Cactos & Girassóis escrita por Sali


Capítulo 5
Quatro




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Quinta-feira | 12 de Maio

Depois de três semanas, Marina já estava dominando o suficiente as matérias novas para conseguir responder com desenvoltura às perguntas dos professores, o que só fazia Helena ter mais certeza de quão inteligente ela era.

Mas isso também significava que os encontros na biblioteca, à tarde, estavam fazendo efeito; e não só para ajudar a novata nos estudos, mas também para acabar, inevitavelmente, criando proximidade entre as duas.

─ Bom dia!

Lena tirou os fones e esboçou um sorriso de canto quando a novata aproximou-se dela naquela quinta de manhã, cerca de um quarteirão e meio antes da entrada do colégio.

─ Bom dia.

─ Ouvindo rock pesado? ─ Marina indagou, com uma risadinha sugestiva. Ela estava com uma camisa xadrez sobre o uniforme e os cabelos presos para cima, em um coque abacaxi, com algumas mechas escapando. Ela tinha, de fato, cachos muito bonitos, e aquele penteado deixava evidente um detalhe que Lena ainda não vira: as seis pequenas argolas que ornavam suas orelhas, três de cada lado, combinando com a pequena joia do septo.

Helena riu baixo, pelo nariz.

─ Como você adivinhou?

─ Eu acerto tudo ─ Marina piscou, seu olhar fixo na outra garota e um sorriso sabido nos lábios.

E as duas começaram a rir.

A verdade era que, ao final da tarde de estudos do dia anterior, o assunto resvalou para música. E as duas descobriram, com certa surpresa, alguns gostos em comum. Havia sido uma conversa que envolvera falas como “eu achei que você gostasse de, sei lá, MPB”, por parte de Helena, e “e pra mim você era uma daquelas fãs de rock pesado”, como a resposta de Marina.

Isso não era muito verdade para nenhum dos lados.

Àquela altura, elas estavam bem próximas à entrada do colégio, e Lena acabou parando.

─ É… Marina? É melhor você ir entrando… Eu ainda vou encher minha garrafa, passar na biblioteca antes da aula, olhar umas coisas, enfim… Daqui a pouco a gente se vê na sala, pode ser?

Marina abriu um sorriso pequeno e assentiu. Mesmo que não entendesse por completo, tinha certa noção dos receios de Helena e educação o bastante para respeitá-los.

─ Sim, claro… Ah, se tiverem devolvido aquele livro, o de literatura, você me avisa?

Lena fez que sim com a cabeça e usou um esboço de sorriso para despedir-se de Marina. Antes mesmo de a entrada do colégio chegar ao seu campo de visão, ela já havia se afastado.

Obviamente, Helena ainda tinha suas ressalvas e suas desconfianças em relação a Marina. No entanto, ela não era um bloco de gelo, uma pessoa tão desagradável a ponto de afastar qualquer um que tentasse se aproximar. E, afinal de contas, a novata era inteligente, tinha um bom humor e um papo bom. E parecia uma pessoa mais legal do que a média geral do resto da sala.

Foi exatamente por isso que Lena pensou que seria melhor poupá-la de um semestre e meio de piadas sem graça e isolamento quase completo.

─ ─ ─

Surpreendentemente, a aula de Matemática passou de forma tranquila, sobretudo porque Gabriel, o professor, era uma pessoa legal, por mais chata que sua disciplina fosse; bem mais jovem que a média e divertido, ele, quando não estava dando aulas, gostava de sentar com os alunos e conversar sobre séries e filmes.

E esse era exatamente o oposto do comportamento do professor de Química, que entrou na sala momentos depois e já começou a apagar o quadro, depois de dar um “bom dia” meio seco.

─ Logo depois do Gabriel, é, Marcos? Tô só observando vocês dois ─ Rafael, sentado em uma das carteiras da parede, se apressou em fazer a gracinha, que fez o professor rir, meio constrangido, enquanto a sala quase toda explodia em gargalhadas.

O fato era que Gabriel, de Matemática, era assumidamente gay. E Marcos, de Química, o tipo de cara que se esforçava para ser o mais hétero possível: corpo hipertrofiado pela academia, camisetas quase justas demais pro ambiente escolar, assuntos que giravam em torno de futebol e mulheres, piadas homofóbicas e declarações machistas faziam parte de seu repertório e, com essa imagem, ele era um ídolo para grande parte da sala.

─ Eu não, não sou dessas coisas ─ o professor esbravejou, em tom de piada. ─ Já você vai todo fim de semana pra balada gay com o Caio aí, que eu sei.

O outro rapaz estava distraído, mas, logo que ouviu seu nome, ergueu os olhos do celular em segundos.

─ Eu? Eu não, professor. Acho que quando você foi lá, viu outra pessoa e achou que era eu.

A sala riu outra vez.

─ Que viadagem, hein, profe? ─ Isabella exclamou no instante seguinte, em tom de reprimenda, e fez Marcos balançar a cabeça.

─ É, viadagem... Vou mostrar pra vocês meu fim de semana passado, o que foi viadagem ─ ele respondeu, meio rindo e meio sério, e logo se voltou para o quadro, interrompendo as brincadeiras para passar uma lista de exercícios.

Naquele mesmo instante, Marina, que estava sentada perto o suficiente de Helena, se virou discretamente para ela e revirou os olhos ─ um sentimento que era totalmente recíproco. A garota riu pelo nariz e concordou com a cabeça.

Para ela, Marcos era, em resumo, uma pessoa frustrante. Sua personalidade horrível fazia um contraste radical com a qualidade de suas aulas, e nem ela podia negar que, desde que ele assumira sua turma, no ano anterior, havia resolvido grande parte de seus problemas com a Química.

Mas isso, era óbvio, não diminuía o asco que ela sentia por ele.

─ ─ ─

Naquele dia, especificamente, Helena não estava com muita fome. E, mesmo que estivesse, não havia se lembrado de levar um lanche ou dinheiro para comprar qualquer coisa que lhe forrasse o estômago. Por isso, em vez de usar o intervalo para comer, sentada no habitual local da área externa do colégio, Lena subiu as escadas principais do prédio e se dirigiu para a biblioteca, logo no fim do corredor do segundo andar, com o objetivo de procurar o livro da aula de literatura.

Depois de encontrar o volume, ela sentou-se em um dos pufes espalhados por lá e, de tão distraída,  mal percebeu a aproximação. A biblioteca estava vazia, como sempre, mas ela só ouviu a voz de Marina quando esta estava sentada ao seu lado, com um sorriso pequeno brincando nos lábios.

─ Bom dia… outra vez.

Lena, por um segundo, se sobressaltou. Automaticamente, seu olhar percorreu o ambiente todo.

─ Ah, oi, Marina. ─ ela meneou a cabeça, com um esboço de sorriso ─ Eu só vim procurar um livro, mas… já achei. ─ completou e ergueu o livro no ar, para enfatizar as palavras, logo antes de se levantar. ─ Acho que já vou.

Helena foi interrompida pelo toque gentil de Marina em seu pulso, que foi o suficiente para que ela parasse no mesmo lugar.

─ Você sabe mais do que ninguém que eles não aparecem muito na biblioteca.

Ela ergueu as sobrancelhas, um pouco surpresa. Marina não citou nenhum nome, mas, obviamente, não era necessário. Ela abriu um sorriso doce antes de voltar a falar, diante da mudez da outra.

─ Eu entendo seu lado, de verdade, mas… acho que é tranquilo pra gente conversar aqui.

No momento em que Lena percebeu que Marina sabia os motivos para o seu comportamento, ela enrubesceu levemente. No entanto, não parecia haver nenhum tipo de reprovação; havia, talvez, apenas um brilho de expectativa nos olhos dela.

Helena coçou a nuca e esboçou um leve sorriso. Marina, por sua vez, comemorou: sabia que aquilo era um “sim”.

─ E você quer conversar sobre…?

A novata encolheu os ombros.

─ Primeiro, preciso de alguém pra falar sobre o nojo que eu fiquei do Marcos hoje… Eu já tinha sacado que ele parecia escroto, mas não tanto.

Lena riu pelo nariz e revirou os olhos.

─ Ah, sim… É daí pra pior, normalmente.

Marina fez uma careta, acompanhada de um “ew” que fez a outra rir.

─ Mas não era disso que eu queria falar, na verdade… ─ ela completou e, em seguida, olhou para Helena com um ar de confissão. ─ Eu... stalkeei seu Facebook ontem. Você luta boxe?

Lena se surpreendeu com o interesse de Marina.

─ Na verdade, é muay thai.

A novata abriu um sorriso, o brilho nos olhos mesclando espanto e admiração. Helena, diante disso, não resistiu a rir baixo e relaxou no banco, enquanto Marina lhe revelava um pouco de seu lado mais curioso.

─ ─ ─

O apartamento em que Lena morava era pequeno, mas confortável. Além dos cômodos básicos ─ sala de estar, um pequeno corredor, seu quarto, a suíte do pai, cozinha, um banheiro e a área de serviço ─, havia, também, um espaço que, depois do quarto, era seu local preferido: a varanda, com os poucos metros quadrados ocupados por um pequeno sofá de pallets e futons, de dois lugares, uma mesinha e um aparador com seis ou sete vasinhos. Neles, havia uma das únicas coisas de que Helena gostava de cuidar na vida: seus pequenos cactos e plantinhas suculentas.

E naquela quinta, sem muay thai e depois de passar uma parte da tarde revisando algumas matérias, foi para a varanda que Lena se dirigiu. Espreguiçou-se no sofazinho, respirando a brisa leve, e abriu o notebook no colo, feliz com a companhia dos sons do trânsito de pessoas e carros lá embaixo.

Seu objetivo inicial, naquela tarde, era esquecer um pouco as fórmulas de Física e se distrair enquanto podia ─ afinal, a semana de provas ainda estava meio longe, e maio era um pouco cedo demais para ela começar a surtar pelo vestibular. E foi exatamente isso que ela pensou em fazer quando abriu a Netflix e passeou pelo catálogo, atrás da série que começara na semana anterior.

Helena chegou até mesmo a dar play no episódio em que havia parado. Chegou a assistir por alguns minutos e tudo, mas logo a brilhante ideia de dormir à uma da madrugada para acordar às seis rendeu seus frutos, e ela caiu no sono ainda com o notebook no colo.

Foi um cochilo rápido, afinal, e demorou apenas o suficiente para que o barulho de uma notificação a despertasse, assustada. O sol estava começando a se pôr, trazendo um vento fresco para a varanda, e Helena se espreguiçou demoradamente. Ajeitou-se melhor no sofá e tirou o notebook do modo de repouso.

Ela mesma ainda estava flutuando entre a sonolência e a consciência completa, tentando entender por que acordara pensando em cachos negros e pequenas argolas prateadas, quando o som da notificação se repetiu, e ela clicou na aba do Facebook enquanto soltava um bocejo.

Só havia duas mensagens na aba do chat, no cantinho da tela.

Boa noite, Helena :)

Tudo bem?

Helena ergueu uma sobrancelha, mas mal percebeu o sorriso dançando no canto do lábio. A voz de Gabi, no último treino, ainda estava soando em sua cabeça, e ela riu para si mesma ao pousar as mãos sobre o teclado.

Oi, Marina! Tudo sim, e aí?


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