Suturas e Navalhas escrita por counterpartb


Capítulo 6
Pacto com o Diabo




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Nunca tinha me sentido daquele jeito antes. Era como se meu corpo gelasse de dentro pra fora, e a cabeça entrasse em pane. Olhei em volta e, muito conveniente, estávamos praticamente a sós naquele quarteirão, com exceção de um carro preto estacionado do outro lado da rua e seu motorista.

Será que tento sair correndo? Grito por socorro?

Encarei Finn sem saber o que dizer, mas com a certeza de que não deveria ir com ele pra lugar nenhum. Só pensava em Dawn sozinha, e no que minha ausência poderia causar.

— E se eu disser que não? 

— Se eu não te levar, alguém vai. — Ele parecia falar sério, e menos arrogante agora. — Mas não tem porque dizer não. Ele só quer conversar com você.

Se eu não estivesse em pânico, acharia graça de como “ele” é sutil em começar uma conversa. Ficamos em silêncio por alguns momentos, enquanto Finn me encarava e eu tentava pensar num jeito de sair de fininho dali.

Infelizmente não via nenhuma saída, mas admito que não estava raciocinando muito bem. A cada segundo que passava, mais insegura eu ficava. E se eu for e não voltar mais? Mas e se eu recusar, e for pior? Se descobrirem Dawn e algo acontecer com ela? Não sei o que fazer.

E, afinal… O que a porra do Thomas Shelby quer comigo?

— Tenho que estar de volta o mais rápido possível. — Respirei fundo e levantei o queixo, fingindo ser valente. — Se puder me garantir isso, vou com você.

Finn sorriu, o que lhe fez parecer ainda mais jovem, e apontou pro carro ao nosso lado. Ficou parado ali até que eu me mexesse, de pernas bambas, naquela direção.

Não acredito que isso está acontecendo comigo. Não fui a única enfermeira que o viu na ala 6, nem a única que cuidou dele durante aquelas semanas. A maior parte do tempo era eu, sim, mas como ele saberia disso? Como qualquer um saberia?

Entrei no carro com as mãos geladas e o coração acelerado. Peguei um cigarro entre os dedos e o vi tremer, mas acendi do mesmo jeito. Agora não tinha mais volta. Abri a janela e vi a igreja se afastar — se havia algum momento da minha vida em que eu precisava de ajuda divina, era agora. A não ser que isso tudo faça parte de um grande plano ou coisa parecida… Nesse caso, só quero pular fora mesmo.

No banco do motorista estava um homem moreno, de boina e sorriso torto. Falava com Finn como se fossem amigos, e fiquei curiosa sobre qual seria a relação deles. Não que eu fosse perguntar. 

Pensando bem, fui mais burra do que imaginei: E se ele não for um Shelby? Ele poderia ser um maluco qualquer que pega mulheres na rua e faz sabe-se lá o que com elas longe da cidade. Deveria ter pedido uma prova de que era quem dizia ser — mas como ele saberia sobre o hospital e nosso convidado especial então? Além disso, nada garantia de que ele tentaria me provar qualquer coisa também.

Estava confusa. Eram muitas variáveis, muitas possibilidades, mas nenhuma era boa. Não tinha coragem de perguntar nada, até porque nem sei se me responderia, mas tinha cada vez mais dúvidas. Será que vão me abandonar em uma vala qualquer? O que eles ganhariam com isso? Só tenho uma cigarreira e uma caixa de fósforos aqui comigo. O lucro deles seria zero.

Aos poucos o cinza começou a ficar para trás, e o verde dos campos apareceu. Não estávamos no carro há muito tempo, mas me pareciam horas. Queria abrir a porta do carro e me jogar pra fora, mesmo em movimento. Se soubesse onde estávamos, talvez o tivesse feito, mesmo que ficar perdida no meio do caminho fosse tão perigoso quanto.

Precisava fazer alguma coisa. Dizer alguma coisa, não sei. Estava com a ansiedade subindo pela garganta. Talvez descarregar algumas perguntas não faça mal. Afinal, se ele não quiser responder, não fará diferença.

— Eu não sei nada que as outras enfermeiras não saibam sobre seu irmão. — Quebrei o silêncio. — Nem tenho nada a oferecer a vocês. 

Não que vocês pareçam precisar de algo, mas…

— Não precisa se preocupar, Srta. Price. 

Ele e o motorista sorriram entre si, como se achassem graça do que falei. Fiquei um pouco constrangida e me calei, olhando os casarões passarem. Não sabia o quanto tínhamos andado, mas pela tranquilidade em que os dois na frente conversavam, parecia ser um caminho que conheciam bem. Estavam bem humorados, e tive um pensamento otimista por um segundo: talvez Finn estivesse dizendo a verdade, e é tudo só um encontro esquisito. 

Não que isso melhore muito as coisas.

— E como sabia que era eu? — Perguntei, acendendo mais um cigarro. Tinha certeza nunca o tinha visto antes, Shelby ou não.

— Uma enfermeira com um olho de cada cor não é muito difícil de se achar. — Ele riu, divertido. — Pelo menos é a primeira vez pra mim. 

Respirei fundo e fechei os olhos, deixando o vento varrer meu rosto. É claro que era isso. Quando foi que ser assim me trouxe qualquer coisa boa? Pois é. Nunca. 

Talvez realmente seja uma maldição, um mau agouro ou coisa do tipo, mas nunca vou saber. Desde pequena penso nisso, e nunca descobri. Às vezes acho que é só um defeito do meu corpo, que dei azar de encontrar pessoas tão ruins durante a infância, mas só às vezes. Na maioria do tempo, odeio ser assim.  

De repente o motorista fez uma curva à direita e entramos em uma via de cascalhos, provavelmente a entrada de alguma das casas. Passamos por um portão aberto e, enquanto eu apagava meu milésimo cigarro do dia, o carro parou. Descemos no que parecia ser nosso destino: uma casa enorme, vermelho-tijolo, com inúmeras janelas e até uma fonte da frente da porta de entrada.

Na verdade, não podia dizer que aquilo era uma casa. Era uma mansão, alta e cheia de ornamentos, como pilares na porta da frente e telhados pontudos. Tinha um jardim extenso e bem cuidado a sua volta, e isso era só a parte da frente. Acho que nunca entrei num lugar assim. 

Pelo visto, o crime realmente compensa. 

Saí do carro e segui Finn até a porta da casa em silêncio. Agora, prestes a encontrar o famoso Thomas Shelby — consciente, dessa vez — me sentia nervosa de novo. As palmas das minhas mãos suavam, e percebi, vendo meu reflexo em uma das janelas, que o vento bagunçou todo meu cabelo. Achei melhor soltá-lo, pra não ficar ainda pior do que já estava, de cara lavada e poucas horas de sono, e o ajeitei com as mãos. Melhorou um pouco, mas não muito, pra ser sincera. 

Uma senhora de cabelos grisalhos e rosto magro atendeu à porta, nos cumprimentou e entramos. Se por fora a casa parecia grande, por dentro era ainda mais; diversos quadros, vasos, lustres, estantes de livros que iam de parede a parede, uma sala de estar, uma sala de jantar, uma sala disso, outra daquilo… Era impressionante. Até o teto era alto e bonito. Fiz tudo que podia para não demonstrar meu deslumbre, mas realmente era de cair o queixo. 

Pensei no meu apartamento, se é que posso chamá-lo assim depois de ver um lugar desses, que cabia inteiro em uma dessas salas daqui, e me senti pequena. Nem se eu trabalhasse 24 horas por dia, todos os dias da minha vida, conseguiria morar num lugar assim.

O que me faz voltar à pergunta: o que um cara desses quer de mim?

Continuei seguindo Finn e subimos uma escada bonita de madeira polida, passamos por algumas portas, até que ele abriu uma delas e entrou. Não sabia se deveria entrar também, mas o garoto logo colocou a cabeça pra fora e acenou para eu ir até lá. Eu fui.

Lá vamos nós.

Sem surpresas, entramos em mais uma sala grande, com estantes cheias de livros, tapetes caros, e uma mesa grande de madeira no fundo. Atrás da mesa, janelas altas clareavam o ambiente.

— Oi, Tommy. — Finn atravessou a sala até a mesa, onde o irmão sentava, concentrado no que quer que fosse que estava escrevendo. — Essa é a Srta. Price. 

Dei alguns passos a frente quando ouvi meu nome, mas não queria chegar muito perto. A verdade é que, ricaço ou não, Thomas Shelby ainda era intimidante. A cabeça dos Peaky Blinders. Sinceramente, aquele era um território em que eu não gostaria de pisar. Entrelacei as mãos na frente do corpo, alguns passos atrás de Finn, e ali fiquei. 

“Tommy” finalmente levantou os olhos do que fazia e fitou o irmão por um momento antes de dizer, numa voz grave:

— Obrigado, Finn. Pode ir agora. — Ele juntou as mãos em cima da mesa, parecendo condescendente. — E diga ao Johnny que ele vai sair de novo daqui a pouco. 

O mais novo sorriu, meneou a cabeça e saiu, me dando uma piscadela antes de fechar a porta atrás de si. Era um abusado, mas melhor do que eu imaginava.

Continuei parada no lugar, esperando ele dizer alguma coisa. Estava olhando para a papelada à sua frente novamente, com um óculos de aro fino e dourado no rosto, como se eu não estivesse lá. Vestia um terno cinza bem alinhado, provavelmente caro, e tinha a linha do queixo forte, bem marcada. Se não me lembrasse tão bem de como estava no hospital, pálido e vulnerável, não acreditaria que era a mesma pessoa.

Finalmente, Thomas disse:

— Bom dia, Srta. Price. — Ergueu os olhos e me encarou por um momento, a expressão impassível. Logo apontou para uma das cadeiras na frente da sua mesa. — Sente.

Obedeci, sentindo a boca seca. Queria fumar um cigarro. Queria dar meia-volta e ir embora. Queria voltar no tempo e faltar a todos os plantões em que ele estava na ala 6… Mas tudo que podia fazer era sentar ali, a sua frente, e o encarar.

Thomas Shelby. Era diferente vê-lo ali, consciente e saudável, como se nada tivesse acontecido. Seus olhos eram muito azuis, o cabelo muito bem aparado, e tinha uma presença como nunca vi antes. Não queria ser indelicada, mas a cicatriz na sua cabeça chamava atenção, e a encarei por um momento. 

Ele se recostou na cadeira, abriu sua cigarreira e acendeu um cigarro, despreocupado. Parecia realmente o rei da sua própria casa.

E eu, desarrumada e pálida, era só uma plebeia. De repente me sentia super consciente do fato de estar vestindo a primeira coisa que achei no armário, despenteada e cansada, mas não tinha o que fazer. Aceitei o constrangimento.  

— Me disseram que foi você que passou a maior parte do tempo onde eu fiquei, no hospital. Certo?

Concordei com a cabeça, sem querer interromper o que parecia ser uma longa fala.

— Bom, então você deve saber que eu tomei uma bala na cabeça, e que ela continua aqui. — Seu olhar era frio, mas seu tom era forte, quase bruto. Balancei a cabeça novamente. — E também que ninguém sabe que eu estive lá, tirando os funcionários do hospital. 

— Sim. 

— E é assim que deve continuar. — Apontou pra mim com os dedos que seguravam o cigarro. — Por isso chamei você.

Respirei fundo, ainda sem entender. Me trouxe até aqui pra me dizer pra ficar calada sobre o que aconteceu no hospital? Ele estava fazendo isso com todo mundo que o atendeu lá e, pasmem, mais de um mês depois de ter saído de lá?

— Não falei pra ninguém o que aconteceu, Sr. Shelby. — Afirmei, sem saber o que mais poderia dizer. — E nem pretendo. Esse tipo de assunto não me interessa.

Thomas se inclinou pra frente na cadeira, e uma faísca acendeu em seus olhos. Me arrependi na mesma hora.

— Que tipo de assunto é esse, Srta. Price? 

Nos encaramos por um momento, até que ele ergueu as sobrancelhas, esperando uma resposta. 

— Fofocas. Não é muito meu tipo. — Senti meu rosto esquentar um pouco, acanhada.

Ele encostou na cadeira novamente, agora com um pequeno sorriso nos lábios. Algo nele era inquietante, e me sentia desconfortável ali, sob seu olhar. Só queria ir embora o mais rápido possível.

— Você acha que eu te traria lá de onde quer que seja só pra te dizer pra não fazer fofocas? — Rolava o cigarro pelos dedos, soltando fumaça entre palavras. — Você parece mais esperta do que isso. 

O encarei, sem saber o que dizer. Pelo visto era algo comum de se acontecer numa conversa com ele.

— Srta. Price, meu médico acha que eu deveria ter algum tipo de supervisão, por causa da operação. — Qualquer tipo de humor sumiu do seu rosto, e apagou o cigarro com força no cinzeiro. — Estou tendo alguns efeitos colaterais. Mas, na verdade, não preciso de uma babá. Preciso que o doutor e o resto da minha família pensem que eu tenho uma. E é aí que você entra. 

Fiquei pasma por alguns segundos. Ele quer que eu finja ser sua enfermeira? Não poderia pedir para alguém mais próximo dele fazer isso, como uma esposa ou até uma empregada? Não fazia sentido. Além disso, eu tinha meus plantões, minha rotina, Dawn — seria impossível esconder algo assim dela. Até no hospital eu ficaria em maus lençóis. Era impensável. 

Mas como dizer não para a porra do Thomas Shelby? Aí sim que vou parar numa vala qualquer por aqui.

— Desculpa, Sr. Shelby. Você disse que teve efeitos colaterais? — Me inclinei pra frente, curiosa. — Nesse caso, não é melhor voltar pro hospital? Não sei como vou poder te ajudar com isso. 

— Eu já disse como você vai me ajudar. — Ele cruzou as mãos na frente do corpo, com uma expressão dura no rosto. Parecia irritado, ou impaciente, talvez. — Você vai ficar aqui, vestir sua roupinha de enfermeira e fingir que está trabalhando. Não vou voltar pra porra de hospital nenhum. 

Engoli em seco, constrangida. Ele se mantinha composto, mas enchia suas palavras e seu olhar de assertividade, quase agressivo, porém contido. Tinha sangue frio de verdade. 

Só que eu não tenho como fazer o que ele quer. Aquilo era uma cena, um capricho que queria fazer para a família não lhe pressionar, enquanto eu tenho responsabilidades de verdade pra cuidar. Contas a pagar, remédios pra comprar, plantões pra dar… Não posso parar tudo porque um bandido milionário quis assim. Talvez os Shelby não saibam mais como é isso, mas isso não é problema meu.

Agora, como vou falar isso pra ele?

— Sr. Shelby, eu agradeço por ter me chamado, mas ainda tenho meu emprego no hospital. Passo pelo menos de 8 a 12 horas por dia lá. — Disse, rápido como arrancar um curativo. Sentia o coração martelar no peito. — Não tenho como atender seu pedido.

Thomas suspirou e pegou mais um cigarro. 

— Sei disso, Srta. Price. E também sei que você recebe menos do que o cara que limpa as merdas do meu cavalo. Por isso vou te pagar três vezes o que você recebe lá, pra estar aqui no fim da tarde e ir embora de manhã, fingindo ser a melhor enfermeira da porra de Birmingham. Parece bom pra você?

Não consegui disfarçar minha surpresa, e também não poderia dizer que ele estava errado. Enfermeiras não recebem quase nada, mesmo sendo melhor do que antes, em que não recebíamos nada, literalmente. Mas três vezes o que recebo no hospital? Nem conseguia imaginar. Poderia chamar o Dr. Hughes mais vezes, comprar remédios melhores, pagar o aluguel no dia certo... Se conseguisse diminuir os plantões durante o dia, teria mais tempo pra ficar com Dawn também. Parecia uma ótima proposta. Quase boa demais.

Olhei para o Sr. Shelby, que me encarava sem emoção, sentado à minha frente. Aquele não era um gangster qualquer, daqueles que usam sobretudos com metralhadoras escondidas e assaltam bancos, como nos filmes — talvez tenha sido um dia, mas não agora. Quem sentava ali, à minha frente, era um homem de negócios. 

Por que isso parece ainda pior?

— Eu… — Abri a boca pra falar, mas não tinha o que dizer. Era uma proposta irrecusável, mas inaceitável também. Trabalhar para um Shelby; será que isso me faz uma criminosa por associação? — Mas e o hospital?

— O hospital não é um problema. Ninguém vai se opor a diminuir suas horas.

— Não? Mas como…

— Já está tudo resolvido, Srta. Price. — Ele disse, olhando para o cigarro entre seus dedos. — Não tem porquê recusar minha proposta.

Era inacreditável. Assim como em todo o resto da conversa, estava sem palavras. Ele parecia estar me oferecendo o acordo perfeito. Pouco trabalho, muito dinheiro. Era tão bom que eu duvidava, mas não tinha pontas soltas. Não precisaria dizer nada à Dawn, pois ela acreditaria que eu estaria de plantão, nem comentar sobre dinheiro. Poderia fazer alguns plantões de tarde, emendar algumas manhãs, e agir como se tudo estivesse normal…

Mas continuava com uma pulga atrás da orelha. Tinha que ter um porém, um contraponto, uma desvantagem. Nenhum trabalho é perfeito — e, quando falamos de mim, nada nunca é perfeito. 

— Como faria pra chegar aqui? — De repente me sentia animada, pronta pra aceitar, mas não sem acertar tudo. — E pra receber?

Sr. Shelby amaciou o olhar, mas não sorriu em nenhum momento.

— Johnny pode te buscar onde for melhor pra você. O pagamento, no final do mês.

Meu coração voltou a martelar no peito. Eu realmente vou fazer isso? Passar as noites nesse casarão, gastando tempo pra ganhar o triplo do que ganho hoje? Thomas Shelby seria meu chefe. Não sei quão difícil ele era, mas não poderia ser ruim a ponto de eu não aceitar uma proposta como essa.

De repente, pensei em Dawn. Ficava lá, sozinha, no nosso apartamento pequeno e encardido, ouvindo rádio o dia todo, sem poder fazer nada. Não era injusto estar aqui, na bonança, enquanto ela sofre? Afinal, se tinha uma irmã Price que merecia estar num lugar como esse, era Dawn. 

Senti o estômago afundar. Era injusto, sim. E, se eu pudesse, trocaria de vida com ela. 

Mas não posso.

O que eu posso fazer, de verdade, é trabalhar. Ganhar dinheiro, cuidar dela, melhorar o resto de vida que tinha. A função parece moleza, mas seria trabalho de qualquer jeito. Não fazia sentido recusar um dinheiro desses, não quando posso usá-lo por e para ela.

Desculpe, irmã. Preciso fazer isso. 

— Tudo bem, Sr. Shelby. Eu aceito o trabalho.

Sem rodeios, ele tirou alguns papéis de uma pilha à sua frente e me entregou. Parecia ser um documento, como um contrato.

— Assine a última página. É um contrato simples. 

Li por cima o que dizia: era principalmente sobre confidencialidade. Poderia ser presa se dissesse alguma coisa pra alguém. O que realmente me surpreendeu, na verdade, foi a assinatura do final. Dizia, entre outros títulos, “Thomas Shelby, O.B.E.”  

Ergui os olhos de volta para ele, pasma mais uma vez. Parece que não paro de me surpreender desde que pisei aqui. Dawn me disse que ele era político, não um oficial do império britânico. 

Ele realmente era um ricaço. Ricaço, dono de fábricas, político, chefe de gangue, oficial… Era seguro dizer: Thomas Shelby tinha tudo. Não consigo nem imaginar o que ele deve ter feito e deixado de fazer pra chegar aonde está, mas chegou. Do lixo ao luxo. 

Peguei uma caneta e assinei acima do meu nome. Foi ali, enquanto eu formalizava meu novo trabalho, que finalmente entendi qual era o problema com aquele acordo. E ele estava sentado na minha frente esse tempo todo. 

Aquilo era mais do que um contrato, mais que um acordo. 

Era um pacto com o diabo. 

E eu aceitei de bom grado. 

— Obrigado, Srta. Price. Você pode ir agora. — Ele pegou os papéis e colocou de volta na pilha de onde os tirou. — Nos vemos na semana que vem.

— Eu que agradeço, Sr. Shelby. — Levantei da cadeira e senti as pernas fracas, mas não vacilei. — Até a próxima semana.

Saí da sala entorpecida. Mal prestei atenção nas escadas, nas decorações e no hall que atravessei até a porta. Não vi mais Finn, mas o tal Johnny estava logo ali, mexendo no jardim, próximo ao carro. Tudo que consegui fazer foi acender um cigarro e, quando ele me percebeu e sentou no banco do motorista, entrar no banco de trás. 

Estava tudo acontecendo rápido demais. Não fiquei mais de 20 minutos naquela sala com o Sr. Shelby, mas minha vida estava prestes a virar de ponta-cabeça por causa disso. Nunca conheci ninguém como ele, e sinto que também vou ver muita coisa que nunca vi antes, trabalhando lá. Me sentia nervosa, com um pouco de medo, mas ansiosa também. Finalmente tinha uma oportunidade de melhorar nossas vidas, e faria tudo que pudesse para não perder essa chance.

Se ele queria que eu fingisse, era exatamente isso que eu ia fazer. Quão difícil pode ser, afinal?

Agradeci Johnny pela carona de volta à igreja, e de lá andei até em casa. A rua estava cheia agora, mas não prestava atenção em nada. Cheguei em casa e Dawn ainda dormia — no total, fiquei pouco mais de duas horas fora. Me joguei na cama, cansada, mas demorei pra conseguir dormir. Acho que ainda precisava processar o que aconteceu. 

No fim das contas, tinha só uma certeza: as coisas vão mudar daqui pra frente. Só espero que seja pra melhor.


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