arregalou os olhos ao notar que também havia falado.

As histórias nos livros de Kevin cruzaram sua mente. Sobre Nagisa, sobre os deuses do fundo do mar. Sobre cidades submersas e sobre poderes místicos.

Pela primeira vez ela não tinha mais dúvidas: ela era filha de uma deusa do mar. E conseguia respirar em baixo da água.

O animal, aninhado em seu peito, se moveu e as mãos antes desfalecida de Lia o seguraram. Seu casco era duro, mas a cabeça curiosa parecia vasculhar o rosto da jovem com olhos brilhando.

A última vez que vira uma tartaruga marinha foi no caís que seu pai comandava. Ela havia sido capturada junto com uma leva de peixes e tinha medo de tudo e de todos. Fugiu quando teve a melhor chance, sempre assustada e esquiva.

Aquela em seus braços não. Parecia lhe abraçar, lhe acalmar, lhe dar as boas vindas. Sem perceber Lia sorriu.

Ela sentia em suas veias, em seu corpo, na correnteza que se tornava fraca ao se chocar contra ela. A água a chamava, inquieta, mais audível do que quando ela nadava afoita nas praias da ilha. Era um chamado silencioso e insistente.

— Bem-vinda minha pequena. Bem-vinda ao seu lar.

A voz cruzou a escuridão em que Lia se encontrava e ela se virou rapidamente, assustada, seus pés raspando no fundo arenoso do oceano e lhe dando estabilidade. A tartaruga em seu peito alçou nado e foi de encontro a uma silhueta parada logo a frente.

Os olhos da jovem se estreitaram, buscando enxergar, e uma risada baixa novamente soou.

— Você não poderá me ver aqui em baixo enquanto estiver com seus poderes aprisionados. Liberte-os, Lia. Você é forte e poderosa. Me mostre sua força.

Sem entender Lia olhou da silhueta mais escura que a escuridão que a cercava para suas mãos, quase escondidas pelo breu. Poderes? Sim, Kevin havia lhe falado sobre os poderes. Pierre contava com eles para que se coração ser descoberto. Mas ela os possuiria?

Poder respirar debaixo da água lhe parecera um absurdo antes, quando cogitou ajudar os piratas. Queria salvar o capitão, mas ela conseguiria? Teria aquela força mística?

Ia dizer não a Kevin minutos atrás sem nenhuma base, mas agora, embaixo da água com ar em seus pulmões ao invés de água, Lia sentia que algo havia mudado. Ela tinha alguma coisa.

Mais uma risada ecoou no espaço submerso.

— Não pense, sinta. Você pertence ao mar, Liana, assim como ele pertence a você. Reivindique sua posse. Use o colar.

Lia piscou aturdida, levando automaticamente a mão ao pequeno búzio apoiado em seu pescoço. Como ela sabia...?

— Ele é um presente, Lia. É um amuleto. Para a nova deusa do oceano.

A respiração da jovem falhou com aquelas palavras. Nova Deusa?

Fechando os olhos com força, tentando fazer o que estranha silhueta lhe dissera, ela sentiu. Primeiro chegou na ponta de seus dedos, formigando, e em seguida escorreu por toda sua pele num calor suave.

Lia sentia o chamado, a força, a necessidade que a água possuía dela. Ela era uma Deusa, era o que o mar lhe dizia. Era poderosa e forte. E acima de tudo ela era bem-vinda.

Quando o calor envolveu todo seu corpo ele a queimou sem intensidade e em seguida se dissipou. A jovem piscou os olhos, atordoada com aquele feito, e notou que agora conseguia enxergar. Ela via tudo ao seu redor.

O espaço em que ela estava não era apenas escuridão e vazio. Agora que conseguia enxergar o azul era límpido e rochas e algas pairavam ao seu redor, escondendo-a no centro de um círculo de luz e cor. As cores vibrantes de corais preenchiam as rochas e os olhos da garota percorreram todos maravilhados.

Ela jamais vira tamanha riqueza submersa antes.

Tentando se recompor ela voltou-se para a figura logo a frente e sua boca abriu de imediato. Apoiada sobre uma das pedras, com uma bengala velha e as mesmas roupas que usava quando se encontraram, estava a velha do mercado. A de dentes podres e bugigangas.

— Você!

O sorriso amarelado e quase vazio da velha foi imediato às palavras de Lia.

— Sim, minha pequena. Nós finalmente nos reencontramos.

— O que faz aqui? Quem é você?

A mulher olhou de Lia para cima, para a superfície que jazia tão distante e enevoada pela água.

— Eu sou um espírito do mar, Liana. Fui feito para trazê-la de volta, para lhe indicar seu caminho.

Os olhos cinzentos, quase cegos, encaram a jovem a sua frente.

— E guiar você.

Ainda processando todo o acontecido Lia suspirou e balançou a cabeça, afastando pensamentos que não se encaixariam no contexto. Ela fora puxada para dentro da água, ela estava respirando e agora podia enxergar.

— Sua mãe a chama – anunciou o espírito – encontre-a e decida seu destino.

— Ei, espera!

Com um sorriso podre a velha se dissolveu em bolhas e a imagem dela se tornou um borrão, lembrando uma lula, deixando Lia sozinha no estranho circulo. A tartaruga que acompanhava a mulher permaneceu e olhou para a garota com expectativa.

Lia suspirou derrotada. Precisava voltar para a superfície, para seus amigos. Sua suposta mãe poderia esperar.

Tentando em vão alçar nado Lia falhou miseravelmente em subir de volta. Cansada ela se apoiou em uma das pedras e olhou novamente para a tartaruga que a assistia resoluta.

— De que lado você está, hm?

O animal não a respondeu, mas ao invés disso começou a nadar e Lia a observou adentrar entre outras pedras, algas e corais mais a frente. Olhando para cima e em seguida para a tartaruga a garota contornou as pedras e a seguiu.

Ficar parada e sozinha não a levaria a lugar nenhum.

•••

A tartaruga foi lentamente guiando Lia entre a vegetação submarina. Agora que conseguia enxergar as belezas naturais a jovem se surpreendia com a diversidade de flora que encontrava ali embaixo. Assim como alguns peixes engraçados que nadavam ao redor de corais e algas, vez ou outra esbarrando nela.

O corpo de Lia era pesado e vagaroso. Suas pernas não a ajudavam contra as correntezas que se chocavam contra elas e ela notou que pacientemente a tartaruga diminuía seu nado enquanto ela lutava contra as correntes.

Suspirando a jovem encarou o espaço que surgia logo a frente numa espécie de auditório com arquibancadas, mas esquecido o suficiente para ser envolvido pela vegetação.

— O que era aqui? – perguntou à tartaruga.

Mas ela era apenas um animal e além de um olhar, que tentou lhe explicar o que era, Lia nada mais conseguiu. Juntas elas atravessaram o espaço abandonado e foi quando as pernas da garota cederam, fracas.

— Estou cansada e minhas pernas doem. Quando vamos chegar aonde quer que estejamos indo?

A tartaruga deu meia volta e nadou até a frente de Lia, lhe encorajando. Os olhos da garota desceram sobre o animal e ela sorriu tristonha.

— Queria poder entender você.

O animal investiu, devagar, contra Lia. O choque suave do casco duro contra seu peito fez ela olhar confusa para a tartaruga. Mas entendeu o que ela quis dizer quando o búzio surgiu em na boca pequena. Os olhos negros dela brilharam.

— Está me dizendo para usar meus poderes?

Se uma tartaruga pudesse assentir, aquela com certeza teria feito isso.

— Mas eu não sei como, eu...

Lia refletiu sobre as palavras do espírito do mar. Sinta. Deusa. Bem-vinda.

— Certo, eu posso tentar. Talvez não dê certo e...

A tartaruga largou o búzio na palma da mão da jovem.

Respirando fundo Lia fechou os olhos. Se concentrou. Pensou em poder se comunicar com a tartaruga.

Mas nada aconteceu.

Frustrada ela não desistiu. Pensou com mais afinco, com mais intensidade, fechou os olhos com força. Apertou o búzio na palma da mão.

O calor do colar inundou a mão de Lia. Ela desejou novamente se comunicar com o animal e o calor preencheu seu braço, seu peito, seu corpo. Ela repetiu o pedido diversas vezes em sua cabeça e tomou fôlego.

Quando abriu os olhos, estes agora tomados de um verde incandescente, viu o animal curvado para ela. Lhe saldando.

O calor se dissipou rapidamente e ela afrouxou o aperto da mão. Seus olhos voltaram ao tom normal e a mesma suspirou, derrotada.

— Não deu certo.

É claro que deu, minha Deusa.

Lia se sobressaltou e a areia fina do fundo do mar se ergueu ao movimento de seu corpo.

— Você agora está falando?

Apenas em seus pensamentos, minha Deusa. Sou sua guia até o templo, onde sua mãe a espera.

Lia sentiu a boca ficar seca e encarou o búzio na palma da sua mão. Ela tinha poderes. Ela era uma Deusa. E agora podia conversar com a tartaruga.

Animada ela puxou o animal e o abraçou.

— Eu consegui! Eu consegui!

Sim, minha Deusa. Você conseguiu.

Liana se afastou da tartaruga e a segurou na altura dos seus olhos.

— Não me chame de Deusa a cada frase. Ainda é estranho para mim.

O animal fechou os olhos em reverência.

Como desejar.

Um sorriso animado surgiu no rosto de Lia. Ela podia salvar Pierre. Agora ela sabia que podia e como podia. Tinha poderes!

Encarando o caminho de mar aberto logo a frente Liana pensou sobre seu encontro com sua mãe. Ela podia conversar com a Deusa e lhe pedir o coração do pirata de volta. Ela podia ser compreensiva e lhe ceder esse pedido.

Um bolo ficou na garganta de Lia com esse pensamento.

Se a Deusa realmente fosse uma boa pessoa não teria roubado para si o coração do pirata, privando-o de emoções.

Mas tinha que ter uma explicação. E Lia iria descobri-la.

— Vamos?

Sim.

Juntas elas voltaram a serpentear pelas rochas e corais, deixando para trás o auditório e chegando a um espaço quase vazio de vegetação. Havia nele uma trilha com rochas espaçadas e foi nelas que a dupla se baseou para seguir.

Minutos depois Lia já estava novamente cansada. Seus pés doíam e as pernas estavam bambas. Naquele espaço a correnteza parecia mais forte do que as anteriores e a jovem precisava de ainda mais esforço para avançar.

Suspirando pesarosamente Lia deu mais um passo.

Está cansada?

— Sim, a força da água está acabando comigo.

O mar não foi feito para corpos humanos.

Lia fez uma careta.

— Eu percebi.

Mas você é uma filha do mar.

A jovem estancou.

— O que está querendo dizer?

A cabeça pequena virou-se para ela como se estivesse dizendo o óbvio.

Você pode invocar sua cauda sempre que quiser.

Surpresa Lia encarou o animal como se ele tivesse três cabeças.

— E você só me diz isso agora?

Ela imaginou que a tartaruga teria rido se pudesse.

Você não me perguntou antes.

Balançando a cabeça e deixando de lado as palavras do animal Lia se concentrou, tocando suavemente no búzio, agora de volta a seu pescoço.

Desta vez o mar foi mais rápido do que ela e não só calor a envolveu como um pequeno redemoinho fez pressão sobre si.

Peça por sua verdadeira forma, Deusa.

E foi o que Lia pediu.

O mar atendeu ao seu pedido girando-a num córtex suave. Calor e frio atingiram o corpo da jovem e ela lentamente parou de girar enquanto o mar se acalmava. Lia abriu os olhos receosa, sem saber o que encontrar, mas os olhos arregalados de sua companheira de viagem lhe deram uma noção do que havia se tornado.

Lia já não sentia seus pés tocarem o chão ou a dor que eles antes carregavam. Em vez disso seu corpo se movia quase que instintivamente e no lugar de pernas havia uma cauda avermelhada.

Ela tocou receosa nas escamas que a cobriam, deixando-a quase cintilante, e sentiu uma maciez incomum. Girou em seu próprio eixo, buscando um equilíbrio que naturalmente já possuía, e balançou a cauda suavemente.

Ela controlava aquilo. Ela sentia aquilo. Era uma extensão sua. Sua verdadeira forma.

Lentamente ela tocou no resto do seu corpo, agora envolto em finas escamas, imperceptíveis a não ser pelo toque. A roupa que usava antes havia desaparecido e seu busto estava nu.

Lia corou e cobriu os peitos, mas a tartaruga não parecia se importar com esse detalhe, maravilhada com o todo que a sua “deusa” havia se tornado.

E foi quando o olhar do animal subiu para seus cabelos que Lia notou. As madeixas, antes castanhas, agora tinham o mesmo tom da cauda, um vermelho vibrante.

— Eu estou ruiva – murmurou para si tocando nos cabelos agora mais macios do que nunca antes estiveram.

Sim, minha Deusa. Essa é sua verdadeira forma. Completa. É exultante.

Lia não quis retrucar ao dizer que gostava dos seus cabelos castanhos e às vezes ásperos, mas aceitou de bom grado a ajuda que uma cauda faria em baixo da água. Ela mesma já podia sentir a diferença entre ela e suas pernas.

Não havia mais pressão contra seu corpo, ou correntezas muito fortes. A água passava suave por seu corpo, mais numa carícia do que num movimento grosseiro.

De algum modo ela estava pronta para encarar sua mãe. Para encarar o mar. Para salvar seu capitão.

Impulsionando a cauda Lia começou a nadar, seguindo o caminho, e foi tão rápido que ela se sentiu culpada por deixar o animal para trás. Mas em segundos a tartaruga estava ao seu lado, nadando no seu ritmo. Lia sorriu.

Sou seu guia, minha Deusa. Estarei ao seu lado.

•••

O suposto templo chegou antes do que Lia havia previsto e ela agradeceu a sua mais nova cauda. A construção era totalmente submersa e aberta, com colunas robustas sustentando todo seu domo. Parecia mármore, mas quanto mais a jovem se aproximava, mais o material lhe parecia estranho.

Parada na entrada do templo, com um vislumbre mínimo de seu interior e do brilho dourado, Lia tomou fôlego. Era um momento importante aquele, de reencontro. Ela nunca pensou que algum dia encontraria sua mãe, sua verdadeira mãe. Menos ainda que ela seria uma Deusa do mar.

Nem mesmo em meio a todo o caos com o sequestro e o acordo Lia não havia pensado sobre como seria o encontro com sua suposta mãe. E lá estava ela, se encaminhando para ele, da forma mais inusitada possível.

É aqui que nos separamos, minha Deusa.

— Espere – ela virou-se para o animal – como farei para voltar de onde vim?

Você saberá, minha Deusa. O mar é uma extensão​ de você. Você sempre saberá para onde ir.

Lia engoliu em seco, não muito certa das palavras da tartaruga-guia, mas assentiu, tomando fôlego. Uma coisa de cada vez Liana, uma coisa de cada vez, repetiu para si.

— Muito obrigada por me trazer até aqui.

Os olhos negros brilharam.

É meu dever, minha Deusa.

— Mesmo assim, obrigada – sorriu – nos vemos por aí.

O animal permaneceu calado para as palavras da jovem e Lia novamente encarou a construção. Tomando mais um fôlego ela começou a nadar para dentro, deixando para trás a tartaruga, o espírito e provavelmente toda a coragem que a colocou naquela viagem maluca.

A parte interna do templo tinha um grande espaço em seu centro, rodeado de ouro e joias preciosas. As colunas que o cercavam sustentavam plantas luminosas que refletiam no dourado que predominava lançando sua luz para todos os lados.

O templo era um emaranhado de ouro e mármore e logo a frente, num trono de conchas, estava sentada uma bela mulher.

Ela tinha longos cabelos avermelhados, no tom de sangue, e tinha olhos de um verde intenso. Sua pele refletia o ouro da sala, mas era tão pálida quanto o tom do mármore ao redor. Sua boca era cheia e sustentava um sorriso malicioso.

No lugar de pernas uma longa e cintilante cauda negra chacoalhava a água ao redor, em ansiedade.

Quando Lia finalmente focou na figura sentada no trono e se deu conta de que ela era a única ali, percebeu também que estava frente a frente com a sua mãe. Sem notar seu corpo a impulsionou para mais perto e as semelhanças surgiram logo em seguida.

O nariz reto, os olhos redondos, a boca cheia. Os cabelos vermelhos, agora parecidos com os dela. Aquela mulher, não, aquela sereia a sua frente era sua mãe. Era Nagisa, uma Deusa do mar.

— Bem-vinda, minha filha.

A voz era melódica e sensual. O sorriso nos lábios avermelhados acompanhou suas palavras e ela se levantou, nadando para o centro do templo, na direção da garota.

Lia prendeu a respiração e observou seus movimentos delicados e suaves, diferentes dos seus. Tentando manter a postura ela se manteve ereta e acenou com a cabeça frente a saudação.

— Olá, mãe.

A mulher pareceu radiante e se adiantou, tocando informalmente nos cabelos da filha.

— Você está tão bonita quanto achei que estaria. Um colírio para os olhos – ela deslizou o olhar pelo corpo de Lia – e um desperdício para o mar.

As palavras da mulher não fizeram qualquer sentido para Lia, mas ela as relevou.

— Mãe, tenho um pedido.

Os olhos verdes faiscaram e Nagisa olhou para Lia, indicando que poderia continuar.

— Eu gostaria de pedir de volta o coração de Pierre.

A risada da sereia reverberou na construção ao redor.

— Quem é esse?

Li sentiu suas entranhas se contraírem.

— Um pirata. Um pirata que se apaixonou por você há muitos anos. Ele está perdido agora sem seu coração. Por favor, vim pedir-lhe para devolvê-lo. Um pedido como sua filha.

O que atravessou os olhos verdes de Nagisa embrulhou o estômago de Lia.

— Sim, sim, um coração – ela nadou de volta para o trono pegando uma taça apoiada no braço do mesmo – mas não faço ideia de quem seja, querida.

Quando a Deusa se virou novamente para Lia todo o encanto que a cobria pareceu esvanecer. Nagisa era linda, mas algo em seus olhos deixava o coração de Lia apertado.

— Foram longos anos brincando com o coração de homens por aí – ele bebeu da taça – roubando corações e vendo-os sofrer. Era um ótimo passatempo.

Lia recuou enxergando finalmente a verdadeira face da Deusa delicada e encantadora. O sorriso nos lábios dela não era malicioso, era maligno.

— Então não sei quem é Pierre – ela olhou novamente para a filha – e não sei de onde tirou que eu atenderia seu pedido, querida.

— Como assim?

— Ora, achou que nosso reencontro de mãe e filha seria amoroso?

A risada de escárnio atravessou o corpo de Lia enquanto Nagisa se aproximava a nados rápidos. Ela parou na frente da jovem e avaliou seu rosto, segurando com força seu maxilar.

— Você é bonita demais. Jovem demais. Não vou ceder meu trono à você.

— Não quero a merda do seu trono – Lia rosnou desvencilhando das mãos da mulher com um tapa – a única coisa que quero de você é o coração de Pierre.

Os olhos de Nagisa brilharam com a afronta e Lia sentiu na boca o gosto do nojo que sentia daquela mulher. Ela não a via como filha e tão pouco Lia a veria como mãe.

A risada de Nagisa reverberou.

— Que engraçado você me desafiar dessa forma. Seu pai com certeza teria orgulho de você – ela riu novamente – se eu não o tivesse matado.

Os olhos de Lia se abriram em surpresa. Ela não pensou sobre encontrar seu pai, mas antes mesmo que o fizesse aquilo se tornava impossível. Seu pai estava morto?

— Está surpresa? – ela riu – É o mínimo que eu poderia fazer com o tolo que me engravidou.

Ela cortou Lia com o olhar.

— E eu teria feito o mesmo com você se aquele maldito espírito não tivesse fugido com você.

Nagisa jogou a taça contra uma coluna, estilhaçando-a. A raiva começou a ondular ao redor da mesma.

— Estúpido espírito do mar – riu com desdém – olhe onde estamos agora. Finalmente juntas.

O sorriso cruel no rosto da sereia arrepiou Lia, mas ela não recuou, rebatendo o olhar da mesma.

— E eu finalmente posso matá-la com minhas próprias mãos.

Nagisa ameaçou alcançar Lia com suas unhas, que a jovem notou serem afiadas, mas ela interceptou seu braço, segurando-o com força. Não ligava que sua mãe quisesse matá-la, jamais esperou qualquer consideração da mulher que a abandonou na infância.

Mas raiva começava a se acumular dentro de si. Raiva por Pierre, que fora apenas um peão nos jogos cruéis daquela Deusa. Apenas um passatempo. Um brinquedo. Um dado a ser jogado de um lado para o outro.

A dor daquele homem ainda a atingia. Ela sabia que ele estava desesperado quando sequestrou sua irmã. Sabia que todos no barco estavam envolvidos intensamente com a busca do capitão.

Algo tão importante para ele tratado como lixo.

Ódio gritou dentro de Lia.

— Não chegue perto de mim – rosnou a jovem soltando o braço ao jogá-lo para o lado.

Nagisa sorriu com divertimento, mas seus olhos estavam temerosos.

— O que está fazendo? Lutando por sua vida? Não vai ser tão fácil escapar assim de mim.

— Quando me disseram que minha mãe era uma Deusa do mar, eu não acreditei. E aqui, na sua frente, eu ainda não acredito.

A expressão no rosto de Nagisa se tornou confusa.

— A mulher aqui na minha frente não é uma Deusa. Você é um monstro – cuspiu as palavras – você é uma criatura hedionda e maligna.

Em vez da expressão sorridente e de superioridade Nagisa franziu o cenho com raiva.

— Que pirralha insolente!

Nagisa avançou e Lia se esquivou, abrindo um sorriso de escárnio. O mesmo que sua mãe fizera.

— Você é podre, não merece sua posição. Seu lugar é no fundo do mar com as bestas mais horrendas que existirem.

Um grunhido de Nagisa e uma rajada de água foi o que Lia recebeu, lançando-a para o lado. Ela piscou, atordoada pela pancada, mas permaneceu firme. Os olhos fixos na mãe e a boca expressando seu nojo e desgosto.

Ela precisava, acima de tudo, arranjar uma forma de escapar. E aprendera com Nathan que a melhor oportunidade é dada quando a guarda do outro está baixa. E era isso que ela iria fazer, apesar do nojo e da repulsa crescentes dentro de si.

— Eu vou matá-la!

Nagisa juntou as mãos e conjurou poder. Lia tremeu, mas não recuou pedindo silenciosamente ao mar ajuda. Quando o raio partiu na direção de Lia e ela, por reflexo, tentou rebatê-lo a água ao redor se moveu, afastando-o.

Antes que pudesse ficar tão perplexa pela facilidade com que se livrou do raio quanto Nagisa a jovem pensou rápido e ao olhar para as colunas uma ideia surgiu.

— Sua...!

Nagisa ameaçou atacar novamente e Lia se preparou. Quando a mulher avançou, já não confiando mais em seus poderes, a garota ergueu os braços impulsionando-os para as colunas.

A água entendeu seu chamado e destroçou primeiro o pilar da direita, roubando a atenção da Deusa. Quando o da esquerda vacilou e Lia rodou, atingindo todos ao redor, a construção começou a desmoronar.

Sem a atenção da mãe sobre si Lia deslizou entre algumas colunas que já caiam para fora do templo, nadando o mais depressa que pôde para longe dali. Ela ouviu o grito de raiva, sentiu as ondulações dentro da água e o desabar do templo marinho.

Sem cansar Lia se afastou mergulhando e se enroscando em algas baixas, afim de apagar qualquer rastro. Quando sentiu que finalmente podia respirar ela desabou sobre uma rocha, assustando algumas espécies de peixes ao seu redor.

Sua vida estava preservada, mas ela estava perdida. Não fazia ideia de onde estava, ou onde estava a tartaruga que lhe ajudou. Ou até mesmo o espírito do mar.

Gemendo de indignação ela socou a pedra tentando raciocinar. Precisava achar um jeito de voltar para terra. Para Ana e Cadu. Para Kevin. Para Pierre.

Tomando fôlego ela agarrou o búzio e desejou. Sentiu que seus poderes estavam fracos e seu estômago embrulhou. Mas timidamente o calor lhe cedeu o desejo, envolvendo seu corpo. No instante em que ele se dissipou e Lia abriu os olhos, ainda cheios de poder e incandescentes, ela sabia para onde ir.

Lia alçou nado e subiu, se mesclando a natureza selvagem que a circundava. Foi para a direita, para a esquerda, desceu mais uma vez e subiu, quase enxergando a superfície. Quando seu corpo de sereia lhe indicou o local ela se apressou e antes que percebesse sua cauda cedeu lugar a pernas e a superfície eclodiu, com o vento salgado atingindo o rosto da jovem antes dela sentir a areia firme sob seus pés.

Lia agradeceu ao mar e cambaleou, saindo da água e sentindo a brisa fria da noite cobrir seus membros. Ouviu gritos e abriu os olhos.

A surpresa com o que viu lhe deixou muda.

Na beira da praia, com lanternas e botes, prontos para o resgate estavam Pierre, Kevin e sua tripulação. Os marujos começaram a gritar em polvorosa quando a avistaram e Pierre acenou com a lanterna para alguns mais distantes.

No momento em que ela saiu da água, agora de volta a suas roupas e cabelo, Lia desabou de joelhos na areia fofa. Kevin correu até ela, preocupado, e a surpresa em seus olhos indicou que algo estava diferente.

Mas ela inteira estava diferente. Seu corpo e seu coração.

Pierre se aproximou, gritando para que os homens voltassem, para ajudá-la de volta à mansão. Kevin, entretanto, tomou a dianteira a apoiou em seu ombro.

— Me desculpe não tê-la ajudado naquela hora.

— Não foi sua culpa – ela começou a se forçar a andar, quase sem força nas pernas.

— Ainda bem que você está viva – o loiro sussurrou e Lia não conseguiu evitar sorrir, deixando-se apoiar ainda mais nele e em seu calor.

Lia começava a sentir a falta de sua cauda, da liberdade do nado e da água em sua pele. Dando uma última espiada no mar escuro e sombrio atrás de si ela se perguntou o que Nagisa faria agora que ela havia fugido.

Na verdade, Lia começava a pensar no que ela faria agora. Com poderes podia ir atrás do coração de Pierre e levar Ana e Cadu em segurança para casa. Essa certeza tomou todo seu corpo quando ela, ainda com a ajuda de Kevin, avistou a mansão surgir entre as rochas.

— Amanhã conversaremos sobre o que aconteceu – anunciou Pierre – por hora você precisa descansar – ele demorou os olhos nela por longos segundos – você está péssima.

Lia sorriu para o homem, mas ela não iria descansar. Não enquanto não fizesse o que tinha que ser feito.


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Notas finais do capítulo

Hihi, o encontro mais esperado de todos os sete mares!



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