Glasses stay on escrita por HausOfVal


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Notas finais e boa leitura!



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Dias ruins são normais na rotina de todos, todavia, isso não nos torna mais preparados para vivê-los. No dia ruim em questão, Zelda Spellman estava correndo entre as escadas, se amaldiçoando por não ter lido a previsão do tempo no dia anterior, concentrando-se apenas nas notícias recentes da cidade, e consequentemente ficando quarenta e cinco minutos presa em uma tempestade. 

Assim que chegou no andar da sala que dividia com a Srta. Wardwell, notou que aquele não era um dia ruim apenas para ela. 

“Tia Mary, onde está a Tia Z? Eu estou tentando encontrar a continuação de meu livro, mas está muito difícil. Eu preciso da sua ajuda!” Uma voz infantil foi ouvida. 

“Eu irei te ajudar em apenas alguns minutos Matheus, antes eu preciso...” 

Antes de ouvir mais, a ruiva invadiu a sala e encontrou Mary inclinada em sua mesa, com a agenda de anotações de Zelda em sua mão enquanto finalizava o empréstimo de um livro de poesia para gêmeas. Quando o olhar de Zelda encontrou o de Mary ela soube que era melhor se manter calada. 

Passando pela mesa abandonada da morena, ela notou o dono da voz que ouviu no corredor encostado na madeira de braços cruzados. 

“Lhes dei duas semanas, então ouvindo, meninas?” 

As duas garotas acenaram com a cabeça em afirmação e saíram correndo da biblioteca. 

“Não corram!” A voz de Zelda saiu mais grave do que pretendia enquanto soltava a bolsa ao lado de onde as costas de Mary estavam apoiadas. 

“De nada!” Foi o sussurro que a morena direcionou a ela antes de seguir com o menino negligenciado em direção as prateleiras de livros de geografia hídrica. 

 

Conforme o dia foi passando, a frustração de Zelda por ter chegado atrasada e, principalmente, por ter recebido a ajuda da morena a sua frente, acabou tornando o dia de Mary ruim também. 

A única coisa que a morena precisava era de pleno silencio para finalizar o romance que estava lendo, coisa que ela já teria feito caso Zelda Spellman não tivesse chegado no trabalho atrasada. 

Eram apenas duas dúzias de folhas e tudo estaria finalizado, mas é claro que a ruiva teria que estragar isso também. 

Outra coisa sobre dias ruins é que eles instigam comportamentos ruins. Talvez com qualquer outra pessoa, as respostas curtas e grossas da Spellman mais velha seriam o comportamento incomodo, mas a morena dos olhos azuis, depois de quase dez anos trabalhando com Zelda, já estava mais que acostumada. Ela se definia “agraciada”, justificando sua gratidão a não precisar trocar mais de 5 frases diárias com a ruiva. 

Mas o comportamento ruim do dia foi, sem sombra de dúvida, o que mais roía a paciência de Mary. Se a morena de olhos azuis recebesse a visita de um gênio, que por sua vez a oferecesse um único desejo, a caneta azul batendo ritmicamente contra a madeira da mesa de Zelda Spellman enquanto Mary tentava se concentrar em sua leitura, seria incendiada ainda nas mãos da ruiva. 

Mary já sabia que isso era uma mania da ruiva, por isso sempre tentava não interferir, mas hoje ela realmente precisava de silencio. 

“Você pode parar?” 

“Como?” O rosto de Zelda, antes inexpressivo, agora se mostrava enrijecido graças a sobrancelhas unidas. 

“A caneta!” Ainda acreditando que voltaria a sua leitura pacífica, a morena apenas salvou a página em que parou com o dedo anelar enquanto olhava para a mulher da mesa em sua frente. 

“Oh...” E a caneta foi solta na mesa com um baque surdo. 

O livro foi aberto novamente, mas antes que os olhos de Mary focassem no parágrafo que ela tinha parado, a voz de Zelda foi ouvida novamente. 

“Para uma pessoa tão indescritivelmente educada e gentil, você não está fazendo seu trabalho direito, não é?” Quando a boca da morena se abriu, indicando alguma resposta, Zelda a interrompeu, “mas não tem problema! De nada!” 

E nesse momento, toda a vontade que a caçula das irmãs Wardwell tinha de finalizar seu livro se esvaiu como pó. 

 

Conforme a tarde iria passando, a atmosfera da biblioteca não se tornava mais agradável, muito pelo contrário, todavia o mais desesperador ainda estava para acontecer. 

Zelda se levantou para ir almoçar primeiro e Mary a seguiu. Como o habitual, ambas sentaram distantes uma da outra e em menos de uma hora voltaram a seus postos. 

Entretanto, após abrir a sala, antes mesmo que ambas sentassem em seus lugares, uma garotinha negra passou por elas correndo, se dirigiu até o final das prateleiras, sentou no chão, retirou os óculos que tinham uma mistura de rosa e transparente e falhou ao tentar conter suas lágrimas. 

Crianças chorando baixinho em uma biblioteca é provavelmente a única coisa que instiga a empatia de todos. Incluindo das duas mulheres que agora assistiam perplexas. 

“Você a conhece?” O sussurro da ruiva saiu o mais baixo possível, e recebeu como resposta um aceno de cabeça negativo. 

Calma, Mary seguiu em direção a criança, deixando sua colega de sala curiosa para trás. Chegando onde a menina estava, a mulher de expressivos olhos azuis segurou a saia lápis próxima aos joelhos enquanto se sentou no chão, exatamente em frente a criança que agora chorava com a cabeça enterrada nos joelhos. 

“Olá,” a morena iniciou contato, preparada para esperar o tempo que fosse necessário por uma resposta. 

“Oi.” 

“Meu nome é Mary Wardwell, mas você pode me chamar de Tia Mary, como as outras crianças.” 

“Eu.... Eu sou a Leticia. Me desculpe, eu não tenho um outro nome... Eu era Blackwood mas não sou mais....” E assim, a criança começou a chorar novamente. 

Uma rejeitada é a coisa que mais feria o coração da morena. Já sentindo seus olhos nublarem, ela direcionou seu olhar para um livro rosa na estante ao seu lado. O retirando da prateleira, ela notou que se tratava de um conto de fadas e teve uma ideia. 

“Você sabe, a princesa Cinderela não tem sobrenome também.” 

“Não?” Pela primeira vez, a menina levantou o rosto e expos grandes olhos caramelos, vermelhos do choro porem repletos de curiosidade. 

“Não,” Mary respondeu enquanto lhe entregava o livro. 

“Oh.” 

Agora a menina estava muito preocupada examinando o conteúdo do livro, folheando as páginas rapidamente a procura das figuras. Assim que ela encontrou a primeira, pegou os óculos que estavam no chão ao seu lado, mas ao invés de colocá-lo do rosto, ela hesitou e os soltou novamente. 

“Esses óculos bonitos são seus?” 

“São sim, Tia Mary,” a hesitação em sua voz estava clara, seja pela maneira estranha que ela chamou a morena ou por estarem falando do objeto ao seu lado, mas os olhos castanhos continuavam focados nos azuis. “É só que.... Gabriel disse que.... que meninas não ficam bonitas com óculos e é por isso que eu fui devolvida.” 

Antes que Mary tivesse tempo de formular uma resposta, a garotinha já tinha seu olhar borrado em novas lagrimas. Sua cabeça estava um breu, até que um barulho de objetos se chocando e saltos conhecidos, em uma sinfonia rítmica e frenética, se aproximavam dela. 

Olhando pra cima, a caçula das irmãs Wardwell encontrou Zelda com óculos de leitura no rosto e estendendo os de Mary pra ela. Os óculos da ruiva eram, quase por completo, gravados de uma estampa de leopardo. Muito diferentes dos da morena, pretos e lisos. 

Sem perguntas, a mulher pegou os mesmos, colocou no rosto e se arrastou para o lado, oferecendo espaço caso a ruiva quisesse se sentar também. Ao contrário da mesma, Zelda se agachou no chão, preocupada com alguma eventual mancha em sua saia de cor goiaba. 

“Eu não acredito nisso,” foi o que Zelda respondeu, atraindo a atenção de Leticia, que por sua vez, dividiu olhares entre as duas mulheres. “Eu sou Zelda Spellman, mas você também pode me chamar, como as outras crianças, de Tia Z.” 

“Vocês também usam óculos!” Um sorriso legítimo surgiu em seus lábios, até que ela focou seu olhar novamente nas figuras do livro. “Mas princesas não usam óculos...” 

“Bom...” A voz de Mary foi ouvida, monopolizando a atenção das duas. “Princesas sempre são diferentes umas das outras. Ou você conhece alguma pessoa que usa sapatos de cristal?” 

Olhando para a figura do livro, seus próprios pés, e depois para os das mulheres a sua frente ela balançou a cabeça negativamente. 

“Você usa saltos pretos... E você usa saltos rosa...” 

“Você está certa! Quantos anos você tem Leticia?” Focando nos olhos verdes, a garotinha levantou os dedinhos mostrando o número quatro para Zelda. “Isso é muito legal! Quatro anos é a idade que princesas se descobrem princesas!” 

“É sério?” 

“Sim. querida!” 

“Mas.... eu não sei muitas coisas sobre princesas.” 

“Então vamos fazer o seguinte, sempre que você quiser aprender sobre princesas, pode vir até aqui e eu ou Zelda podemos ler para você, tudo bem?”  

A garota agora esfregava o rostinho, limpando as lagrimas, enquanto acenava positivamente com a cabeça para Mary. 

“Mas com uma condição!” Não focando no horror que se encontrava no rosto de Leticia, Zelda pegou os óculos de grau do chão e continuou. “Seus óculos continuam em seu rosto!” 

A menina ficou um tempo em silencio, como se estudasse as possibilidades. Concluindo que a condição era justa, deixou a ruiva colocar os óculos em seu rosto e, num gesto inesperado, puxou as duas mulheres em sua frente para um abraço. 

 

Mary Wardwell usa óculos de grau desde a infância e nessa época ela criou o estranho hábito de apertar o nariz para colocá-los de volta no lugar quando os mesmos começam a escorregar. Zelda notou isso menos de dois meses depois de começar a trabalhar com a morena de olhos azuis, mas mesmo depois de dez anos a ruiva ainda não tinha descoberto o porquê de a mesma sempre parar e retirar os óculos quando notava a ação automática. Porém, desde que Leticia começou a frequentar a biblioteca, os óculos não eram mais retirados. 

Uma parte de Zelda, que era sempre ignorada, ficou feliz com isso pois sempre via algum tipo de conforto em olhar para a morena e encontra-la com o nariz franzido e a garotinha no colo. 

Nos primeiros dois meses, as mulheres simplesmente diminuíram seu horário de almoço para lerem as histórias para Leticia, esperando que, como qualquer outra criança, ela se enturmaria com os novos colegas e eventualmente deixasse de visitar a biblioteca diariamente. Ambas estavam erradas. Mesmo com amigos e aulas, a menina aparecia todos os dias saltitante e ansiosa para ouvir as histórias que uma das duas bibliotecárias contaria para elas. 

Depois de quatro meses, as duas tinham marcado antecipadamente seus respectivos dias contando histórias para Leticia e feito listas de livros a serem lidos. Eram apenas vinte minutos, entretanto estava tudo milimetricamente anotado na agenda de Zelda e no calendário de Mary, afinal de contas elas cobriam uma a outra enquanto isso acontecia. 

Depois de seis meses, Mary se sentava na mesma mesa que Zelda na hora do almoço. Não que elas quisessem ou apreciassem ainda mais momentos juntas, muito pelo contrário, o motivo da súbita mudança de rotina foi a crise de choro de Leticia ao encontrar Zelda fumando sozinha. As palavras da garota estavam tão perdidas em meio de soluços que a ruiva quase não entendeu o motivo do choro. 

“Você e a Tia Mary não são mais amigas? É por isso que você está sozinha?” 

“Oh querida, é claro que nós ainda somos amigas,” uma parte dela gostaria de gargalhar de si mesma com, provavelmente, a maior mentira que ela já contou a alguém. 

“É que eu vi vocês longe hoje no almoço.... E.... E agora você está sozinha... E...” 

“Leticia, ouça a Tia Z,” assim as palavras pararam de saltar da boca da criança, Zelda se agachou no chão, exatamente como da primeira vez e continuou, “ela só não está aqui porque não fuma.” 

“Oh...” Os olhos dela estavam no rosto de Zelda, mas eles se perderam quando a menina abaixou a cabeça. 

“Leticia, diga o que está na sua mente.” 

“Por que... você não para de fumar e vai ficar com ela, Tia Z? Pra que ela não fique sozinha?” 

“O que você quer dizer?” 

“Ela me disse que morava com a irmã, mas que ela se mudou quando se apaixonou... E agora ela está sozinha... Ela disse que não fica triste porque a irmã está feliz, mas.... Eu fico triste quando estou sozinha.” 

Absorvendo mais informações sobre Mary do que recebeu da mesma em anos, Zelda começou a falar. 

“Você quer saber um segredo?” Antes de sinalizar afirmativamente com a cabeça, ela olhou para os dois lados e se aproximou da ruiva, como se estivesse se certificando de estarem realmente sozinhas para compartilharem entre si o tal segredo. “Eu também morava com minha irmã e meu irmão, e eles também se apaixonaram por outras pessoas e foram morar em outro lugar.” 

“E você não fica triste?” 

“Não, porque eu amo trabalhar aqui.” 

“E porque você tem a Tia Mary... E a Tia Mary tem você.” 

Zelda queria corrigi-la. Simplesmente dizer que não era bem assim, mas os olhos castanhos antes desesperados estavam repletos de calmaria e felicidade. Zelda não tiraria isso dela. 

Quando a Spellman mais velha pediu para Mary começar a almoçar com ela todos os dias da semana, a morena riu. Entretanto, no momento que ouviu o que aconteceu, ela estava extremamente disposta a compartilhar mais uma hora por dia com Zelda. 

Do mesmo jeito que existem dias ruins, também existem dias bons. E esse, para variar um pouco, era um dia bom. Zelda foi quem chegou primeiro na biblioteca, e aproveitou o céu limpo para abrir as janelas e cortinas de ambos os lados da sala. Antes de terminar de prender os tecidos, para que o vento não os retirasse do lugar, saltos rítmicos soaram no corredor. 

“Bom dia, Zelda Spellman!” 

Com as sobrancelhas franzidas, a ruiva girou os calcanhares em direção a porta, encontrando uma morena incrivelmente feliz, já com os óculos de grau no rosto, enquanto mastigava algo. 

“Bom dia, Mary Wardwell! Fico feliz que esteja tão.... feliz!” 

A morena terminou de mastigar e engoliu, usando o tempo para procurar ironia no rosto da ruiva. Surpreendentemente, ela só encontrou um sorriso gentil. 

Se perdendo nele, Mary tentou se lembrar a última vez que viu Zelda sorrir assim sem um motivo, sem nada para instigá-la. 

Ela sorria quando Hilda vinha visita-la na biblioteca. Ela sorria quando Leticia dizia algo inteligente ou inesperado. Ela sorria quando ouvia uma piada. Mas nunca sorria apenas por sorrir. 

“Obrigada!” A morena respondeu, notando que estava divagando demais, e, antes de jogar o pensamento para longe, suas bochechas esquentarem. 

Soltando a bolsa marrom em cima da sua mesa, Mary pegou o pote com os biscoitos que tinha assado ontem e estendeu em direção a ruiva. 

“Você quer um?” 

“Está envenenado?” O sorriso de Zelda não deixava seu rosto enquanto ela se aproximava de Mary. 

“Eu vou me privar de responder você,” os olhos azuis rolaram, mas seu sorriso também persistia enquanto o pote balançava em sua mão. 

A ruiva apenas pegou o doce e levou aos lábios. Mil e um tipos de comentários perversos ou irônicos passavam por sua mente, mas quando o gosto de mel e açúcar de confeiteiro tocou sua língua, tudo se dissipou. 

“Isso é realmente muito bom!” Antes mesmo de se policiar, Zelda já estava, com a mão sobre a boca cheia, falando o que achava. 

Com isso, duas novas tradições na sala 2456 do Orfanato de Santa Angela foram iniciadas. A primeira foi sutil, apenas um bom dia, que por sua vez é sempre proferido por quem chega por último. A segunda foi que, sempre que Mary Wardwell assasse algo doce, ela traria um pouco para Zelda. As vezes ela sabia que a ruiva estava de mal humor, por isso sutilmente colocava o pote ao lado da bolsa de Zelda enquanto ela parava o trabalho para fumar. 

Esses atos tornaram o trabalho delas mais agradável. “Amiga” não era a palavra que usariam para descrever uma a outra, mas, de alguma forma, o desprezo e a indiferença que antes existia naquela biblioteca não era mais uma constante. 

Naquela tarde, Leticia chegou quase dez minutos atrasada na biblioteca. 

“Olá querida, está tudo bem?” Zelda perguntou, estranhando o atraso da menina. 

“Esta sim.... Eu só....” 

“Sim...?” Foi a vez de Mary incentivar. 

“Queria sapatear, vi a professora Lisa fazendo e achei tão bonito.” 

“Leticia, você gostaria de aprender? Acredito que Lisa não se importaria se tivesse uma nova aluna.” A voz de Zelda se fez presente enquanto se levantava da cadeira atrás de sua mesa e seguia em direção a menina. 

“Mas.... Eu teria que me apresentar...” 

O Orfanato de Santa Angela era o único em funcionamento em Greendele e seus arredores. Cada ano se tornava mais difícil manter as portas abertas, então, apenas cinco anos atrás os responsáveis por manter as economias do lugar funcionais teve uma ideia. 

Todo o ano ocorreriam três shows de talentos nesse orfanato, que seriam abertos para a comunidade, seu proveito seria simplesmente pra arrecadar fundos pra o orfanato ou até instigar o interesse da sociedade na adoção. Algumas crianças simplesmente viam isso como uma oportunidade de se mostrarem visíveis, já outras tinham medo de uma eventual falha em meio a uma multidão. Nesse momento, Mary temia que Leticia fosse uma dessas crianças. 

“Você não quer se apresentar?” 

Como se fizesse uma planilha mental comparativa entre pós e contras, a pequena colocou uma mão no queixo e olhou para o chão, retirando um sorriso esboçado de ambas as mulheres. 

“Se eu me apresentar.... vocês vão me assistir?” 

Com absoluta certeza, não era o que as mulheres esperavam ouvir, mas assim que entenderam o que significava ambas colocaram sorrisos em seus rostos e acenaram positivamente. 

“Vocês prometem?” 

“Sim, querida, é claro que nós iriamos te assistir.” A voz de Mary soou calma e Zelda a acompanhou com um sorriso gentil. 

“Então eu vou, e vou dançar tão bonito quanto a Professora Lisa.” Antes de obter uma resposta, a garotinha já estava correndo em direção a porta porem, como se lembrasse de algo, ela parou e voltou a falar com as duas mulheres. “Quando eu não tiver me apresentando, vocês ainda vão ler pra mim?” 

“É claro, querida, sempre que você quiser, nós estaremos aqui.” 

Assim, a pequena Leticia, que sairia sem se despedir, voltou e abraçou as duas mulheres, primeiro Zelda, já que a mesma já estava em pé, e depois Mary, antes de correr em direção a Sala de Dança. 

Meses se passaram e o que acontecia todos os dias se tornou um evento quase semanal. Apenas na terça e na quinta Leticia conseguia ir na biblioteca pois o resto de seus dias eram divididos entre aulas de sapateado e de postura. Mas os óculos de ambas continuavam no rosto o dia inteiro. O de Zelda era erguido acima da testa apenas quando não conseguia controlar a vontade de fumar, momento esse que retinha uma parte significativa de seu tempo antes, mas que agora, de uma cartela diária foi diminuído para 3 ou 4 cigarros isolados. 

Sempre que era questionada, a ruiva desconversava e dizia que já estava na hora de diminuir, mas algo em sua mente sempre a levava a pergunta que Leticia tinha feito a ela meses atrás e que a mesma tinha deixado sem resposta. 

“Por que... você não para de fumar e vai ficar com ela, Tia Z? Pra que ela não fique sozinha?” 

Quando o primeiro show de talentos chegou, Mary e Zelda estavam sentadas lado a lado, sorrindo feito bobas para a apresentação de Leticia. Era uma música calma, apenas alguns acordes de piano mais drásticos para desenhar e instigar o toque frenético dos pés. Leticia fez tudo lindamente, surpreendendo Lisa, mas não nenhuma das bibliotecárias. 

Quatro meses depois, quando o segundo show de talentos chegou, Zelda comprou uma pizza para ela e Mary, já que a morena surpreendentemente não tinha almoçado, ato esse que preocupou a ruiva. A música desta vez era mais animada, sendo justificada por Leticia ter mais tempo de ensaio, mas que ela fez tão lindamente quanto a primeira. 

Na saída, ela e Mary voltaram no carro da morena. O carro de Zelda estava causando incomodo com barulhos na estrada e uma onda de preocupação tomou conta da morena. 

“E se seu carro parar no meio da estrada? O que você vai fazer?” 

“Meu carro não vai parar no meio da estrada,” - e enquanto um sorriso brincava nos lábios da ruiva, Mary agarrou a bolsa de tons terrosos de Zelda e seguiu em direção a seu próprio carro. “Mary o que você está fazendo?” 

“Te levando para sua casa!” 

E sem argumentar, Zelda seguiu a morena com os braços estendidos no ar dramaticamente enquanto sorria. 

Isso era algo que Mary já tinha se acostumado. Anos atrás ela notou o quão dramáticos eram seus movimentos e falas da ruiva. 

Apontando objetos para provar seu ponto. As ondas do cabelo ruivo sempre contidas como se saíssem de uma novela melodramática, mesmo com seus movimentos de cabeça em meio a uma discussão. E enfim, apoio de cigarro vintage na cor dourada do mesmo tom de seus óculos. 

Antes essas características instigavam um sorriso sínico contido de Mary, mas hoje ela olhava para a mulher ao seu lado imaginando como a mesma era na adolescência e sorrindo genuinamente com o mero pensamento. 

Já três meses após o anterior, no terceiro show de talentos, Zelda chamou também Hilda, Dr. Cerberus, Ambrose, Edward, Diana e Sabrina para assistirem Leticia. E assim como Mary e Zelda, a pequena garotinha também conseguiu conquistar os seis. Hilda e Mary nunca trocaram mais de algumas frases cordiais quando a irmã mais nova de Zelda a visitava, mas hoje elas conversaram bastante junto com a filha adolescente de Edward e Diana. 

“Então... Essa é Mary...” O único homem da família Spellman puxou a irmã para longe, iniciando a conversa com um sorriso abusado após a apresentação de Leticia ser finalizada. 

“Sim, Edward, essa é Mary.” A ruiva respondeu, não compreendendo onde o irmão queria chegar. 

“Ela é bonita, não é?” 

Pela primeira vez, Zelda realmente prestou atenção na mulher a distância. Cabelos presos em um rabo de cavalo, como o usual, um vestido florido em tons de azul e verde, saltos e meias pretas, além de, é claro, seus óculos de grau. Como se soubesse que estava sendo observada, ela virou em direção a Zelda e sorriu. Em resposta a isso Zelda sorriu novamente, com as bochechas e o colo quente, se virando em direção ao irmão e a cunhada. 

“Sim, Edward, mas o que...” 

“E você gosta dela!” Diana se pronunciou, retirando um suspiro chocado de Zelda antes de continuar. “Está tudo bem, leve seu tempo! Mas que você gosta.... você gosta!” 

“Eu não vou responder as hipóteses insanas de vocês... Por favor, parem de ser patéticos!” E assim, Zelda deixou o irmão pra trás e foi aproveitar mais um tempo com o resto da família e a... amiga do trabalho. 

As vezes os dias são confusos, em um momento felizes, no outro tristes e então felizes novamente. O dia em questão estava chuvoso, e Zelda, que para variar, tinha lido sobre no jornal anterior, chegou adiantada no orfanato. Quinze minutos depois do início do trabalho, a ruiva estava preocupada com o súbito desaparecimento de Mary Wardwell. 

Como se ouvisse os pensamentos de Zelda, a morena entrou pela porta. A calça justa de alfaiataria poderia ter chamado a atenção de Zelda. A jaqueta de couro vermelha poderia ter chamado a atenção de Zelda. Mas o que realmente chamou foram os cabelos, provavelmente pela primeira vez em dez anos, lisos. 

Cachos densos e encaracolados não desciam pelas suas costas e se moviam conforme ela caminhava. Suas mechas estavam lisas, e sem movimento. Chegando em sua mesa, a morena simplesmente prendeu as mechas em um coque com uma das canetas disponíveis da mesa e sorriu sozinha enquanto se sentava na cadeira. Talvez a bolsa alaranjada deveria ter alertado Zelda, mas a mesma nem prestou atenção nisso e um dia que tinha começado neutro de tornou extremamente ruim. 

O motivo era simples, Mary Wardwell não tinha dado bom dia a ela. 

Parecia tosco e talvez até era, entretanto, a falta da simples frase tinha deixado um gosto amargo em sua boca. Mas tudo o que era ruim poderia piorar e isso aconteceu no momento que um homem de meia idade caucasiano entrou lá. 

Ele caminhou sorrindo, até que focou os olhos em Mary e se dirigiu a ela: 

"Olá, linda!" 

"Olá, lindo!" E contra todos os possíveis acontecimentos, eles se debruçaram em direção a mesa de madeira e ela o beijou. 

A cabeça de Zelda parecia que pesava o dobro, sua garganta tinha um gosto mais amargo que a nicotina pura, seu estômago se revirou, mas em momento algum ela desviou os olhos dos dois. 

Quem era esse homem para beijar Mary? Ele nunca a visitou aqui, nunca a acompanhou em nenhum lugar, nenhum show de talentos.... 

Ela continuou encarando, como se para provar a si mesma que aquilo estava acontecendo, até que seus olhos se cruzaram com o da morena a sua frente. Se Zelda estivesse menos irritada, talvez ela estivesse mais atenta para o sorriso que a morena a sua frente deu a ela. 

Infelizmente, Zelda estava muito ocupada tendo pensamentos repetitivos sobre quem era esse homem para chegar, soltar uma saudação clichê e simplesmente beijar Mary e uma parte esquecida de sua mente se perguntava pasma se era tão fácil simplesmente subir em cima da mesa de madeira a sua frente e encontrar os lábios dela... 

Mas uma ação se fez presente que mudou tudo. Assim que terminou o beijo, a mulher de olhos azuis na sua frente, que tinha os óculos escorregando pelo nariz, ergueu os mesmos com o dedo mindinho. 

Algo está errado. 

Enquanto tentava engolir essa informação, no mínimo inusitada, saltos com sons de oitavas frenéticas se fizeram presentes. 

"Bom dia, Zelda, me desculpe... Eu estava cuidando do jardim durante a noite e acabei dormindo demais hoje...” 

Focando na porta principal ela viu uma outra Mary Wardwell, com os cabelos já presos e seus cachos densos e encaracolados dançando nas costas de um vestido florido em tons pastéis. Essa era sua Mary Wardwell. 

Como se pra provar que aquilo não era uma alucinação da mente da ruiva, a recém chegada largou a bolsa no chão e se jogando em um abraço com aquela que sentava em seu lugar. 

"LILITH! Eu senti tanto a sua falta!" 

"Eu também senti sua falta, Mary! Espere... Esse é Adam Masters, meu noivo!" E com um sorriso, a mais nova entre as gêmeas Wardwell soltou sua irmã e apertou a mão do homem. 

Mas Zelda já tinha visto mais que o suficiente. Ainda com o estomago dolorido, ela se levantou e seguiu em direção a porta. 

“Zelda você está bem?” A voz doce e preocupada se virou contra ela, enquanto seguia em sua direção. “Querida, você está chorando?” 

Só assim, a ruiva notou as lagrimas densas escorrendo pelo seu rosto. Ouvindo a forma que a morena a chamou, sentiu seu coração errar uma batida. 

Querida. 

“Está tudo bem Mary... Eu só realmente preciso ir no banheiro agora. É adorável finalmente lhe conhecer, Lilith Wardwell.” E com um aceno de cabeça, não dando tempo para nenhuma resposta, a Spellman correu para fora da biblioteca. 

O prédio estava denso. Seu estomago estava doendo. Soava como se o oxigênio do mundo não fosse o suficiente. 

“Nós marcamos uma data e eu precisava que você fosse a primeira a saber, então dirigimos até aqui durante a madrugada!” A voz de Lilith era ouvida por Zelda, animada porém distante. 

Entrando no banheiro de professores, a ruiva agradeceu internamente por ter encontrado o mesmo vazio. Olhando para o espelho, Zelda começou a processar as informações que tinham sido derrubadas sobre si. 

Lilith, a irmã de Mary, era sua gêmea. E suas feições não eram apenas parecidas, elas eram idênticas em todos os aspectos físicos. 

Pegando algumas toalhas de papel para enxugar as bochechas, ela passou para a, que era para si, a parte mais importante. 

Mary não tinha beijado Adam. 

Quando a simples constatação passou por sua mente, um suspiro aliviado ultrapassou por seus lábios. Se dando conta de sua própria reação, um suspiro, agora tremulo, escapou. 

Ela estava apaixonada por Mary Wardwell. 

Pouco mais de vinte minutos depois, a mais velha dos irmãos Spellman voltou a seu posto, entretanto, no momento em que pisou na biblioteca, encontrou a mesma quase vazia, apenas com Mary encostada na mesa de madeira da ruiva. 

Se dando conta que estava sendo observada, a morena se desencostou e com uma voz preocupada, perguntou: 

“O que Lilith fez?” 

“Perdão?” As sobrancelhas da ruiva se juntaram, confusa demais para criar uma frase mais substancial. 

“Quando éramos crianças, trocávamos de sala quando estávamos entediadas, ou com medo. Eu provavelmente fiz três quartos das entrevistas de emprego dela e ela viveu metade de meus encontros românticos...” um olhar nostálgico cruzou seu rosto e então, sentindo os óculos deslizarem, ela apertou o nariz para coloca-los no lugar, antes de continuar. “Enfim... há algumas décadas atrás nós paramos de conversar com as pessoas ao nosso redor enquanto fingíamos ser uma a outra, era uma maneira de não perdermos o emprego ou nossos encontros. Mas você ficou nervosa quando eu cheguei e... Eu juro que não combinei nada com ela, só me diga o que ela...” 

Em um gesto inesperado, Zelda deu dois passos largos e pegou a morena nos braços. Foi um abraço estranho, talvez por ter sido o primeiro entre elas, ou talvez pela ruiva segurar Mary tão apertado. 

A morena estava tensa, mas sentindo a respiração suave de Zelda em seu ombro ela relaxou e abraçou a ruiva de volta. 

“Me desculpe, Zelda, me desculpe.” Mesmo não sabendo o que tinha acontecendo, ela se sentia na obrigação de se desculpar. 

Zelda parecia quebrada e confusa, uma combinação que não deveria fazer parte dela, e assim, ela gostaria de fazer o que estivesse a seu alcance para retirar isso do peito da mesma. 

Ainda abraçando a mulher de cabelos negros, Zelda começou uma explicação: 

“Ela não fez nada.... Eu só... descobri que estou apaixonada por você.” As últimas palavras quase escaparam de seus lábios. 

“Você só?” 

“Sinto falta de Hilda...” Ela gostaria de rir, gargalhar de tão patética soava, mas tudo se esvaiu quando os braços de Mary Wardwell apertaram sua cintura mais forte. 

“Oh, está tudo bem Zelda, está tudo bem...”  

Mas não estava. Não estava porque era uma mentira. Não estava porque ela estava confusa. Mas ao mesmo tempo estava. Estava porque Mary a abraçava forte. Estava porque a mão direita da morena acariciava seus cabelos com carinho. 

E nos braços dela, tudo realmente ficou bem. 

“Com licença, eu gostaria.... de devolver esse livro.” 

Assim, dispersas pela voz do adolescente, as duas se separaram e voltaram a seus afazeres. 

Semanas se passaram e o ocorrido daquele dia não era lembrado. Mas uma nova tradição foi criada. Uma vez por dia, de preferência no início ou no final do mesmo, elas se abraçavam. No começo soou apenas cortês, mas com o tempo se tornou a melhor parte do trabalho de Mary. 

Ela não sabia o porquê, mas, quando Leticia começou a ler sozinha e a perguntou algo, ela acabou descobrindo a resposta. 

“Tia Mary,” a voz da criança soava curiosa enquanto ela fechava o livro que tinham acabado, “o que é o amor?” 

Segurando a criança firme em seu colo, a morena de olhos azuis pensou durante um tempo e finalmente respondeu. 

“O amor é legal e confuso. Parece que você está voando e caindo ao mesmo tempo. É alegria e medo ao mesmo tempo. Mas também é sentir falta. É se preocupar. É perdoar suas falhas, seus erros, suas omissões e ver sua beleza, sua graciosidade e seu afeto, porque esses são maiores que os primeiros.” 

“Como quando a Tia Z diz coisas malvadas pra você e você não discute? Ou quando bate a caneta na mesa e você não briga?” 

Nesse momento, os olhos azuis perderam o foco. Ela continuou, em silencio, acariciando o braço da pequena com os dedos, que por sua vez balançava as pernas despreocupada.  

Mas sua mente seguiu outro caminho, que tinha cabelos ruivos e olhos verdes. Sua respiração estava mais pesada e inconscientemente ela dirigiu os olhos para Zelda. A visão da ruiva com os óculos escorregando no nariz e anotando algo em sua agenda fez o estomago de Mary embrulhar e, se dando conta de algo que agora soava como a maior verdade que ela já pensou, ela respondeu Leticia com uma simples frase. 

“É, eu acho que amor é como isso.” 

Chegando em casa naquela noite, Mary Wardwell bebeu meia garrafa de vinho tinto. Seu peito doía e sua mente borbulhava em pensamentos. 

Ela estava apaixonada por Zelda Spellman. E pensar nisso fazia seu corpo doer. Dos dez anos que se passaram, nos primeiros dois ela ainda confundia o nome da ruiva com o de sua irmã. como ela foi disso para uma paixão? 

Deitada no sofá ela fitava a parede, procurando entre a tinta creme alguma resposta para sua questão. Descendo os olhos até a mesa, a morena encontrou um botão de uma rosa alaranjada. 

As pétalas ainda estavam juntas e como se recebesse um sussurro em sua mente, a morena teve uma ideia. 

Uma semana depois a flor estava radiante, aberta e reluzente. Desafiando a si mesma, como se não acreditasse no que estivesse fazendo, Mary a cortou, retirou os espinhos e a apoiou no banco do passageiro de seu carro, em direção ao Orfanato. 

Por favor, quebre meu coração! Por favor, quebre o meu coração!” Era o mantra que a morena recitava baixinho, torcendo pra que suas palavras fossem efetivas. 

Chegando na biblioteca, se encontrou sozinha e um suspiro aliviado fugiu de seus lábios pelo tempo que tinha conseguido para pensar. Infelizmente, o mesmo não foi muito, pois rapidamente a ruiva apareceu. 

“Bom dia, Mary!” Zelda disse, enquanto rodeava o braço esquerdo na cintura da morena e depositava um beijo na testa da mesma. 

“Olá, bom dia, Zelda...” Quando a ruiva se afastou, Mary respirou fundo e chamou a atenção da mesma. “Olhe! Eu colhi para você do meu jardim hoje!” 

Os olhos da ruiva se voltaram para a mão da morena de olhos azuis, que por sua vez segurava a rosa alaranjada. 

Em seu terceiro mês trabalhando com Zelda, Mary lembrava da primeira vez que viu Hilda. Ela estava com alguns vasos, mais precisamente dez, todos diferentes uns dos outros, para serem doados para o orfanato. Os bufos insatisfeitos de Zelda nunca fugiram de sua mente enquanto observava a irmã ensinar as crianças a regarem as flores. 

“Eu realmente não compreendo por que pessoas perdem tempo e vitalidade com plantas.” Era o que Zelda dizia enquanto retirava o vaso que sua irmã tinha deixado em cima de sua mesa e se dirigindo para a porta. 

“Espere! O que você vai fazer?’ A voz de Mary soou, confusa e questionadora. 

“Me livrar disso, é claro!” 

“Traga-o aqui, eu fico com ele!” 

E desde esse dia, Mary Wardwell tinha dois vasos de planta em sua mesa e Zelda Spellman nenhum. 

Se livrando da memória, Mary sorriu nervosa para a ruiva a sua frente e continuou: 

“Veja, eu tinha esse botão vermelho escuro e conforme suas pétalas foram abrindo, sua cor foi clareando... Enfim... eu apenas acabei lembrando de você...” 

Por favor, quebre meu coração! Por favor, quebre meu coração! 

Entretanto, seu mantra foi interrompido, com outro abraço de Zelda. 

Seu corpo ficou mole, mas ela abraçou de volta. O abraço de Zelda era gentil e caloroso e, quando os corpos se soltaram, o rosto de Zelda estava vermelho e tinha um sorriso gentil. 

“Obrigada, Mary, ela é linda!” 

Antes de conseguir responder, dois toques rígidos na porta monopolizaram sua atenção. 

“Olá, bom dia! Tia Mary, o livro novo de história do Egito chegou?” 

Sorrindo, ainda confusa com o que tinha acontecido, Mary sorriu nervosamente para Zelda e acenou confirmando para o adolescente na porta, enquanto saia em direção as prateleiras de livros. 

Um mês se passou e a rosa não foi mais citada, embora Zelda estivesse mais próxima dela. As vezes dizendo para a morena não trazer ou comprar almoço, pois ela tinha cozinhado algo diferente. As vezes colocando um CD para tocar no meio do trabalho, encostando a porta da biblioteca e puxando a dona de olhos azuis para uma dança. Uma parte da alma da mais nova das gêmeas Wardwell se perguntava por que Zelda não foi rude. Ela só precisava ser estupida uma única vez. 

Sempre foi assim, desde a adolescência. Mary se apaixonava por alguém, esse alguém quebrava o coração dela, ela recolhia os cacos e seguia em frente. Era muito mais simples que dizer o que sentia e menos desesperador que ver a pena no olhar de quem gostava. 

No caso de Zelda é ainda pior, pois ela teria que ver aquele rosto todos os dias. 

Mas Mary tentou agir como se nada estivesse errado. Como se os olhos verdes não tirassem seu folego, como se os sorrisos não fossem mais bonitos do que o de qualquer outra criatura. Ela realmente tentou, principalmente em frente a Leticia. 

Mas naquele dia em questão, em que Leticia deveria ler com Zelda, não foi assim. 

A ruiva estava atrasada em algumas anotações na agenda da biblioteca. Era meio obvio que Zelda tinha um trabalho maior em relação a Mary, afinal crianças e adolescentes emprestam mais livros de literatura que livros pedagógicos, por isso a morena sempre que podia ajudava a ruiva com as anotações todos os fins de meses. 

As vezes ela liderava todos os empréstimos diários da biblioteca, independente do caráter literário, e as vezes ela organizava as anotações de Zelda, exatamente o que a mesma faria hoje. 

Era simples, pegar os nomes de livros emprestados no mês, da criança que emprestou e a data de devolução. Após isso era apenas nivela-los entre “entregues” e “não entregues”. 

A letra das duas não era nem parecida, mas isso era irrelevante. Quando Zelda terminou a leitura de Leticia, a criança deu um beijo na bochecha de ambas as mulheres e saiu da sala. A ruiva queria continuar seu trabalho, entretanto faltavam apenas cinco nomes e a mais nova das irmãs Wardwell insistiu em terminar. 

Já sabendo como funcionava o cérebro da ruiva, Mary já memorizou que, ao terminar as anotações, um marcador seria colocado na última folha escrita. 

“Onde está seu marca-páginas?” 

Como se não fosse nada, a ruiva abriu uma pasta e tirou de dentro da mesma uma flor seca alaranjada, coberta por uma fita plástica transparente que tinha o simples proposito de mantê-la inteira, e entregou para a morena. 

“Que flor é essa?” 

“Como assim que flor é essa?” Enquanto falava, as bochechas e o colo de Zelda se tornavam avermelhados. “É a que você me deu.” 

Antes de conseguir se parar, os olhos azuis já estavam cheios de lagrimas e transbordando. 

"Mary... O que está errado?" No tempo de uma piscada de olhos, a dona das mechas ruivas estava de joelhos na frente de Mary, com as sobrancelhas juntas de preocupação e confusão. 

Duas crianças que estavam lendo ao lado das estantes se assustaram com o soluço que Mary deu. As duas olharam para Zelda a procura de orientação e receberam um comando rígido. 

“Saiam, fechem a porta e esperem do lado de fora! Não chamem ninguém! Depois eu ou a Tia Mary abriremos para vocês!” 

Sem nenhuma pergunta as crianças correram e fizeram o que foi pedido. 

“Mary, o que aconteceu?” 

"Apenas pare... pare de ser gentil comigo... por favor." 

"Do que você está falando?" 

"Eu estou falando de mim... E do quanto eu realmente, e eu digo realmente, gosto de você... do quanto contra a minha vontade, eu me apaixonei por você... então, por favor...” 

Mas ela não conseguiu terminar a frase, pois mãos frias seguraram seu rosto e o puxaram para frente. No momento que os lábios de Zelda tocaram os dela, devagar e com cuidado, como se fosse uma peça única de museu, frágil o suficiente para ser quebrada na menor das colisões e preciosa o suficiente para ser cuidada custe o que custar, tudo o que Mary tinha pra ser dito sumiu de sua mente e só sobraram as mãos geladas e os lábios de Zelda. 

Naquele momento, tudo mudou. 

O ambiente de trabalho era o mesmo, as crianças que vinham emprestar os livros eram as mesmas, a garota que vinha ler com elas algumas vezes por semana e as fazia sorrir era a mesma. Entretanto, a cor das paredes era mais vibrante quando Mary abraçava Zelda pelas costas, o sol era mais brilhante quando Zelda sorria ao lado da janela e, principalmente, os finais de tarde eram mais bonitos graças a seu novo significado. 

No mínimo duas vezes por semana elas saiam juntas, em encontros oficiais. Quando perguntada, Lilith disse que era um exagero e que, conhecendo a irmã, acreditava que elas poderiam enjoar da rotina. Uma parte de Mary temeu isso, mas ela estava absolutamente equivocada. 

Mary só queria conhecer mais e mais sobre Zelda. Desde seu animal de estimação de infância, Vinegar Tom, até que o sabor preferido de milkshake da mesma, que por sua vez era baunilha. 

Ela também achou engraçado quão desinteressada a ruiva ficava quando o assunto era legislação, tendo dito no primeiro encontro oficial delas, que “já deveria ter infringido uma centena delas durante a vida”. 

E isso tudo era mais que reciproco, afinal, o mero som da voz de Mary deixava a ruiva com vontade de sorrir. Pela primeira vez em toda a vida, participar de jardinagem era incrível e sua maior recompensa era ver a felicidade da morena. 

Elas saíram juntas durante quatro meses e tudo era extremamente confortável. Leticia demorou para entender como o relacionamento das bibliotecárias tinha evoluído pois, para ela, sempre foi daquele jeito e a única coisa que foi alterada é que elas se abraçavam mais vezes. 

Já faziam três anos que Leticia estava no Orfanato de Santa Angela, sempre sorridente e com os óculos no rosto. Os livros de princesas encantadas da biblioteca já tinham sido finalizados então, agora, elas partiram para histórias de feiticeiros e bruxas. Zelda estava lendo, entretanto, com um sinal de Mary a ruiva notou que Leticia não prestava atenção. 

Aproveitando que a biblioteca estava vazia, Mary se sentou em frente a menina e chamou sua atenção. 

“É que.... Thadeu foi adotado...” 

“E você sente falta de seu amigo, meu bem?” A voz de Zelda soou calma e acolhedora. 

“Sim, mas não é bem isso... Eu estou muito feliz que agora ele tem uma mãe, mas... Vocês acham que eu não terei uma mãe nunca?” E como se a frase tivesse aberto uma ferida, a menina começou a chorar. 

Os queixos de Mary e Zelda estavam soltos, seus olhos se cruzando a procura da resposta correta para aquela pergunta, mas sabiam que influenciar nas expectativas das crianças era uma das coisas proibidas entre funcionários, graças a cicatriz psicológica que a quebra da mesma causava na mente das mesmas. 

Então elas apenas abraçaram Leticia, como se o abraço delas pudesse cicatrizar tudo dentro da menina, até que o sinal tocasse e a mesma tivesse que voltar para a aula. 

Naquela noite Zelda não dormiu, ela tirou a maquiagem, tomou um banho, colocou uma camisola e bebeu um quarto da garrafa de wiskey mais antiga que tinha em casa, na esperança de esquecer o tom de voz completamente sem esperança de Leticia naquela tarde. 

Por volta da meia noite, sua campainha tocou freneticamente. Imaginando que a companhia indesejada iria embora, ela ignorou. Só que, o toque ficou ainda mais barulhento, forçando a ruiva a colocar seu robe estampado por cima da camisola azul escura e descer as escadas. 

Arrastando a cortina da janela ao lado da porta, na intenção de não abrir a porta para um desconhecido, ela encontrou Mary, sem maquiagem, com os óculos, o cabelo preso em um coque, uma sandália e um robe verde escuro por cima da camisola preta. 

"Mary, o que você está fazendo aqui? Aconteceu algo?" 

"Eu vou te propor algo insano, por favor não ria de mim." E com o cenho franzido a ruiva puxou Mary para dentro e trancou a porta logo em seguida. 

"Eu sonhei com você, nós estávamos assistindo Letícia em alguma apresentação maior. Tinham câmeras e luzes no palco, mas mesmo assim tudo estava como sempre foi, até que ela desceu do palco e nos abraçou, chamando de mãe..." 

"O que você..." 

"Me deixe terminar... Eu não estou dizendo que isso aqui," ela parou e apontou para ambas, deixando explícito que não sabia como chamar o relacionamento delas, "não é um equívoco.... Ou que quero viver junto com você até nossos corações pararem de bater... O que eu quero dizer é que Letícia é e significa muito mais que nós, e que se ou quando isso não sobreviver, Letícia sobreviverá e eu sei que nunca poderia me arrepender de tentar amar aquela criança com toda a fibra do meu ser, todos os dias em que respiro... ao seu lado... Eu sei que posso fazer isso sozinha pela manhã, mas... seria muito mais agradável de ser feito com você." 

Pela primeira vez, Zelda estava verdadeiramente sem palavras e após alguns minutos de silencio, a dona dos olhos azuis em expectativa se pronunciou novamente em meio a um sorriso nervoso. 

"Então, o que me diz?" 

Mas nenhuma palavra foi proferida, lágrimas escorregavam desenfreadas pela face de Zelda e sua única resposta foi beijar Mary. Ela a beijou com toda a certeza que tinha, com todo o fôlego que tinha, com toda a paixão que tinha. Ela usou tudo em Mary e foi assim que tudo o que elas já tinham se tornou ainda maior. 

No quarto de Zelda, elas se olharam nos olhos por mais tempo que o necessário. Elas se tocaram, arranharam e beijaram lugares não vistos na biblioteca. Zelda segurava Mary como seu porto seguro, com medo de que em algum momento, a mulher abaixo dela, agora com as pupilas tão largas que era quase impossível encontrar o azul tão belo dos olhos, fosse desaparecer. 

Mas no dia seguinte, a ruiva acordou nua, com um peso em seu ombro esquerdo e cabelos negros arrastados cobrindo seu braço. Ali ela descobriu, apenas olhando pra mulher adormecida em seus braços, e depois para os óculos de ambas descansando ao lado da cama, que queria qualquer coisa e tudo o que estivesse disponível para viver com Mary Wardwell. 

Por Zelda, o pedido de adoção seria iniciado naquela mesma manhã, afinal, acreditava que não existia motivação para esperarem, entretanto Mary a convenceu que era melhor fazê-lo no início da próxima semana, tendo assim tempo para avisarem os parentes e procurarem respostas para eventuais perguntas além se acostumarem com a ideia. 

“O seu “sim” foi o suficiente por agora!” 

Em menos de três horas de pesquisa, Zelda encontrou uma frase que a aterrorizou. Com as mãos tremendo ela disse para Mary que iria fumar e, no estacionamento do Orfanato, ligou para Hilda. 

“Você pode ler novamente querida, eu acho que não ouvi direito.” 

“Para que um menino ou uma menina sejam adotados por um casal, deve haver uma união civil estável entre eles.” 

“Oh...” A voz da mais nova entre os irmãos Spellmans soou, procurando orientação divina para o dilema de sua irmã. 

“E se ela não aceitar?” 

“Como assim, Zelda Spellman? Você quer se casar com ela?” 

“Mas, Leticia....” 

“Responda à pergunta Zelda!” 

“Eu.... gostaria!” O sussurro da ruiva foi envergonhado, mas recebido com um grito estridente em seu ouvido direito. 

“OH MEU DEUS, EDWARD VAI FICAR TÃO FELIZ!” 

“Ei! Ouça! Eu te liguei porque ela... ela pode não aceitar! E não existe casamento de uma pessoa, Hilda!” 

“Por que ela não aceitaria?” Entretanto, mesmo tendo feito a pergunta, Hilda continuou falando. “Faça um jantar, um anel de noivado.... Ou melhor, compre as alianças definitivas e peça! Ela te ama e vai dizer sim!” 

“Tudo bem, eu acho...” 

“Ligue para Edward, as alianças dele e de Diana são muito bonitas e eu tenho certeza que ele adoraria te ajudar nisso!” 

“Tudo bem! Obrigada!” 

“Disponha, querida! E eu amo você!” 

“Eu também te amo.” 

Dois dias depois, Zelda saiu com Edward para comprar o par, dando para Mary Wardwell a desculpa de que precisava comprar outra cartela de cigarros. Eles foram em uma joalheria simples e escolheram duas finas alianças rose. O sorriso no rosto de Edward gritava “eu avisei”, entretanto, a ruiva estava ansiosa demais para se importar. 

Quando sua compra estava sendo finalizada, ela notou um anel simples em cristal e banhado a ródio. A vendedora disse que a pedra em evidencia era uma swarovski, entretanto Zelda não escutou, sua mente estava muito ocupada planejando exatamente como seu pedido funcionaria. 

Hilda concordou que cozinharia um prato na casa de Zelda naquela noite, diminuindo o trabalho da ruiva em apenas realizar o mesmo. 

Eventualmente, ela ligou para Lilith a procura de conselhos sobre a mais nova entre as duas, recebendo um curto “Você precisa da mão dela e não da minha... Pergunte e se surpreenda!” Além de uma promessa de ajuda para dar tempo a Zelda, caso a mesma quisesse fazer o pedido naquele mesmo dia, algo que a ruiva aceitou prontamente. 

Quando voltou para a biblioteca, Zelda perguntou se Mary gostaria de jantar com ela e eventualmente dormir lá, já que o caminho entre a casa das duas era longo o suficiente para são ser vantajoso uma delas transitar sozinha em direção a sua própria residência. 

“Claro, eu só vou depois de você, tudo bem? Lilith me pediu para comprar essas revistas sobre casamento e decorações, e eu realmente quero ter tudo comigo caso ela apareça.” 

“Tudo bem, querida! Mas você acha que consegue estar em casa as sete?” 

“Claro! Serei pontual!” E compartilhando um sorriso, elas trocaram um beijo antes de dois alunos vierem pedir ajuda para Mary em história moderna. 

Faltando apenas dez minutos para as sete horas da noite, Mary estacionou o carro em frente à residência de Zelda. Após pegar a bolsa que continha uma muda de roupa noturna e outra para o trabalho no dia seguinte no banco do passageiro, ela saiu, trancou o carro e, como de costume, seguiu em direção a entrada. 

Acreditando que Zelda tinha notado sua chegada, graças ao motor do carro, a morena apenas girou a maçaneta e, para sua surpresa, tudo estava escuro, mas um barulho de talheres soava da cozinha, provando que sozinha ela não estava. 

 

“Querida? Por que você está no escuro?” 

“Eu não estou... apenas venha jantar...” 

Sorrindo, a dona dos olhos azuis trancou a porta e deixou sua bolsa no chão, ao lado das escadas, antes de seguir em direção a cozinha. 

Chegando lá Mary encontrou Zelda envolta por velas acenas, justificando a casa escura. Ela estava magnifica, com seus cabelos soltos em ondas mais desorganizadas e com um conhecido vestido vermelho de camurça com uma manga em renda. 

Dois anos antes, no aniversário da ruiva, Mary a deu com um vale-presente, se justificando que soava pessoal demais comprar um presente para a Spellman mais velha. O horror estampado no rosto de Zelda foi digno de uma telenovela. 

“Mas nós estamos saindo e eu acredito que você conheça algo sobre meus gostos. Porque não tenta a sorte?” 

“Talvez eu tenha passado em frente a vitrine e encontrado algo que me lembra você em um manequim especifico, entretanto....” 

Partindo daquilo nada foi ouvido. Ao descobrir isso, no mesmo dia, após o trabalho de ambas, Zelda, ignorando todo e qualquer protesto, obrigou Mary a ir com ela na loja – usando como sua artimanha principal esconder a chave de casa e do carro da morena dentro de sua bolsa – para mostrar-lhe o vestido. 

Chegando lá, ela seguiu em passos firmes pela loja junto com a morena, que já estava vermelha no colo e nas bochechas, a procura de uma vendedora. 

“Com licença...” Foi o que a morena, enquanto era vigiada pela ruiva falou em direção a jovem de cabelos loiros com o uniforme daquela confecção, chamando sua atenção. “Boa tarde, você sabe se o vestido vermelho de camurça que estava na vitrine da loja no início da semana foi vendido?” 

“Oh, não foi! A senhora poderia me passar seu tamanho? Assim eu posso levá-lo até o provador no tamanho correto.” 

“Na verdade, o vestido é para ela!” E assim mãos gentis puxaram Zelda pela cintura, que sorriu com o contato. 

Minutos depois Zelda estava em uma cabine, com a vendedora dizendo o quão linda ela estava enquanto deslizava o zíper das costas, fechando o mesmo. 

Ele era comprido, parava no meio das panturrilhas e se moldava a seu corpo. Mangas compridas não eram algo que ela apreciava com cores fortes, mas uma delas era toda em renda, talvez uma transparência inesperada vinda de Mary Wardwell mas que ela simplesmente não conseguia encontrar um único defeito. 

Ela se sentia linda, absoluta e completamente deslumbrante e pensar que Mary tinha pensado nela enquanto via essa bela veste fez seu coração palpitar. Ela definitivamente levou o vestido, e esse se tornou o preferido de Mary em seu corpo. 

“Você está... tão linda! Se soubesse teria me vestido para a ocasião!” A morena chamou a atenção da ruiva em meio ao devaneio, que lhe deu um beijo antes de responder. 

“Sem nenhum sentido! Apenas sente e vamos aproveitar a refeição.” 

A comida estava maravilhosa, o vinho era doce e pela primeira vez, Mary viu Zelda bebendo álcool nervosamente. Como se juntasse as pedras de um quebra-cabeça, a dona dos olhos verdes observou tudo a sua volta e riu. 

“Por que você está rindo?” 

“E agora eu te respondo com outra pergunta: Isso é um pedido de noivado?” 

“Quem te contou?” A resposta rápida veio junto com o quão sem cor o rosto de Zelda ficou. 

Mary dizia que a ruiva era feita do mais puro alabastro ao invés de carne humana, e naquele momento, ela acreditou estar correta. 

“Bom... ninguém... é só... Para que um menino ou uma menina sejam adotados por um casal, deve haver uma união civil estável entre eles, e eu acreditei que sua resposta afirmativa alguns dias atrás já incluía isso...” 

“Oh meu Deus!” A ruiva baixou a cabeça e enterrou a mesma no meio das mãos, extremamente envergonhada e silenciosamente se martirizando por seu desinteresse em tudo que remetesse a leis. 

“Ei... Olhe pra mim! Você pode me responder uma outra pergunta?” 

Levantando o olhar para os olhos azuis em sua frente, a ruiva acenou afirmativamente. 

“Quando eu disse que estava apaixonada por você, por que você me beijou?” Assim que ela fez a pergunta, seu nariz franziu levantando os óculos, lembrando a ruiva da resposta que ela precisava. 

“Porque você aperta o nariz quando seus óculos escorregam...” Nesse momento os olhos azuis se arregalaram, repletos de perplexidade, e instigada por isso Zelda continuou. “E essa foi a primeira característica em você que eu amei.” 

Lagrimas agora desciam por seu rosto, mas o sorriso não deixava sua boca, até que ela limpou a garganta e disse: 

“Você comprou um anel de noivado?” 

“Eu comprei até as alianças definitivas, querida...” 

“Oh meu Deus, deixe-me ver! 

Mesmo relutante, Zelda retirou as joias do bolso e mostrou para a morena, que não parava de sorrir, mesmo entre as lagrimas. 

“Veja, a minha ideia era assinarmos um documento segunda-feira, no escritório de nosso superior, tendo Lisa e, talvez, nossos irmãos como testemunha... Entretanto,” com uma pausa dramática, a morena se levantou, seguiu em direção a Zelda e sentou em seu colo, pegando o anel de noivado comprado por Zelda, e colocando no dedo da ruiva antes de finalizar, “a sua ideia é muito mais legal!” 

E assim Mary a beijou, rápido o suficiente para olhar nos olhos da ruiva e ver que ela estava tão feliz quanto ela. 

O casamento foi simples. Apenas alguns parentes e alguns colegas de trabalho. Ambas de vestidos longos de cetim branco e uma maquiagem simples, cercadas de flores e arranjos, nada além disso era necessário. 

Leticia estava lá, é claro. Confusa por ter sido a única criança que saiu do orfanato, mas feliz por participar de um casamento de “duas princesas de óculos”. Lisa foi quem ofereceu o brinde a, em palavras da mesma, “melhor evolução de inimigas a amantes que ela já testemunhou”. 

No outro dia, todos foram almoçar na casa do Spellmans, que agora era o lar das Spellman-Wardwell, regada a boa comida, bons doces, álcool e piadas de Lilith, dizendo que era uma vergonha familiar ela ser a primeira a namorar, primeira a noivar, primeira a marcar a data e, ainda assim, Mary se casar antes dela, mas que nunca esteve tão feliz por ser uma vergonha familiar. 

Elas não tiraram os dias de Lua de Mel, decidiram que já haviam esperado tempo suficiente para iniciarem a adoção, e assim fizeram. Apresentaram todos os documentos e tudo foi aceito, só faltava uma coisa. 

Leticia ainda não sabia, e uma parte das mulheres temia que ela as rejeitasse. Mas o dia tinha chegado, Leticia estava sentada na biblioteca e as duas mulheres entraram na mesma, junto com Lisa, que se ofereceu como testemunha, e um responsável do governo. 

“Oi, Tia Mary! Oi, Tia Zelda!” 

“Oi, querida, nós queríamos falar com você...” - a voz de Zelda soou. 

“Eu... fiz algo errado?” Os olhos castanhos se arregalaram com a possibilidade, mas antes de mais algo sair da boca da menina, Mary a interrompeu. 

“Não querida, você não fez nada de errado!” Nesse momento, a morena buscou apoio na mão gélida da ruiva ao seu lado, e encontrando-a apertou antes de continuar. “O que você acha dessa foto?” 

Assim, a mão livre de Zelda entregou uma folha para Leticia. Nela estava uma foto antiga da filha de Rukidi III, o rei de Toro entre 1928 e 1965, com os olhos e vestes coloridas de roxo e amarelo. 

“Ela é muito bonita, parece comigo.” 

A resposta da menina instigou um sorriso contido de todos na sala, e inclusive no dela também. 

“Você está certa, querida! Você sabe o nome dela?” Recebendo um aceno negativo de cabeça, Zelda indicou. “Está escrito ai atrás!” 

Virando a foto para seu verso, Leticia leu, calma e pausadamente: 

Elizabeth Bagaaya, princesa do Reino de Toro. Ela é uma princesa de verdade?” 

Quando Mary deu um aceno positivo de cabeça e Leticia tocou a foto como se fosse o maior tesouro que tinha encontrado. 

“Sim querida, ela é!” Indicou também Zelda, mas sem deixar espaço pra alguma pergunta da menina, ela continuou. “Nós queremos perguntar uma coisa bem importante pra você então você tem que prestar atenção, tudo bem?” Com outro aceno afirmativo de cabeça, Zelda continuou. “A Princesa Elizabeth tem um sobrenome, não é?” 

“Tem...” O rosto da garota perdeu o brilho, como se se lembrasse de si mesma, mas ela continuou com os olhos fixos nas mulheres a sua frente. 

“Eu e a Tia Z nós pensamos muito e...” como se arrancasse um curativo, Mary disse rápido, porém em alto e bom som. “Queremos que você tenha o nosso sobrenome!” 

As mulheres esperavam alguma resposta, mesmo positiva ou negativa, mas o que receberam foi, o rosto de Leticia se enrugando em confusão. 

“Como?” 

“Como suas mães...” 

Nesse momento, os olhinhos castanhos relaxaram e transbordaram. 

“Leticia, ouça, independentemente de ter ou não nosso sobrenome você já é nossa princesa! Tudo bem?” 

“Tudo, mas... Eu quero! Eu quero tanto!” 

E em meio as lágrimas, elas se abraçaram. Os três óculos estavam embaçados e se batiam enquanto elas trocavam beijos pelo rosto, mas nada disso importava. A única coisa que significava na mente das três era o nome “Leticia Spellman-Wardwell". 

Após alguns minutos, as três se separaram, retirando os óculos do rosto para limpa-los. Zelda e Mary fizeram isso o mais rápido possível e observavam Leticia fazê-lo. Quando as lentes se tornaram transparentes e indivisíveis novamente, Zelda interrompeu: 

“Você sabe o que deve fazer, não é, Leticia Spellman-Wardwell?” 

“Não se preocupem mamães,” com a palavra nova nos lábios, Leticia sorriu e respirou fundo antes de continuar. “Nossos óculos ficam no rosto!” 


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Notas finais do capítulo

Obrigada pela leitura e eu espero que tenha gostado. Comentários de todos os tipos são extremamente bem vindos e instigados.

Caso vocês queiram que essa one que acalmou meu coração tenha continuações, como a primeira dança delas, a primeira noite como casadas, o casamento de Lilith.... enfim, a unica coisa que preciso é publico e idéias especificas relacionadas a o que vcs querem ler. Esses pedidos podem ser feitos aqui nos comentários, no meu twitter, no meu curiouscat... em qualquer lugar que me encontrarem.

Novamente, obrigada por destinar seu tempo para ler uma obra minha.

xoxo,

Val



Todas as redes: @HausOfVal



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