Cactos & Girassóis escrita por Sali


Capítulo 19
Dezoito


Notas iniciais do capítulo

Boa tarde, galera!
As coisas por aqui vão ficar um pouco mais complicadas pros lados da Marina agora. Mas vamos vendo o que rola...



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Sexta-feira | 30 de Setembro

Marina despertou com uma sensação estranha no estômago. E, dessa vez, apesar de ser fim de Setembro ─ o que significava que faltava cerca de um mês para o Enem ─, não era culpa disso seu mal-estar.

Na verdade, ela nem sabia se podia caracterizar o que sentia como um mal-estar, ou localizar exatamente no estômago. Porque, na verdade, o fato era que seu coração batia descompassado, as palmas estavam suadas, e ela sentia uma vontade latente de dormir de novo ─ só para conseguir voltar ao sonho que estava tendo antes do toque do despertador.

A voz de Helena ainda estava viva o suficiente na sua cabeça para soar quase real, apesar de que Marina não lembrava de já tê-la ouvido dizer “Bom dia! Dormiu bem?” naquele tom carinhoso e sonolento pessoalmente. 

Por menor que fosse sua vontade de admitir, sim: ela sonhou que havia dormido com Helena, ambas com roupas largas e velhas como pijama, após assistirem a um filme interessante, e que haviam acordado juntas, os cabelos bagunçados e expressões ainda sonolentas.

E, como se não fosse o suficiente, ela também precisava admitir, pelo menos para si mesma, o tamanho da frustração que estava sentindo ao perceber que nada disso tinha sido real.

Com um longo suspiro, Marina afastou o cobertor e abandonou a cama, procurando energia para começar aquela sexta-feira.

─ ─ ─

Em branco era uma boa definição para aquela manhã. Não que nada tivesse acontecido, pelo contrário: na altura da última aula, a mão de Marina já doía com tantas anotações e cópias, e as aulas de Física, nos primeiros horários, já haviam cumprido a cota semanal de piadas sem graça e machistas da turma inteira e do professor.

Helena, por outro lado, parecia ainda mais silenciosa que o habitual, se é que isso era possível. Marina não deixou de notar que, àquela altura, Lena erguia menos os olhos quando ela entrava em sala, sempre um pouco atrasada, e os cumprimentos das duas, ainda que diários, eram também mais quietos.

Assim, o único aspecto um pouco mais animador da sexta, até então, havia sido o intervalo, quando, numa das mesas do refeitório, Marina se encontrou com Ana ─ o que, nas últimas semanas, havia se tornado um tipo de hábito. Ela, agora, sabia um pouco mais sobre a situação de Marina em relação a Helena, e não perdia muitas oportunidades de falar, com bom-humor, sobre como shippava as duas.

Quando, enfim, a aula de Sociologia terminou, Helena foi uma das primeiras a sair da sala, enquanto Marina ainda guardava os cadernos na mochila ─ o que, nas últimas semanas, vinha acontecendo com certa frequência, e sempre lhe deixava com uma sensação meio incômoda, apesar de ela não conseguir identificar exatamente por quê.

De qualquer forma, depois de juntar o material, Mari enfim abandonou a sala, com a cabeça ainda cheia de pensamentos. Tão distraída que, fazendo seu caminho habitual para o ponto de ônibus, só percebeu que sua atenção estava sendo chamada quando ouviu uma buzina pela terceira vez ─ e, enfim, ergueu os olhos.

─ Mari! A gente tá te chamando há horas! ─ era Jordan, rindo, com a cabeça para fora da janela do carro. Do lado dele, estava Dandara, com outro sorriso.

Marina ergueu as sobrancelhas, genuinamente confusa.

─ Não era pra você estar, sei lá, no estágio agora? 

O irmão da garota riu e encolheu os ombros.

─ Saí mais cedo. Tava combinando um almoço com a Dandara e como a redação do jornal é perto daqui… bora?

Marina acabou dando uma risada pelo nariz e entrou no carro, depois de jogar a mochila e o fichário de lado, no banco de trás.

─ Onde vocês estão planejando ir?

Dandara encolheu os ombros e olhou para a garota.

─ Você tem alguma sugestão?

─ ─ ─

─ Eu prometo que não demoro, ok? Que droga, esqueci completamente que aqui não aceitava cartão… 

Marina e Dandara riram baixo com a frustração de Jordan. Os três haviam acabado de comer pratos consideravelmente grandes num restaurante chinês vegetariano próximo ao colégio; Marina, apesar de não seguir a dieta, adorava almoçar lá, pois o lugar era aconchegante, e a família que o administrava, que viera da China, era extremamente simpática. Pensando no fato de que Dandara era vegetariana, a ideia toda havia sido muito boa.

─ Relaxa, baby… a gente tá de boa hoje ─ Mari encolheu os ombros, enfim, e apoiou a cabeça numa mão, na mesa. ─ É até bom pra fazer digestão, porque o que eu comi…. 

Dandara concordou com um movimento de cabeça.

─ É rápido, ok? Volto já ─ ele garantiu, então, pela última vez, e enfiou a carteira e o celular de volta na shoulder bag que usava antes de sair do restaurante num passo apressado, arrancando mais algumas risadas da irmã e da amiga.

Então, enfim, eram só as duas ao redor da mesa quadrada. Dandara ainda bebia o resto do suco de laranja, enquanto Marina, distraída, brincava com um guardanapo rasgado, já mergulhada novamente nos próprios pensamentos ─ a ponto de, sem perceber, deixar escapar um suspiro profundo.

─ Desculpa se eu estiver sendo intrometida, miga, mas… tá tudo bem? O Jordan me falou que você tava meio mal ultimamente… 

Marina ergueu os olhos para Dandara, que havia pousado o copo na mesa, e abriu um sorriso pequeno, ainda brincando com o papel frágil entre os dedos. Seu primeiro impulso, claro, era dizer que estava tudo bem ─ não queria encher a amiga do irmão e seu role model com seus problemas adolescentes. No entanto, a expressão dela era gentil, genuinamente preocupada, e Mari sentiu certo peso na consciência com a ideia de mentir.

─ Sei lá, esses negócios de vestibular acabam com a cabeça da gente, né… ─ ela, enfim, encolheu os ombros, optando pela meia-verdade. ─ Na verdade, a adolescência no geral… essas coisas de vestibular, ensino médio, amor, sexualidade… argh.

Em um semestre do curso, Jordan havia estudado o básico de Psicanálise numa disciplina, e Marina lembrava de alguns comentários dele sobre o assunto. Àquela altura, ela ja esquecera grande parte, mas mas ficou grava em sua cabeça a ideia de ato falho.

Dandara, ao ouvir o breve desabafo, abriu um sorriso empático.

─ É uma fase horrível mesmo… mas a vantagem é que, quando a gente menos espera, já passou.

Mari abriu um sorriso de lado, os olhos focados no guardanapo destruído, pensando no que acabara de ouvir. Pouco depois, juntou toda a sua coragem e ergueu os olhos, timidamente.

─ Dandara, posso… te pedir um conselho?

A amiga de Jordan ergueu as sobrancelhas com o pedido súbito, mas não pareceu incomodada. 

─ Olha, não sou tão mais experiente que você assim, mas… posso tentar.

As duas soltaram outra risada baixa, e Marina voltou a brincar com o papel picado sobre a mesa.

─ É que… Eu tô apaixonada por uma menina do colégio. Real, sem exagero. Eu conheci ela em Abril e já fiquei com um crush desde o início, mas ela era super fechada, aí depois fui descobrir que ela era zoada lá na sala, um rolê enorme. Mas no final das contas deu certo, a gente ficou amiga, se aproximou muito agora, nas férias, e tal…

E Mari prosseguiu com a história que já havia remoído em sua cabeça tantas vezes: o museu, o cinema, as mensagens no celular, até o momento daquele quase beijo, no seu quarto, no penúltimo dia das férias.

─ Eu sempre fui de boa com essas coisas da minha sexualidade, sabe? Tava esperando um momento certo pra abrir o jogo, falar com meus pais… mas agora parece que minha mãe desconfia, e nada saiu do jeito que eu planejava, e eu travei.

Na visão de Dandara, Marina estava menos buscando um conselho do que alguém com quem pudesse desabafar. No entanto, abriu um sorriso leve e deu um gole do suco antes de começar a falar.

─ Olha, eu não tenho nenhum conselho pronto, tipo receita instantânea, pra poder te ajudar com essa treta ─ ela deu uma risada, e Mari a acompanhou. ─ e ser adolescente e LGBT é muito complicado mesmo, não tem certo ou errado, então em relação a isso você pode relaxar… 

Dandara fez uma pausa para mais alguns goles do suco de laranja, e, surpreendentemente, por mais sucintas que fossem, aquelas palavras trouxeram um certo conforto para Marina, que se endireitou um pouco mais na cadeira.

─ De todo jeito, quando esse tipo de bad bate em mim, eu costumo pensar na ideia de ser LGBT, ser bi, no meu caso, como um orgulho, sabe? É uma característica minha, sim, mas não é à toa. Inclusive, não é à toa que existe tanta movimentação, tanta luta. Sei que falar isso parece aquele clichê love is love que a gente vê na internet o tempo todo, mas é mais que isso: não estamos errados em ser trans, gay, bi, sapatão, a gente não precisa ter vergonha nem medo disso. Também tá tudo bem evitar esse tipo de conversa pra se preservar, mas… se você precisar parar e falar com a sua mãe sobre isso, não tem por que ir naquela vibe de advogado da acusação defendendo causa perdida, sabe? Vale mais a pena ir abraçando o que você é. Que aí o que vier depois fica menos pior.

Foi Dandara que ocupou, falando, os últimos cinco minutos, mas era Marina quem se sentia sem fôlego ─ porque sua cabeça estava ainda mais cheia, mas, dessa vez, de uma forma agradável. Sua vontade era puxar um caderno qualquer da mochila e anotar tudo aquilo, gravar cada uma das palavras da amiga de Jordan. Apesar de ter contato frequente, na internet, com todo tipo de movimento pró-LGBT, Mari precisava ser sincera: nunca antes havia ouvido aquele encadeamento de ideias daquele jeito, com uma clareza que, subitamente, fez todo o sentido do mundo para ela.

─ Não foi um miojo de três minutos, mas… ajudou muito. Obrigada, Dandara.

A moça abriu um sorriso maior, amigável, e encolheu os ombros.

─ Disponha, Mari.

Logo que o suco de laranja acabou, então, Jordan reapareceu na entrada do restaurante.

─ ─ ─

A configuração da cozinha, naquela noite, era rara. Isso porque, extraordinariamente, estavam juntos no cômodo Jordan, Marina, André e Alícia ─ que, devido a uma troca de turnos, estaria em casa naquele jantar e também no dia seguinte inteiro.

Apesar disso, não havia muitas conversas, e o som das panelas, utensílios e movimentos era o mais distintivo no ambiente todo.

─ E o cursinho, Nina? ─ foi André, a certo ponto, a romper o silêncio, depois que Jordan terminou de contar sobre uma matéria que havia escrito sozinho para a edição do jornal do dia seguinte. ─ Tá gostando?

A garota ergueu os olhos da tábua, onde cortava alguns legumes, e sorriu levemente para o pai; a expressão dele era carinhosa, genuinamente interessada, e a fazia lembrar de sua infância, quando ele era quem passava a maior parte do tempo com os dois irmãos, enquanto Alícia estava trabalhando.

─ Tá legal. A professora da salinha de redação é gente boa e eu tô sentindo que tô progredindo nessa parte… acho que vou ficar com uma nota boa.

Alícia também sorriu, enquanto secava um prato do escorredor de vasilhas.

─ Que bom, Nina… eu também acho que você vai se sair bem no Enem.

A garota respondeu a mãe com um aceno positivo de cabeça. 

─ Inclusive, você já tá mais decidida? Lembro que você tava pensando em Arquitetura e Biomedicina… Se bem que agora pode escolher primeira e segunda opção no Enem, não tem essas coisas?

Marina mordeu o canto do lábio e, por reflexo, trocou um olhar com Jordan, sem ideias do que responder no momento. Algo na conversa com Dandara, no almoço, havia mexido com ela, e agora a garota não se sentia mais tão confortável em sustentar a mentira que inventara.

─ Sei lá… ainda tô pensando ─ Mari encolheu os ombros, os olhos mais focados na tábua e na faca do que em qualquer outra coisa. ─ De todo jeito, ainda tem tempo, né… 

Alícia meneou a cabeça.

─ É, mais ou menos… porque a gente já tá praticamente em Outubro, se você for pensar.

Marina soltou um suspiro e, enfim, ergueu os olhos. Numa situação normal, apenas concordaria ─ mas, àquela altura das coisas, sentia o stress em ebulição dentro do seu organismo.

─ Pois é. Mas sei lá, também… ultimamente tô pensando muito no curso de História.

Alícia parou o que estava fazendo na metade.

 ─ História? Mas assim, do nada? Tem algum motivo pra essa ideia?

O tom na voz da mãe de Marina era apenas de curiosidade, mas a garota sabia, pelo hábito, que não era simples assim.

─ Na verdade, eu já tava pensando nele há um tempo.

Alícia guardou o prato com certo barulho e pegou outra vasilha para começar a secar.

─ Mas… História? Quando a gente conversou você parecia tão animada com Arquitetura. E sem falar que você já teria estágio garantido no primeiro período, né… 

Mari havia acabado de levar para o pai as cenouras recém-picadas e, depois de se afastar do fogão, largou a faca na pia sem cuidado. Apesar do movimento brusco, no entanto, se sentia mais chateada do que propriamente irritada com o diálogo. 

─ Nossa, mãe. Eu achei que você já tivesse aprendido com o Jordan, mas, poxa… você não pode ficar controlando as nossas decisões assim. Se você se preocupa tanto só por causa do curso que a gente quer… ─ ela fez uma pausa, enquanto secava as mãos em outro pano, e se afastou um pouco do centro da cozinha. ─ Imagina como iria agir numas situações maiores. Sei lá, se descobrisse que um filho seu é gay, por exemplo.

A frase escapou dos lábios de Marina como se tivesse vontade própria, rasgando à força seu espaço no ambiente ─ e, apesar disso, flutuou no ar com muita calma, como que com preguiça de se assentar e ser esquecida. Ela mesma só percebeu o que havia falado quando sentiu, nas mãos, o pulso aceleradíssimo; a sensação de ter um coração vibrando dentro de cada punho fechado.

Ela soltou o ar que segurava vagarosamente. E, como se estivesse equilibrando no topo da cabeça vários pedacinhos de algo ─ orgulho, dignidade, coragem ─, manteve a postura ereta e anunciou:

─ Vou lavar a mão lá em cima.

O que aconteceria no jantar era um problema para a Marina do futuro.


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