Februarius escrita por Kori Hime


Capítulo 1
Februarius




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A primeira sensação ao qual reagiu, foi a manta macia sobre seu corpo. Havia também um cheiro apetitoso no ar, que despertou sua fome, causando borborigmos no estômago. A visão turva ao abrir os olhos se acostumou com a penumbra, até que ela se sentou na cama. Havia um tecido voal pendurado ao redor do móvel que possuía dosséis largos que sustentavam bem a madeira.

Ainda estava muito frágil, avaliou os braços magrinhos com a pele grudada nos ossos e logo em seguida levou as mãos de dedos finos e longos ao rosto. O queixo parecia protuberante, enquanto as maçãs dos rosto deveria ter perdido a aparência saudável.

O despertar não trouxe apenas fome, mas, também, o desejo de se integrar ao mundo. Ela então alcançou a borda da cama e sustentou o corpo nas pernas fracas. Os quatro anos deitada sobre a cama sempre traziam dificuldades depois para despertar os músculos. Por isso receber uma ajuda rápida.

— Senhora, por favor, não se esforce. — Disse a dama de companhia, que a segurou prontamente, apertando as mãos calejadas de trabalho ao redor de sua cintura fina.

— Me diga, Margareta, como estão minhas flores? — Ela perguntou, com a voz debilitada, voltando a deitar na cama enquanto a empregada andava de um lado para o outro no quarto, preparando um banho especial.

— São as mais belas do povoado, como sempre, minha senhora. — Margareta direcionou um sorriso para ela e voltou a encher a banheira de bronze que ficava próxima da janela.

— Abra as cortinas, Margareta. — O pedido foi atendido prontamente, as cortinas pesadas de veludo azul royal foram puxadas, mas o sol ainda não havia nascido. Era madrugada, a primeira hora do dia vinte e nove de Februarius.

Mesmo assim, a bela lua nova despontava no céu, como um aviso para Belassiz de que, apesar de sua condição, o mundo não parava e a beleza lunar se mantinha igual. Ela sorriu, observando o céu estrelado, até Margareta se aproximar para remover sua camisola de algodão.

As rugas na lateral dos olhos da criada já começavam a surgir. Fazia quatro anos que não a via, mas lembrava-se de detalhes pequenos como as sardas salpicadas em sua face e os cabelos vermelhos ondulados que caíam por suas costas que, agora, pareciam bem presos num penteado antiquado.

A matriarca sorriu, aceitando a ajuda à se levantar da cama e entrar na banheira. Margareta massageou com cuidado seus cabelos negros e passou algum líquido gelado sobre os fios, que escorreu em suas costas causando um gostoso arrepio.

— Perdão, senhora.

— Está tudo bem, eu aprecio todas as reações do meu corpo. É um lembrete de que ainda estou viva, não é?

— A senhora está mais do que viva. — Ela comentou, com um sorriso mais contido e isso fez Belassiz pensar em como a vida de sua doce dama de companhia havia mudado nos últimos quatro anos.

Margareta fazia parte de uma longa linhagem de damas de companhia que acompanhavam Belassiz desde os tempos mais primórdios. Uma após outra, foram sendo treinadas e educadas para cuidar da mansão, contratar serviçais, cuidar de Belassiz, enquanto ela estivesse em estado de sono.

Assim que terminou o banho, sentou-se numa poltrona e teve os cabelos escovados com paciência. Enquanto passava a escova nos fios, Margareta conta as notícias mais relevantes da mansão, incluindo os novos empregados e o crescimento das plantações de flores que se estendiam até as propriedades do Clã Vordon.

— Conde Vordon, como ele está?

— O conde faleceu ano passado, senhora.

— Oh! E sua esposa?

— A Condessa Tatiana nos fez uma visita essa semana, ela teve que viajar para Wardos, com a neta que irá debutar, por isso veio antes para lhe entregar um presente para esse dia.

— Cintia já vai debutar? — Belassiz piscou, a vida de fato não parava. Margareta foi até a escrivaninha e pegou uma caixinha de música no formato oval, deu corda e entregou para a mestra. O presente da Condessa era uma pequena lembrança de quando ela ainda era jovem e costumava visitar Belassiz nos eventos primaveris. Já havia passado quase oitenta anos desde então. Sua relação com as pessoas naquele mundo era tão curta, mas a matriarca guardava com carinho todas as pequenas lembranças.

— Senhora, eu devo convocar o Coven? — Margareta perguntou, enquanto tirava do armário um vestido cor de vinho ao qual Belassiz rejeitou, desejando usar o preto.

— Deixe para mais tarde, temos muito a fazer. — Ela disse, ainda sentindo o estômago reclamar por comida.

No salão, o banquete estava preparado e todos os empregados aguardavam a matriarca vestindo seus belos uniformes, muito bem organizados em uma fileira.

Belassiz agradeceu a presença de todos e pediu para que se sentassem com ela. Era sempre desagradável fazer a refeição solitária com vários olhos sobre ela. Os novos empregados se apresentaram, quando Margareta solicitou que eles se levantassem da cadeira para se dirigir a senhora.

A refeição não durou muito tempo, pois Belassiz não se sentia disposta a comer tanto, mas gostava de ver fartura diante da mesa e as pessoas compartilhando um momento juntos de descanso. Logo todos retornaram aos seus deveres e ela foi levada para seu escritório.

Amadeus a aguardava, sentado em uma poltrona. O advogado possuía longos cabelos negros e cílios cada vez mais curvados e majestosos. Belassiz elogiou a vestimenta vermelha e dourada, bem chamativa e que combinava com a bota de saltos.

A reunião com Amadeus era necessária para a assinatura de importantes papeis e, como solicitado da última vez ao qual ela acordou, passaria para Margareta todas as suas propriedades, e dividiria os bens com o Coven.

— Solicitei a presença de Janos e Leria para serem as testemunhas. — Amadeus informou, entregando o envelope com o documento datilografado. Após a leitura, Belassiz tirou os óculos e moveu a mão no ar.

— Eu disse que os bens seriam divididos para todo o Coven. — Ela comentou, apontando o dedo trêmulo para o documento. — Eu não vejo o nome de Céria.

Amadeus respirou fundo e serviu dois copos com conhaque, entregando um dos copos para a matriarca.

— Céria de Tardos faleceu, minha senhora.

Belassiz retornou o corpo de volta a mesa, sem tomar um gole do conhaque. Ela olhou séria para o advogado.

— Como isso aconteceu?

— Senhora, Céria viajou de navio e, infelizmente, após uma tempestade em alto mar, o navio afundou.

Belassiz apoiou os cotovelos na mesa. A última lembrança que tinha da jovem era dela sorrindo, deitada ao seu lado na cama, antes que retomasse ao sono. Céria era dedicada, e respeitava toda a vida na Terra, não merecia um final trágico como aquele.

— Por favor, plante violetas em homenagem a ela, sim? Eram suas favoritas. Você já sabe, uma homenagem do jeito que eu gosto.

Cada pessoa importante na vida de Belassiz que partia, era homenageada em forma de flores plantadas em sua propriedade. Amadeus concordou e logo criou um documento com o desejo dela para ser assinado.

Quando Janos e Leria, empregados mais antigos da mansão, entraram no escritório pedindo licença, Amadeus os orientou a sentar no sofá. Ele explicou as implicações daquele documento e o que era necessário eles fazerem. Apenas inserir suas digitais na tinta e marcar os dedos no papel.

Após a leitura do documento, Janos olhou preocupado para sua senhora. Perguntou se estava tudo bem, e se ela realmente queria aquilo. Belassiz apenas sorriu e moveu a cabeça. Leria chorou, enquanto assinava o documento feito de papel e tinta especial. Um brilho cintilante envolveu o documento e o lacrou, sendo depositado dentro de um pequeno baú ao qual Amadeus era o único que possuía a chave.

— Daqui quatro anos, minha maldição chegará ao fim e eu não verei mais a luz desse mundo. — Belassiz disse, em tom doce, sua voz tranquilizou os empregados que a conhecia desde que eram criança, já que seus pais trabalharam para ela antes deles.

A matriarca não queria que todos soubessem dessa condição, por isso selou as palavras ditas naquele momento em uma magia protetora.

 

Quando o sol estava prestes a nascer, Belassiz foi levada até o campo de flores, para apreciar a paisagem. Ela ficou ali, admirando as cores quentes cobrirem os pastos e plantações. Havia todos os tipos de flores, camélias, tulipas, hortênsias, rosas coloridas. E todas as flores desabrochavam ao nascer do dia vinte e nove, mesmo as mais novas, para receber Belassiz em seu último ano de maldição.

— Senhora, o Coven está aqui. — Margareta informou, ajudando-a se levantar da cadeira. — A senhora não vai querer fazer a troca?

— Não, não dessas vez. — Ela respondeu. Era comum ela usar a magia para fazer a troca de sua aparência. A juventude era sempre muito apreciada. Contudo, queria entrar no salão ao natural e assim todas veriam sua face real.

O coven era uma agregação de bruxas ao qual as gerações de Bruxas de Genevra fazia parte. Belassiz era a matriarca do Clã, e como não havia herdeiros de sangue puro, cabia a ela passar a liderança para a próxima bruxa.

Eram treze, no total, mas com a morte de Céria, apenas doze mulheres se reuniram ao redor da mesa redonda do salão. Todas olhavam preocupadas para Belassiz, já que não apenas sua aparência estava diferente, como a nova informação as pegou de surpresa.

A decisão da nova líder ficaria guardado, até que aquele dia chegasse ao fim, e assim elas poderiam saudar a nova líder.

— Sei que estão preocupadas, mas, como podem ver, este é o momento da nova era iniciar. Eu sei que todas estão com muitas dúvidas, queria poder ter forças para poder ouvi-las. Que tal o almoço agora?

O banquete foi servido e Belassiz ouviu com alegria todas as novidades que elas tinham a contar, mas com pesar a recordação da morte de Céria.

— O que a senhora quer fazer agora? — Perguntou András, uma das bruxas mais próximas de Belassiz.

— Apenas apreciar a bela paisagem de Genevra. — As carruagem estavam prontas, eram três que as levariam para um passeio pela Vila. Com seus olhos cansados, Belassiz admirou as mudanças simples da paisagem, a Vila crescia junto com a modernização do mundo, mas não perdia o ar bucólico ao qual ela sempre amou.

 

Chegaram à praça central e foram recepcionadas pela curiosidade dos moradores, principalmente aqueles que ainda não haviam tido a oportunidade de vê-la pessoalmente.

Belassiz entrou na igreja, causando comoção entre alguns habitantes da Vila que achavam que bruxas não eram bem vindas em terrenos santos.

— Padre Galadriel. — Suas pernas alcançaram até a segunda fileira das cadeiras, mas depois, cansada, ela sentou-se. — É muito bom vê-lo.

— Belassiz, minha amiga. — O padre, já aposentado, ainda vivia sob o teto da igreja. Embora não trabalhasse mais, deixando as missas nas mãos do mais jovem padre da região. — Da última vez que a vi... — Ele inclinou a cabeça para o lado, analisando-a. — Estava tão linda quanto agora.

— Muito galã, como sempre, Galadriel. — Ela sorriu, recebendo alguns beijos em suas mãos. — Sinto muito em causar pânico em suas beatas.

— Não se preocupe, já estava muito parado o clima da cidade. É sempre bom quando Belassiz de Genevra desperta.

— Eu vim falar sobre isso. — O sorriso findou, e o tom de despedida fez Galadriel sentar-se próximo da amiga. Havia tanta história para se lembrar, mas a única coisa que Belassiz tinha para dizer a ele, era que seu coração não havia mudado como sua aparência.

Seu coração ainda era dele.

As testas se uniram e uma despedida silenciosa tomou conta da igreja.

 

Assim que deixou o centro da Vila, Belassiz ainda desejou poder ver o rio Amarua, a fábrica de tecidos de quase dois séculos e as ruinas do castelo Melvina. As paisagens que compunham a sua vida em Genevra, antes da maldição ter lhe consumido. Apesar de não falar sobre aquela noite de tempestade, Belassiz não se arrependia de ter convocado a Deusa da Lua para proteger a Vila que estavam prestes a ser engolida pela ira de Ameth, o feiticeiro que tirou a vida de sua mãe.

Belassiz despertou das lembranças assustadoras, quando as suas companheiras a chamaram para uma cerimônia.

 

No final da tarde, sentia-se exausta, não conseguiria caminhar mesmo que desejasse. Por isso uma cadeira de rodas foi providenciada e ela aceitou um chá, servido na cozinha da mansão.

— Senhora, eu já vou servir o chá no salão. — Margareta falou, enquanto limpava a mão no avental amarrado ao redor de sua cintura que parecia mais cheia.

Belassiz sorriu, enquanto a encarava com silêncio. Havia algo diferente em sua dama de companhia desde o momento em que ela despertou. Não prestou atenção naquele momento, e os eventos do dia a levou a outros pensamentos, mas agora poderia ter a resposta.

— Uma criança abençoada nascerá em vinte semanas. Estou certa, Margareta? Achou que eu não fosse pressentir uma nova vida sendo gerada?

A dama corou, parando no meio da cozinha.

— Não é isso, eu apenas não queria incomodá-la, senhora.

Belassiz moveu a mão debilitada e Margareta se aproximou.

— Tudo que diz respeito a você, é importante para mim. Eu estou muito feliz, essa criança terá saúde. — Ela pousou a mão sobre a barriga da dama. — Terá felicidade, será uma criança arteira, mas com o coração cheiro de amor e bondade. Terá uma vida longa, cheia de aventuras e amores. Eu sinto que ela será como a mãe, uma mulher doce e forte.

Margareta não aguentou e começou a chorar, agradecendo as previsões da matriarca.

Ao se reunirem no salão, ouviu uma boa música ser tocada no piano e sentiu saudades de poder cantar, sua voz já não era mais a mesma e começava a sentir falhar aos poucos. Assim como seu corpo começava a perder os movimentos. Quando o pôr do sol chegou, Belassiz o admirou da sacada principal da mansão, acompanhada pelas pessoas que amava. Havia permitido a entrada de visitantes oriundos de outras terras para conhecer suas plantações e o lugar estava transbordando de risadas, cantoria e felicidade.

O sol se pôs e a Lua voltou ao céu, radiante e poderosa, mostrando para ela que a vida continuava. Mesmo que a sua estivesse chegando ao fim.

Conforme a noite avançava, e as estrelas brilhavam no céu, o anúncio do fim de sua maldição era soprado pelo vento. A fogueira que iluminava o grande quintal, era compartilhado por todos, e ninguém percebeu quando o sopro da vida de Belassiz foi tomado pela morte, levando-a embora desse plano.

Não havia dor, morrer era como estar em seu campo de flores, cercada pela tranquilidade, acolhida pelo calor do vento da primavera. Ela podia ainda ouvir as vozes e cantorias, podia sentir o amor de todos ser compartilhado. Ainda estaria entre eles para o resto da vida.


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Notas finais do capítulo

É isso, gente, o que acharam? Podem comentar.
Beijos



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