Cactos & Girassóis escrita por Sali


Capítulo 2
Um


Notas iniciais do capítulo

Olá! Esse é o primeiro capítulo de um projeto novo em muito tempo.
Pretendo postar um capítulo por dia, durante todo o mês de Abril.
Espero que gostem da história! ♥



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Segunda-feira | 11 de Abril

De longe, na última carteira do canto, Helena era, ao mesmo tempo, uma figura singular e desinteressante. O casaco de moletom cinza e o uniforme, ambos largos, não eram chamativos. A pele clara, coberta de sardas e acne, e o cabelo avermelhado ─ cor de sangue seco, segundo ela própria, e preso em um coque desleixado ─, também não eram relevantes ou algum tipo de novidade; nem para ela, nem para qualquer pessoa no ambiente.

Com uma música alta demais nos fones de ouvido, ela não conseguia ouvir absolutamente nada ao seu redor. Especialmente o som urgente do lápis correndo pela folha pautada, em seu esforço para terminar um exercício de Química que a preguiça, na noite anterior, a impedira de fazer. O relógio marcava 6:58, e aquela segunda-feira lhe prometia ser um saco.

O ensino médio era o inferno.

─ Olá.

Lena não ouviu a saudação que havia sido murmurada de seu lado esquerdo. Faltava apenas uma questão, e ela sabia que, se se esforçasse um pouquinho, conseguiria encontrar a resposta certa sem fazer muitos cálculos. Mesmo que sua vontade fosse apenas continuar com seus fones e, se pudesse, rabiscar todo aquele caderno, da primeira à última página.

─ Oi? Com licença?

Ela se sobressaltou, puxando o fone esquerdo de impulso, e se voltou para a menina  ─ que ela também não tinha visto ─ sentada na carteira ao seu lado. Não respondeu nada, apenas deu-se alguns segundos para observá-la: rosto arredondado, com bochechas proeminentes e uma covinha delicada, e nariz largo, bonito, ornamentado por um piercing no septo. Os cabelos soltos chegavam pouco acima dos ombros, negros, crespos e volumosos, e ela tinha um sorriso pequeno e simpático nos lábios.

─ É... Oi. Qual é a aula que vamos ter agora?

Helena ergueu uma sobrancelha e demorou cerca de cinco segundos para se lembrar de que, na semana anterior, a coordenadora realmente anunciara que teriam uma aluna nova na sala do terceiro ano. Por mais estranho que fosse entrar num colégio novo no meio do mês de abril.

─ Química ─ respondeu e, logo que pôde, voltou a colocar o fone.

Ela estava plenamente consciente da imagem que começava a construir para si diante da novata: na melhor das hipóteses, timidez extrema; na pior, uma pessoa muito rude. Sabia que, quando agia assim na sala de aula, mal parecia a mesma pessoa que, nos rolês e nos treinos de muay thai, conversava com desenvoltura e ria com facilidade.

O problema nessa equação era o colégio. E, em três anos de ensino médio, lhe sobravam motivos para desconfiar de qualquer pessoa, naquele ambiente, que tentasse se aproximar. Ainda que fosse uma aluna nova.

 ─ Bom dia, gente. Vamos sentar, por favor.

A atenção da turma toda se voltou para a porta da sala, por onde Marcos, professor de Química, acabara de entrar. Revirando um pouco os olhos com as habituais piadinhas que ele sempre trocava com alguns alunos ─ que viadagem essa blusa, esse corte de cabelo é coisa de bicha  ─ Lena arrancou os fones, enfiou o celular no bolso do moletom, e fechou rapidamente o caderno, tudo alguns instantes antes de o homem de 40 anos anunciar que faria a chamada.

Naquele momento, ela descobriu que a menina sentada ao seu lado chamava-se Marina. E teve ímpetos de bater em alguém quando Marcos pediu que ela se levantasse para falar um pouco de si ─ o que chamou a atenção de quase 40 alunos para o seu canto da sala e fez com que, de repente, todos começassem a conversar.

Helena conseguia ouvir fragmentos do burburinho que perpassava a sala. Mas, na verdade, nem precisava entender tudo para saber o que alguns estavam dizendo: que azar da novata, provavelmente; mal chegou na escola e já acabou sentando do lado da esquisita lá, da sapatão surtada.

─ ─ ─

─ Seu nome é Helena, né?

O terceiro horário era de Biologia, e, após finalizar a matéria que cairia na próxima prova, a professora deixou os vinte minutos restantes para que os alunos fizessem alguns exercícios.

Como era habitual, boa parte da sala já havia desistido e se dividira em pequenos grupos de conversa, tornando o ambiente barulhento. Além de Lena, que gostava da disciplina e dominava a matéria de genética o suficiente para se divertir com os exercícios mendelianos, poucas outras pessoas estavam tentando fazer a atividade. Entre elas, Marina.

─ Uhum.

─ É... Sem querer incomodar nem nada... Mas você chegou na questão 5? Eu acho que não aprendi essa matéria na outra escola e tô meio perdida.

Lena soltou um suspiro discreto e olhou em volta, perguntando-se por que Marina estava pedindo ajuda justo para ela. Ao ver que havia apenas um outro grupo fazendo a atividade ─ alguns meninos meio nerds, que se achavam melhores que o resto da sala ─ percebeu que ela era mesmo a última opção. E seria grosseria demais mandar a garota perguntar para a professora.

─ Qual é a questão mesmo?

Marina empurrou a cadeira para o lado, aproximando-se de Helena, e colocou o caderno sobre a sua mesa. Com a proximidade, o perfume que se desprendia dos cabelos dela invadiu o espaço e surpreendeu a aluna veterana, porque era bom.

─ É a 5. Essa parte aqui meu professor não tinha passado ainda. Como eu faço quando é assim?

Lena pegou da mão de Marina sua lapiseira rosa e traçou algumas palavras num pedaço em branco do caderno, enquanto tentava reunir toda a sua didática para tentar explicar da melhor maneira possível a matéria para a novata.

─ ─ ─

Naquela manhã, o vento soprava delicadamente do lado de fora quando o sinal do intervalo se fez ouvir. Quase não demorou para que o hall do colégio se enchesse com os alunos que ocupavam os dois andares do prédio.

Helena, no entanto, não ficou por muito tempo naquele ambiente movimentado e barulhento. Durante o intervalo, um de seus lugares preferidos era a área aberta do colégio, um espaço que separava o prédio principal da quadra externa. Aquela área tinha alguns bancos, uma árvore alta, um jardim e um parquinho com brinquedos para as crianças do turno da tarde. Lá, a garota podia comer tranquila; ficava livre da sensação incômoda de ser o alvo de olhares e comentários e tinha, como bônus, um ambiente praticamente só seu.

Ou, pelo menos, era assim na maioria das vezes.

Lena soltou um suspiro de exasperação quando viu a novata ─ Marina ─ atravessar a porta grande do refeitório, andando com a aparente intenção de se juntar a ela. Por alguns segundos, se perguntou quanto tempo demoraria para que ela descobrisse sua fama no colégio e fosse enfim atraída para o grupinho mais extrovertido sala. Afinal de contas, Marina era bonita, estilosa e parecia inteligente ─ atributos que, por si só, já conseguiriam colocá-la como favorita naquele local.

─ Ei, miga... Peraí!

A voz que surgiu do nada tirou Helena de suas divagações.

O chamado, entretanto, não era direcionado a ela, e sim a Marina, mas lhe arrancou uma risada; a menina que chamava era Isabella, uma de suas colegas de sala. Ver o rosto dela lhe fazia pensar, quase automaticamente, nas encaradas desconfortáveis e de quando, conversando com os amigos, soltava ─ em alto e bom tom ─ suas pérolas habituais: eu tenho amigos negros, mas… Não dá pra aceitar essa coisa de gay, não é normal… Mulher tem que ser feminina, usar maquiagem… 

─ Você chama Marina, né? Prazer, Isabella. Não sei se você me viu hoje, mas eu sou da sua sala, sento lá na frente e tal… vem comer com a gente!

Helena, quieta em seu banco, não parou de observar enquanto Marina voltava ao refeitório, ao lado de Isabella. No entanto, mesmo que tentasse disfarçar, até para si mesma, soltou um pequeno suspiro, e, por alguns segundos, perguntou-se se a sua relação com a garota nova não poderia ter sido diferente.

Agora era tarde demais para descobrir.

─ ─ ─

─ E a aula hoje, Lena?

Helena sempre ficava faminta depois do treino de muay thai. Assim, quando o pai entrou na cozinha e lhe fez a pergunta, ela estava muito mais atenta ao espaguete que começava a cozinhar numa panela de água borbulhante. 

─ Ah, ei, pai. Foi tranquila, eu acho... ─ respondeu, ainda focada em não se queimar. ─ O professor de História encheu o saco porque ninguém tinha feito o dever dele, mas ele deu, tipo, umas quatro páginas só com questão aberta na sexta e queria que entregasse pronto… Dessa vez nem os idiotas da minha sala estavam tão errados de não fazerem.

Daniel riu pelo nariz, enquanto ouvia com atenção os relatos da filha. Ele era um homem não muito alto, de ombros largos, cuja estrutura física lhe fazia parecer um pouco mais corpulento que realmente era, e uma expressão gentil no rosto, que Helena achava que combinava com sua ocupação: era professor de literatura numa faculdade particular. Tinha 45 anos, mas a calvície já o fizera raspar totalmente os cabelos grisalhos; sua pele era marrom-clara, num tom bonito e polido de cedro, e ele quase sempre usava camisas de botão muito bem-passadas.

Às vezes, quando olhava para ele, Lena conseguia imaginá-lo dezoito anos mais jovem, quando ganhara, do nada, a responsabilidade de cuidar sozinho da criança de oito meses que ela era quando sua mãe faleceu.

─ O mesmo de sempre, então? ─ ele ergueu as sobrancelhas, ainda achando graça do relato.

─ Na verdade, não... ─ ela fez uma pausa, enquanto tirava do micro-ondas a carne moída, que tentava descongelar para fazer o molho. ─ Entrou uma menina nova na escola. Na minha sala.

O pai ergueu as sobrancelhas. Aquilo era mesmo uma novidade.

─ E ela é legal? 

Helena encolheu os ombros.

─ Sei lá. Ela sentou do meu lado hoje e meio que tentou conversar comigo, mas eu tava com muito sono pra responder. Aí no intervalo a Isabella chamou ela pra conversar. E no resto da aula ela não falou mais comigo.

Daniel soltou um suspiro, enquanto acendia outra boca do fogão. Aquela era uma noite habitual entre os dois: prepararem juntos o jantar e, na cozinha pequena do apartamento, compartilharem os acontecimentos do dia.

─ Será, então, que ela é igual às outras pessoas da sua sala?

Ela encolheu outra vez os ombros. 

─ Sei lá. Mas agora é meio tarde demais pra descobrir também. Provavelmente aquele grupinho já deve ter enchido a cabeça dela de bobagem...

─ Ou talvez não. Por que você não tenta falar com ela amanhã? É uma possibilidade.

Helena respondeu o pai com um murmúrio. Ela sabia que ele falava aquilo porque se preocupava com ela e suas péssimas relações no colégio. No entanto, não era tão fácil assim; e, afinal, tentar falar com a novata no dia seguinte podia significar ouvir mais alguns daqueles comentários que Lena já se cansara de aguentar.


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