Shadow of the Colossus - O Guerreiro e a Entidade escrita por PZero


Capítulo 1
Prólogo - A União do Destino




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Os grandes mitos... As majestosas lendas; tramas que preenchem os corações dos mortais com admiração e sonhos. Com esperanças... Heróis de eras antigas que jamais serão esquecidas; empunhando os presentes lendários das entidades do sol. Sublimes campeões da luz que nos trouxe à vida... Todas as incríveis fábulas; sejam elas inspiradas em memórias reais, ou não, sempre vieram das mais ínfimas veras; como as árvores colossais que um dia já foram os menores dos brotos, tão insignificantes que poderiam se comparar a meros grãos de areia. No entanto, esta não é a lenda de um honrado herói, mas sim uma história sobre o egoísmo e o sacrilégio de uma simples criança. Um conto sobre o amor... O ódio... A esperança... E sobre criaturas colossais que um dia já foram algo ainda mais atroz e sombrio. A lenda do guerreiro traidor e da entidade primordial cujo nome jamais deve ser proferido sem pesar. O início da maldição dos garotos com chifres.

Tudo começou quando a luz criou a vida, e de seu âmago, surgiram as entidades primordiais; seres com o poder de controlar as energias do mundo para seus ínsitos propósitos. Os dois irmãos representavam o plano físico e o espiritual, estando sempre um separado do outro. Seus propósitos sempre foram incertos... Mas eles observaram os mortais desde o princípio, acompanhando cada passo e queda; cada vitória e derrota, sempre sem interferir diretamente em suas vidas. No entanto, aquele cujo nome transparece apenas sombra e sofrimento, amou os homens mais do que qualquer outra coisa, revelando-se como a soberana entidade da vida e da morte. Seu poder era tão imenso, que aqueles cujas almas se perderam no vazio retornavam ao plano mortal através de sua mera vontade. A entidade guiou os humanos e os ensinou a magia proibida... No entanto, seu desejo de presenteá-los com a ascensão fez com que diversas criações da luz se rebelassem. Houve aqueles que o seguiram apesar de seus erros; aos olhos de alguns, cegos por poder, e aos olhos de outros, lutando por suas vidas... Mas a grande maioria decidiu confrontá-lo, e com o ódio e o amargor, veio a guerra.

Durante dezenas de anos, os seres criados pela luz lutaram bravamente contra a entidade primordial. A cada dia que passava, seus frágeis soldados ficavam mais e mais fracos. Civilizações inteiras caíram... Culturas queimaram no fogo do desejo, e a inocência foi perdida em meio a sangue e solidão. No entanto, um homem sabia sobre a existência da segunda entidade, e sua coragem fez com que firmasse um pacto com aquele que controlava o mundo físico. Por um preço alto demais para que apenas ele pudesse pagar, o guerreiro recebeu a espada ancestral; a única arma capaz de gerar luz onde houvesse apenas trevas. Com o lendário artefato mágico, Taramin lutou contra os colossais fantoches da entidade sombria, libertando seu povo da escravidão eterna. Após a longa e sangrenta batalha, o herói selou a essência da criatura em suas terras amaldiçoadas, e dividiu-a em dezesseis partes; dezesseis ídolos espalhados nos confins do mundo. Assim, a entidade cujo nome jamais deve ser proferido sem pesar fora finalmente derrotada... E Taramin Emon; o guerreiro que libertou os mortais da era das trevas, pôde enfim descansar em paz.

No entanto, tudo vem com um preço, e até mesmo os mais honrados e puros desejos precisam ser cobrados pela balança do equilíbrio. A maldição de Taramin seria o que traria de volta a entidade primordial, e com ela, sangue e sacrifício humano. Quando a magia proibida se concluísse após o último ídolo ser morto, Dormin; o ser capaz de controlar as almas dos homens, retornaria para punir a linhagem Emon e todos os descendentes daqueles que cometeram o pecado da ganância. A fria vingança da entidade sombria teria seu início.

Com o passar do tempo, a história de Taramin e a profecia da entidade primordial se tornaram apenas lendas antigas; uma fabula usada para trazer lições morais a jovens rebentos que recentemente sentiram a dor de perder alguém amado. No entanto, embora uma pedra talhada possa escurecer e empoeirar através das gerações, suas escrituras jamais se apagam. Assim é o destino... E a partir de uma esperança perdida vinda de um antigo mito sobre uma entidade e suas terras proibidas, iniciou-se o ciclo amaldiçoado.

As gotas de chuva caíam sobre as folhas das árvores e plantas mais rasas enquanto o caçador corria determinado por entre os troncos molhados. Um rapaz de pele branca e olhos puxados, cujo cabelo ruivo escurecido balançava conforme sua aceleração. As mãos tremiam. Estava nervoso? Na direita, carregava um arco em péssimo estado, além de algumas flechas na aljava presa à cintura. O rapaz possuía vestes bastante comuns. Uma camisa de pele, calças curtas bem costuradas, e proteções de couro nos pulsos e canelas; pintadas de um azul levemente claro e vibrante. O manto cinza que protegia seu peito e as costas, continha desenhos brancos que formavam curiosas curvas; o tipo de adorno mais comum em sua tribo. O jovem detinha um olhar obstinado... Nada podia pará-lo.

Os Tsa’hik eram uma tribo localizada no sul do continente; entre as belas florestas dos vales verdes, e as cachoeiras claras do rio Tan. Apesar de serem uma sociedade antiga e bem organizada, estiveram passando por um grave problema de falta de recursos após as enchentes do início daquele ano. A maior parte dos bandos de animais selvagens desapareceu, restando basicamente a flora para ser explorada. Aquela sem dúvidas estava sendo a pior época de caça de toda a geração, e a falta de alimento implicava a necessidade de medidas drásticas durante as provações dos novatos. Apesar das dificuldades, todos em Eelry; o vilarejo dos Tsa’hik, se mantinham unidos... Como se cada coração batesse individualmente para alimentar algo maior do que um mero corpo mortal. A união fazia sua força.

O rapaz de cabelos ruivos parou subitamente, tendo enfim encontrado o animal que havia fugido de seu ataque surpresa por conta de um inegável golpe de azar. Era um javali de quase dois metros de altura; tão grande que facilmente ultrapassava o tamanho de um cavalo. O jovem caçador respirou fundo. Seus olhos arregalados não saíam da criatura, que o encarava quase tão obstinada quanto o mesmo. O javali possuía um par de presas que saltava para fora de sua boca, contrastando com sua pelugem acastanhada. O animal ferozmente cavou o chão com seu casco, bufando com intensidade.

— Me dê forças ó deus sol...! — Suplicou o rapaz enquanto sacava rapidamente uma flecha de sua aljava.

O enorme javali não deu tempo; deixou escapar sua última bufada para avançar na direção do caçador com ferocidade. Naquela parte mais espaçosa da floresta; coberta por uma grama alta e imperfeita, ele tinha uma notável vantagem. No entanto, ao visualizar uma grande rocha próxima a uma árvore, o rapaz teve uma ideia. Sua coragem reluziu quando; sem mover um músculo, o mesmo aguardou que o animal chegasse perto o bastante para ser incapaz de atingi-lo caso sua esquiva fosse bem calculada. O sucesso foi perfeito; o jovem se abaixou rapidamente e rolou pelo chão, evitando ser atingido pelo gigante, que passou direto para executar uma curva para a esquerda somente depois. O ruivo não perdeu tempo; correu na direção da rocha e saltou, ficando em pé sobre a mesma por alguns instantes. O javali não hesitou em continuar atacando, e acabou colidindo com o pedregulho com suas enormes presas curvas ao mesmo tempo em que seu alvo pulava para a árvore ao lado.

— D-Droga...! — O rapaz resmungou enquanto se mantinha agarrado a um galho da árvore com a mão esquerda. Na outra, mantinha tanto o arco como a flecha; ambos aguardando seu momento de brilhar.

O javali começou a balançar sua cabeça; atordoado pelo ataque mal efetuado. Se o pedregulho fosse maior, certamente o inexperiente caçador evitaria uma manobra tão arriscada. Como o mesmo tinha pouco mais que um metro, seria um perigo ficar ali em cima, e a melhor opção fora pular. Tirando forças de sua incrível determinação, o jovem balançou o corpo para frente e para trás, e enfim impulsionou-se para cima, conseguindo jogar o braço direito sobre o galho. Bastou um pouco de equilíbrio para que conseguisse ficar em pé ali mesmo, e ao virar-se para o animal, o garoto preparou seu disparo. Após um breve suspiro, ecoou o som peculiar de quando a corda violentamente viaja para frente. A flecha zuniu na direção do grande javali, que foi atingido numa das pernas em uma fração de segundos.

— E-Errei...?! — Se perguntou o ruivo, pasmo. Sua mira não era das piores... Será que a chuva tinha atrapalhado? Até então, a umidade não havia o condenado. Por que o faria apenas no momento mais decisivo? A resposta era bem simples: O jovem estava tenso demais.

Antes que o rapaz pudesse sacar outra flecha, o javali deu a volta na rocha e avançou na direção da árvore, visando atingi-la em cheio. A flecha em sua perna fez com que o mesmo acabasse tropeçando e perdendo velocidade, o que deu tempo para o caçador saltar de cima do galho e cair no chão, molhando mais ainda seu manto durante um rolamento bem efetuado. As presas acertaram em cheio a árvore, derrubando-a rapidamente. O bicho bufava furioso; até parecia um monstro sedento por sangue.

— Vamos... Pense em algo melhor! — O arqueiro resmungava a si mesmo enquanto tentava se esconder atrás de alguns arbustos. Uma respiração tão ofegante seria sua ruína se estivesse lutando contra algum predador. Ali, o javali deveria ser sua presa... Não o contrário!

Longos segundo se passaram. Somente a chuva podia ser ouvida; suaves trovões tomavam conta do ambiente de tempos em tempos, deixando a situação cada vez mais assustadora para o rapaz. Ainda assim, ele sabia que deveria fazer algo, e já tinha um plano em mente. Verificando periodicamente onde o javali estava, o caçador se posicionou de maneira a estar num ponto cego, disparando mais uma vez contra o animal, só que desta vez atingindo propositalmente uma de suas pernas traseiras. No momento em que o fez, o ruivo gritou, chamando a atenção de sua presa para que a mesma não fugisse ao notar que fora atingida por algo que não conseguia detectar. Já em pé; vendo que o javali gigante corria em sua direção, o garoto fez literalmente o que nenhum caçador tentaria: Moveu-se pra cima do animal enquanto berrava um brado incompreensível. Até parecia ter perdido completamente a cabeça... Mas o plano estava seguindo como ele havia arquitetado; bastou rolar da mesma forma que anteriormente, desviando do ataque por pouco, para poder contra-atacar velozmente. Na realidade, o ruivo sabia muito bem o quão debilitado o javali estava; seria muito mais simples evadir investidas como aquele, e com esta oportunidade, um disparo rapidamente foi efetuado na direção da besta selvagem; uma flechada no pescoço. Nada impressionado com o fato de não ter sido o bastante para matá-lo, o rapaz correu até o pedregulho de antes, saltando sobre o mesmo como fizera anteriormente.

— Você consegue... Você consegue...! — Repetiu em voz baixa, serrando o cenho enquanto se virava novamente para o bicho.

Quando o javali estava próximo o bastante para novamente atingir a rocha com suas presas enormes, o garoto pulou em cima do animal, usando-o como apoio para saltar para trás do mesmo. Seu coração parecia estar explodindo; batia tão rápido que poderia sair pela garganta! A besta rapidamente tentou se virar, mas as flechas em suas pernas fizeram com que acabasse caindo miseravelmente antes de poder atacar seu agressor. Neste momento, o ruivo já sabia que havia vencido o contra-ataque da natureza; com três flechas apontadas simultaneamente para a cabeça do enorme javali, o caçador respirou fundo e disparou mortalmente a uma distância menor que um metro. O crânio do bípede foi facilmente perfurado. A criatura caiu com um triângulo de penas na testa... Estava morta.

Novamente a calmaria tomou conta. Enquanto centenas de gotas caíam ao mesmo tempo sobre as folhas dos arbustos e das árvores, uma águia pousava num galho alto para observar a cena. Após longos segundos encarando o animal derrotado, o rapaz deixou seu arco cair no chão, dando alguns passos para trás com uma expressão indescritível em seu rosto. Todas as flechas haviam acabado... Se tivesse cometido algum erro, certamente estaria morto.

— Eu... Consegui...? — Se perguntou num tom quase inaudível.

De repente, uma segunda voz pôde ser ouvida. — Wander! — Outro caçador gritou enquanto corria na direção do ruivo. Tinha cabelos castanhos bem curtos e uma tatuagem tribal no canto do rosto. Vestia um manto leve como todos os outros, mas em tons de amarelo.

O rapaz que havia abatido o animal se virou. Outros quatro caçadores tinham presenciado o momento em que ele finalmente executara o enorme javali. Todos estavam boquiabertos... Com seus arcos em mãos, eles se mantinham estáticos sem saberem exatamente o que dizer ou como reagir. Ninguém nunca havia caçado uma besta tão grande em décadas, e sem dúvidas Wander era a pessoa que se menos esperaria tal feito; apesar de sua descendência. Num momento onde a caça estava tão difícil, quais as chances de um pequeno e magricelo garoto caçar um animal de mais de duas toneladas...? Até parecia que feitiçaria havia ludibriado os olhos deles, mas era tudo real: Wander; o garoto dos estábulos, acabara de entrar para a história!

— Wander... Você... — O rapaz que havia o chamado antes foi se aproximando lentamente... Até começar a correr na direção do ruivo sem aviso prévio, abrindo um sorriso enorme no rosto. — Você é incrível! Como conseguiu matar essa coisa enorme sozinho?! — Questionou o jovem enquanto olhava para o javali.

Wander não fazia ideia de qual resposta deveria dar. Apenas tinha feito o que sua intuição dissera. Simplesmente havia usado a inteligência enquanto lutava para sobreviver... — Bom, eu...

— Uau, olha o tamanho disso! É comida pra aldeia inteira! — Exclamou outro caçador, interrompendo seu colega. Este aparentava ser um pouco mais novo que os demais, apesar de ter a mesma idade que Wander e os outros. Olhava para as presas do javali com um pouco de receio, mas logo perdia a timidez e começava a tocar em uma delas para verificar se era mesmo real. Sem dúvidas nunca havia visto algo tão grande... Seus olhos brilhavam.

— Como uma coisa dessas se escondeu por tanto tempo...? — Questionou um garoto de longos cabelos presos. Tinha um ar superior se comparado aos outros; analisava a besta com bastante cuidado. Aparentava ser um dos membros mais calculistas do pequeno grupo... — É enorme... Achei que javalis gigantes tinham desaparecido. Onde encontrou ele, Wander? — O jovem se virou para o novo ídolo. Neste momento, todos ficaram em silêncio para ouvir o que o mesmo teria a dizer.

— No lago da flor verde. — Respondeu o ruivo. — Acho que ele veio do sul... Não tenho certeza. — Completou. As terras ao sul eram extremamente perigosas; qualquer caçador era proibido de ir até lá sem permissão do próprio ancião da tribo, já que os mais temidos predadores se encontravam naquela região.

— O senhor Skjor vai ficar de queixo no chão...! — Disse outro membro do grupo de caça, olhando para os demais com absoluto entusiasmo. — Nós temos que levar isso para Eelry agora mesmo!

— Impossível... Esse bicho deve pesar mais que cinco cavalos! — Contestou o rapaz de cabelos negros.

— Vamos chamar os outros. — Wander disse, finalmente tomando a frente. Não era menos do que justo... Afinal, ele quem havia abatido a besta. — Dreeh e Hassha ainda devem estar com os machados, certo? Nós podemos usá-los para cortar o javali em partes e...

— Vamos levar a cabeça?! — Questionou o mais infantil dos jovens caçadores, se aproximando do ruivo repentinamente.

— S-Sim, Uta... Nós vamos... — Gaguejou Wander, assentindo enquanto mantinha as mãos na frente corpo para evitar que o colega chegasse mais perto.

— Isso! — Gritou Uta enquanto saltava no mesmo lugar.

Assim se encerrou a provação de caçador dos Tsa’hik daquele ano. Com a chegada dos outros membros do grupo, os machados foram usados para desmembrar o enorme javali, restando apenas a cabeça intacta. No fundo, Wander não concordava muito em levar o crânio do animal; ter abatido uma presa tão grande fora mera coincidência, e o ruivo não almejava fama como muitos ali presentes. Entretanto; já que um dos parceiros havia insistido excessivamente, o rapaz acabou tendo que aceitar. Sem dúvidas era a parte mais pesada, pois não podia ser dividida ao meio como o restante do corpo da besta. Como já era de se imaginar, ele mesmo quem precisou arrastá-la. Quando os novos caçadores chegaram à Eelry, foram aplaudidos quase tanto quanto os grandes heróis que um dia acompanharam Taramin até as terras proibidas; aquela era uma tarde realmente memorável! Com a necessidade que a tribo estava passando, um animal grande como aquele garantiria pelo menos dois dias de alimento para todos os aldeões e sentinelas que ali viviam.

Houve uma grande comemoração no lugar da pequena cerimônia que normalmente ocorreria para congratular os novos caçadores. Quando a chuva cessou, as nuvens cinzas deram lugar ao céu alaranjado do pôr do sol, criando uma aquarela perfeita para a festança. Após alguns minutos, uma grande fogueira tomou seu lugar no meio do vilarejo, dando cor à carne avermelhada do javali aos poucos. Aquele silêncio da solidão causada pela fome foi quebrado, e uma música animada tomou conta de toda a aldeia. Flautas, kemenches, tambores; a junção de tudo formava uma melodia que combinava perfeitamente com as danças ao redor do fogo, assim como as palmas nos tempos certos entre a canção, cuja letra expressava glória e falava sobre fartura. Mesmo sendo extremamente tímido quando se tornava o centro das atenções, Wander se deixou levar pelo calor do momento e comemorou junto aos outros, dançando e rindo com seus parceiros de caça. Havia sido o melhor dentre os dez; os quatro que haviam feito boas caças não conseguiram nada melhor do que veados jovens e pequenos lagartos de rabo branco, e os outros cinco trouxeram apenas coelhos para casa. Nada se comparava ao verdadeiro monstro que Wander abatera!

Após algum tempo de festança, o líder dos caçadores da tribo se pronunciou.

— Meus irmãos! Hoje foi um dia de glória e resplendor para os nossos novos caçadores! O sol brilhou novamente para os filhos da luz, e nós sorrimos de volta em agradecimento! — Disse o homem enquanto abria os braços; tão alegre quanto qualquer um ali. Skjor; o líder dos caçadores dos Tsa’hik, era um homem alto e barbado. Assim como a maioria, tinha cabelos curtos e acastanhados, e apesar dos pêlos grisalhos, era detentor de braços fortes e de uma expressão vívida inspiradora. Todos bateram palmas, e após suas breves palavras, ele se aproximou de Wander, segurando o pulso do rapaz após fitá-lo com certo carinho. — A partir de hoje, nossa realidade muda... Viva a Wander! Filho de Alois! Viva aos Tsa’hik e ao deus sol!

Os olhos do jovem caçador brilharam quando Skjor levantou seu braço e todos gritaram em aprovação. Aquele era um dia único... Wander sabia de seu potencial, mas nunca esperaria chegar até ali. Skjor já fora um grande amigo de seu pai, e a fama que Alois teve em Eelry fora a de melhor caçador de sua geração. Cabia ao seu único filho seguir os passos do pai; por mais que preferisse estar em outro lugar ou vivenciando um futuro completamente diferente. A verdade é que Wander não queria a glória... Mas aquele pequeno momento de felicidade o fazia se sentir tão realizado, que poderia ver a imagem de seu pai diante de seus olhos caso se deixasse levar. Quando imaginava algo assim, o ruivo podia enxergar somente satisfação.

— Sei que em algum lugar, seu pai está orgulhoso de você, Wander. — Skjor disse ao rapaz em voz baixa. Seu sorriso era profundamente sincero; ele estava feliz pelo filho de seu velho amigo.

— Obrigado, Skjor... — Os dois se abraçaram. — Você quem me ensinou tudo o que sei. — Afirmou o ruivo, sorridente. — Obrigado por ter me ajudado...

Quando os dois se afastaram, Skjor passou as mãos na frente dos olhos, limpando algumas lágrimas que vieram de surpresa. — Já chega de todo esse drama... Homens de verdade não choram, não é mesmo? — O barbudo riu de si mesmo, virando-se para uma mesa com diversas máscaras; todas feitas de madeira. Sem hesitar, ele pegou a única que fugia do padrão... Uma máscara marrom que cobria apenas do nariz para cima, feita de uma madeira escura e resistente cujos desenhos de penas imitavam muito bem os de uma águia. Os olhos eram contornados em linhas brancas, e seus buracos terminavam em fissuras finas extremamente bem trabalhadas. No meio, um bico preto e amarelo mostrava imponência... Como o de uma ave de rapina. — Você merece... — Completou Skjor.

— I-Isso é...! — Wander arregalou os olhos, fitando o velho em seguida. — O senhor tem certeza...? Só os melhores caçadores podem usar a máscara da águia...

— Não tenho dúvida alguma. — Afirmou o homem, aproximando o objeto de seu novo dono. — Coloque-a. — Completou ele.

O jovem hesitou por um momento... Não sabia se era realmente digno de tal peça. Seu pai também havia sido um dos detentores da máscara da águia. No entanto... Wander não era Alois. Apesar da dúvida, o rapaz levou-a até o rosto após alguns instantes encarando seu interior. As máscaras eram a marca mais forte da cultura dos Tsa’hik. Caçadores, guerreiros, sentinelas, sacerdotes... Até mesmo o próprio ancião possuía uma, e cada peça tinha seu significado.

A máscara do xamã; herdada por aqueles que possuíam o sangue da família Emon correndo em suas veias; pertencente aos anciões de Eelry.

A máscara dos titãs; dada ao único homem capaz de empunhar a espada do sol.

A máscara do poder; concedida aos poderosos guerreiros Tsa’hik.

A máscara da força; usada pelos sentinelas que guardavam a aldeia de Eelry.

A máscara da sabedoria; pertencente aos sacerdotes da tribo.

A máscara da verdade; concedida apenas àqueles com o poder de ver e interpretar profecias.

A máscara do lobo cinza; usada pelos caçadores de Eelry.

E enfim, a máscara da águia, pertencente ao mais habilidoso predador Tsa’hik.

— Você também irá precisar disso. — Skjor disse de repente, pegando um arco que estava sobre a mesa. Sua madeira avermelhada era extremamente rara naquelas terras, e seus detalhes eram mais do que belos, apesar de simples. A arma possuía uma amarra de corda em seu punho, permitindo que mais de uma flecha pudesse ser apoiada sem muita dificuldade. Algo assim teria ajudado um bocado mais cedo, quando o jovem disparou três flechas duma só vez no grande javali.

— O arco do sangue... — Wander analisou o objeto por completo. Se lembrava vagamente daquele arco; seu pai o havia usado, e dissera que quando ele completasse a provação do caçador e se mostrasse digno, seria seu novo dono. Ter finalmente a honra de poder segurá-lo significava completar seu objetivo máximo. Wander havia chegado ao lugar que seu pai desejava que ele estivesse desde o começo...

— Agora ele é seu. — Afirmou o líder do grupo de caça. — Não foi fácil consertá-lo... Mas sei que seu pai iria querer que eu o entregasse a você depois de um feito tão grandioso.

— Obrigado, Skjor...! — Com os olhos um pouco molhados, Wander segurou o arco. Estava levemente trêmulo. Será que seu pai estava sorrindo naquele momento? O rapaz não conseguia parar de se perguntar isso... — Irei cuidar bem dele! — Completou, contente.

— Sei que irá. — Disse o homem.

— Meus parabéns, rapaz. — De repente disse uma voz rouca e um pouco grave. O coração de Wander disparou como uma flecha obstinada... Aquela máscara bege com um par de chifres sem ponta acima da testa era a mais conhecida de Eelry. Os buracos quadrados no lugar dos olhos, combinados com o longo desenho de nariz no meio do rosto, faziam dela única... Aquele era o xamã Emon; o ancião dos Tsa’hik. Além do longo manto vermelho em seu peito, o homem idoso vestia um casaco azul que chegava até um pouco acima dos calcanhares; era completamente diferente de todos que estavam ali.

— Lorde Emon...! — Wander imediatamente se ajoelhou e abaixou a cabeça. Já havia visto o ancião diversas vezes, mas nunca fora abordado diretamente daquela forma.

— Não se curve, meu jovem... — O xamã disse, se aproximando do rapaz e colocando a mão direita em seu ombro. Wander então foi se levantando lentamente. — A partir de hoje tu não és mais um mero aprendiz. — Completou Emon, levantando a máscara e demonstrando um leve sorriso. O homem tinha o rosto flácido e um cavanhaque curto, além de olhos castanhos extremamente claros que perfuravam a mente de quem os encarava. O xamã fitou a multidão atrás de Wander.

Quando o ruivo se virou para o aglomerado ao redor da fogueira, notou que todos estavam o observando sem dizer qualquer palavra. As pessoas esperavam algo... Queriam ver força. Um silêncio efêmero se espalhou, e Wander respirou fundo enquanto sua mente mergulhava num impasse. Aquele era um dia de vitória... Mas por que no fundo de seu coração o rapaz ainda sentia que havia algo errado? Que aquele não deveria ser seu destino...? Wander não sabia... Mas mesmo assim, ergueu seu arco e agiu como todos esperavam que fizesse. Aquele era o ponto... O que ele não havia enxergado; Wander sempre esteve tentando fazer o que os outros esperavam que fizesse. Sempre buscando superar as expectativas de todos...

As horas foram se passando, e a noite caiu num piscar de olhos. Após a cerimônia de conclusão da prova do caçador, todos começaram a comer e beber. A música retornou ao fim dos discursos, e prometia continuar intensa até que todos estivessem exaustos demais para continuarem dançando. Assim como era de se esperar, a carne do javali combinada com as especiarias recém coletadas havia ficado perfeita, e o chá de ervas do norte trazia frescor a cada gole. Tudo estava muito animado... Mas na primeira chance que teve, Wander se isolou um pouco e finalmente sumiu; como um felino astuto e furtivo. Não era como se fossem sentir sua falta tão cedo, pensou... Na realidade, talvez não fossem sentir, visto que o rapaz havia sido inteligente o bastante para contar toda a história do javali antes mesmo que começassem a perguntar. Com todos se divertindo tanto e em tamanha algazarra, ninguém perceberia que o pequeno Wander sumira em meio às sombras da noite. Talvez tivesse se isolado para descansar da árdua caçada de mais cedo. Ou quem sabe estava investindo seu tempo em tentar ficar com alguma das poucas garotas da vila, já que era o centro das atenções naquela festança toda... Não. Seu sumiço na verdade não passava de uma fuga...

O pequeno vilarejo de Eelry era rodeado por altos e grossos muros de madeira. Por conta dos perigos da noite, era estritamente proibido sair sem permissão ou ao menos uma pessoa acompanhando. A regra era ainda mais rigorosa se tratando de mulheres e crianças, já que a esmagadora maioria não saberia se defender. Isso reforçava que todos deveriam ficar juntos quando o sol deixasse os céus. Apesar de ter total ciência dessas regras e costumes, Wander fugia da aldeia praticamente todos os dias antes do pôr do sol, sempre retornando antes do anoitecer, quando a segurança dos sentinelas ficava duas vezes mais rígida. Sua rota sempre era traçada através de um buraco sob o grande muro de madeira; exatamente onde se encontravam os estábulos. Bastava esconder tudo com palha de um lado e folhas do outro, evitando que qualquer curioso descobrisse aquele macete tão óbvio. O rapaz rumou até sua saída secreta e removeu a palha, entrando pelo estreito buraco para brotar de um amontoado de folhas e galhos do lado de fora. Após limpar suas vestes, o ruivo verificou se não estava sendo observado, saindo em disparada logo em seguida. Nunca perdia tempo; se preocupar demais poderia se tornar um grande problema qualquer dia daqueles.

Wander adentrou o bosque leste e começou a diminuir a velocidade de seu passo, passando a ser guiado pelo brilho intenso da lua. Não demorou para chegar onde realmente desejava; uma área aberta bem no meio da floresta; o tipo de lugar que não se encontra com facilidade. O rapaz fazia o mesmo caminho com tanta frequência, que até mesmo durante a noite o acertava. No meio do grande espaço gramado, havia uma enorme colina, cujo topo era preenchido por uma única árvore frutífera em perfeito estado. Aquele lugar era como um pequeno pedaço das terras divinas... Era possível vê-lo de Eelry, mas apenas se a pessoa estivesse sobre algum telhado ou em um ponto mais alto. Wander começou a escalar a colina com um pouco de dificuldade; sempre era assim, graças ao quão íngreme a mesma conseguia ser se comparada às que ficavam nos arredores. Ao alcançar o topo; um pouco ofegante, ele se virou para a direção de onde veio. A vista era incrível... Apesar do silêncio, dali era possível ver toda a comemoração acontecendo em Eelry. Por alguma razão ela parecia ser bem mais interessante de longe...

O rapaz tocou as costas no tronco da enorme mangueira e fechou os olhos, respirando fundo. A sensação que aquele ambiente tão especial passava era única... Como se uma leve energia de paz e serenidade perfurasse seu peito gentilmente. O coração de Wander pulou de repente, então. Uma voz o atingiu desprevenido. Havia mais alguém ali...! Seus ouvidos bem treinados podiam escutar uma melodia que vinha do outro lado da árvore. Apesar do susto, ela era tão belamente cantada, que poderia dormir caso se deitasse e a situação fosse outra. A razão engoliu o rapaz; não havia como ser alguém que o estava seguindo, já que esta pessoa tinha que estar ali antes dele para começar a cantar tão despreocupadamente. Wander então começou a dar a volta na árvore; um pouco mais calmo... E ao chegar do outro lado, se deparou com uma moça de longos cabelos negros e vestido branco entoando para a lua. Sentada como a estátua de uma belíssima deusa, o vento parecia querer levar suas vestes para longe do corpo esbelto que cobriam; este tão perfeitamente construído que poderia superar o de qualquer mulher que Wander já tenha visto. Aquela linda garota que se parecia com uma fada, fora a mais bela dama que o rapaz encontrara em toda a sua vida.


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