Uivos na Madrugada escrita por Charles Albert


Capítulo 1
Os uivos na madrugada


Notas iniciais do capítulo

Para Suzany. minha amiga e parceira de leituras, na esperança de que ela se apaixone por outros gêneros além do romance.



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(N/A: A história a seguir se passa no início do século XX em um lugar fictício de nome desconhecido)

Quando acordo sinto as gotas do meu suor frio descendo por meu rosto. Minha vista está meio turva e meu pijama está ensopado de suor. Mais uma vez eu tivera o mesmo sonho. O sonho que eu tenho uma vez por mês em que eu corro velozmente para salvar minha vida de algo que está me perseguindo e eu nunca consigo descobrir quem é ou o que é. A única coisa que sei é que deve ser um animal selvagem, provavelmente um lobo, pois eu sempre ouço rosnados ferozes e uivos altíssimos que eram melodiosos, mas ao mesmo tempo terríveis de se ouvir.

       Levanto-me e abro as cortinas da janela de meu quarto e percebo que o sol ainda não havia dado a sua grande entrada, embora a lua já tivesse desaparecido.

       Parecia quase uma rotina. Toda a vez, um dia por mês, eu dormia e sonhava que corria de uma fera que estava me perseguindo, e toda a vez eu acordava suado e antes do sol nascer. E o pior de tudo... Todas as vezes em que isso ocorria, uma pessoa era encontrada morta, em uma cidade próxima, com marcas de mordidas e de ataques de garras de uma fera selvagem.

       Era como uma espécie de premonição ou então um aviso divino. E isso me dava tanto medo que mesmo aos domingos quando eu vou me confessar ao padre, eu não consigo falar pra ele sequer uma palavra sobre esses sonhos.

       Eu esperava ao menos que, desta vez, ninguém tivesse sido atacado e muito menos morrido pelas garras daquela fera com a qual eu sonhara uma vez por mês, há cerca de um ano.

       Levantei-me e fui tomar um banho, pronto para iniciar mais um dia de exaustivo trabalho.

***

       Eu trabalho como vendedor em um pequeno, porém conhecido comércio. Trabalho das sete da manhã às sete da noite, com pausas para o almoço e o lanche da tarde. E todos os dias eu chego exausto na minha humilde e velha casa. Um pequeno chalé sobre as montanhas.

       – Bom dia Peter! – Desejou minha vizinha, a senhorita Van Garret, quando eu saí de casa a caminho do trabalho. Ela era uma das poucas que ainda tentava ser minha amiga, além do padre é claro.

       – Bom dia Karol! – Respondi, embora não estivesse com ânimo para fazer tal coisa.

       Karol Van Garret era uma mulher jovem, pobre e solteira, porém belíssima. Devia ter uns vinte e sete anos. Ela me irritava um pouco às vezes, pois sempre estava tentando de tudo para criar um laço de amizade entre nós dois. E, de certa forma, ela conseguiu, já que, embora ela me irrite certas vezes, ela é a única pessoa boa o suficiente para não ligar pra minha pobreza ou para o meu macabro passado.

       Você talvez esteja se perguntando: “mas que macabro passado?”. Se você não se perguntou isso, tanto faz, você não é o primeiro que despreza a minha história. Agora se você está interessado, leia o que contarei a seguir.

***

       Tudo começou antes mesmo de eu nascer. Meu pai, que nascera e crescera na mesma casa onde hoje eu moro, teve uma briga muito séria com o pai dele, o meu avô. Muitos dos vizinhos dizem que nada podia se ouvir naquele dia além dos gritos daqueles dois. Nunca foi descoberto o motivo da briga, até porque ninguém podia obrigar o meu pai a contar. Mas dizem que naquele dia todos ouviram um uivo feroz e diversos rosnados e gritos e, por fim, depois daquele terrível e misterioso dia, meu avô jamais foi visto outra vez.

       Quando perguntaram ao meu pai o paradeiro de meu avô, sua única resposta foi que a  briga tinha sido tão intensa e tão feia que meu avô fugira com a promessa de nunca mais voltar. Nem eu sabia o que de fato aconteceu, mas um dia eu descobri, mas isso eu contarei a vocês mais tarde.

       Agora revelarei outro acontecimento que foi o suficiente para todos os vizinhos acreditarem que minha família era amaldiçoada ou coisa do tipo. Depois desse acontecimento, ninguém além de Karol e do padre ousavam falar comigo. Todos tinham medo e preconceito.

       Quando completei meus quinze anos, meu pai levou-me até uma cabana que ficava há uns cinco ou seis quilômetros de distância da nossa casa.

       Na época, eu estava sem entender nada e, ainda a caminho da cabana, quando eu perguntava ao meu pai para onde íamos e o porquê de irmos, ele disse apenas que ia me explicar algumas coisas importantes para a minha vida. Aquilo me confundiu ainda mais.

       Quando chegamos à cabana, eram cerca de sete e meia. Meu pai mandou-me entrar e lá eu vi diversas coisas estranhas. Havia pinturas de homens que, pelo o que me lembro, eram meus ancestrais. Vi inclusive o retrato de meu avô, o qual jamais me despertara o menor interesse até aquele momento.

       Além dos retratos, havia dentro da cabana um velho piano todo empoeirado, com algumas teclas faltando. Havia também cinco poltronas que estavam rasgadas e tortas por estarem quebradas. Tinha também um porão, um banheiro, um quarto com o chão todo sujo de poeira, e uma pequena estante de livros empoeirados que pareciam muito antigos.

       “O que é tudo isso papai?”, lembro-me de ter perguntado, mas não houve resposta alguma.

       “Papai?”, chamei-o olhando para todos os lados, mas não o encontrando. O medo já tomava conta de mim, “Onde está o senhor?”

       Meu medo se elevou quando eu ouvi o primeiro uivo.

“AAAAUUUUUUUUUUUU”

       Eu digo primeiro uivo, pois esse foi seguido de vários outros que acabavam com o silêncio da noite.

       Lembro-me de olhar para todos os lados para ver de onde vinha aquele maldito e terrível som. E então eu o vi. Podem até me chamar de louco, mas eu juro que o vi. Um lobo enorme de pelo negro e olhos vermelhos olhando para mim.

       Fiquei paralisado por um tempo, e então virei-me para correr. Porém antes que eu chegasse à porta da entrada, ele saltou sobre mim e abriu aquela boca enorme, mas o meu medo de morrer me fez agir rápido em dar-lhe um soco na face. Ele afastou seu rosto do meu, mas continuou com as patas enormes em cima de mim, as garras afundando em meu braço esquerdo.

       Agi rápido novamente e peguei a primeira coisa que minhas mãos tiveram a sorte de tocar. Era um livro velho, mas pesado o bastante para que um golpe dado com ele fosse altamente doloroso. E assim foi.

       O golpe que eu dei naquele lobo foi tão forte e tão amplificado pela adrenalina do momento que ele forçou-se a sair de cima de mim e eu corri desesperadamente para fora da casa a passos rápidos e trôpegos.

       Mas infelizmente ele me seguiu.

       Corri ferozmente por dentro da pequena floresta ꟷ Que parecia enorme para mim naquele momento ꟷ   e consegui me esconder dele por um tempo, mas, quando menos esperava, ele pulou de uma das moitas e caiu em pé à minha frente.

       Eu nem notara que ainda estava com o livro na mão até precisar bater nele de novo. Pois foi isso que eu fiz. Gosto de pensar, e às vezes esse pensamento se mostra realidade, que o medo de algo maior faz com que nós enfrentemos um medo de algo menor. Foi o que aconteceu naquele dia. Aquele lobo me dava medo, mas eu tinha ainda mais medo de morrer e por isso o enfrentei, pois correr não adiantaria mais nada.

       A fera era rápida e conseguia se desviar e me atacar com suas garras algumas vezes. Em outras vezes eu conseguia o atingir com o enorme e pesado livro que era a minha única arma naquele momento. Com o tempo fui ficando cansado e isso, por mais que não faça muito sentido, me deu ainda mais forças para terminar aquilo logo. Com um último e fortíssimo golpe eu o fiz desmaiar e, sem conseguir me conter, desmaiei também.

       Lembro-me que, quando acordei, vi uma pequena platéia à minha volta. Todos se aliviaram ao ver que eu tinha acordado e foi só quando todos suspiraram de alívio que eu percebi que não estava no mesmo lugar em que havia desmaiado.

       Por um milésimo de segundo achei que tudo aquilo não passara de um sonho, porém meu braço ardia no mesmo lugar em que o terrível lobo fincara suas garras. Quando um médico veio falar comigo eu percebi que estava em um hospital, deitado em uma maca e notei que a pequena platéia era constituída por meus vizinhos.

       “Onde está o meu pai?”, foi a primeira coisa que eu perguntei, mas não recebi nenhuma resposta a não ser os olhares tristes de todos.

       Repeti a pergunta já antes feita. E a resposta quase me fez desmaiar novamente.

       “Não sabemos onde ele está”, disse o médico, “ele simplesmente desapareceu. Procuramos por ele na casa onde vocês moram para que ele pudesse ficar com você aqui, mas não o achamos”.

       Durante o dia inteiro fiquei desesperado, pensando nas terríveis possibilidades do que poderia ter acontecido a meu pai. Só de pensar que ele poderia ter encontrado aquele monstro horrível em seu caminho... Mas eu tentava não pensar nessa possibilidade.

       Por mais desesperador que aquele dia tenha sido, ele não chega nem perto do dia seguinte. Pois foi nesse dia que eu li, no jornal local, a notícia da morte de meu pai:

HOMEM É ENCONTRADO MORTO NA FLORESTA BAXTON

O Sr. Michael Clarke, morador do nosso vilarejo, foi encontrado morto na floresta Baxton. Tudo indica que ele mesmo se matou, pois uma arma foi encontrada em sua mão e um furo de bala foi encontrado em sua têmpora. O último a vê-lo com vida foi o seu filho, Peter Clarke, que foi encontrado ferido e inconsciente ontem na mesma floresta e alega ter sido atacado por um lobo enorme. [...]

Parei de ler bem aí, pois não consegui segurar as lágrimas. Não quis ver ninguém e chorei o dia inteiro até que dormi e acordei no dia seguinte.

       A partir daí eu não tinha mais ninguém além de mim mesmo. Minha mãe morrera em meu parto e meu pai tinha acabado de se suicidar. Vivi por um tempo em um orfanato e depois comecei a me virar sozinho. Trabalhei como engraxate, como garçom, como faxineiro e diversas outras coisas, até que com meus vinte e sete anos construí o comércio que tenho hoje.

       Muitos ainda me chamavam de louco por causa do testemunho que eu dera sobre o lobo, mas eu não ligava. Às vezes até eu me achava louco...

***

       A idéia inicial de eu escrever isso foi apenas de criar um diário, uma forma de me expressar. Porém com o passar  do tempo eu descobri coisas sobre meu passado... Coisas terríveis e sinistras que me forçaram a tomar uma decisão drástica sobre a minha vida. Coisas que explicaram tudo o que deixou perguntas em minha cabeça nesses últimos dezoito anos.

       Eu comecei a descobrir essas coisas um mês depois do dia em que eu comecei a narrar esse diário. Eu estava na igreja orando e, quando terminei, encontrei com o padre e o convidei para um chá em minha casa às 20:00 da noite.

       Quando cheguei em casa, fui logo preparar o chá com alguns biscoitos para o padre, que era um dos meus poucos amigos naquele lugar. Assim que terminei, algo pareceu tomar conta de mim e senti um sono incontrolável. Não pude resistir e acabei dormindo.

       Quando acordei já era de manhã e fui à igreja procurar o padre para pedir desculpas por não o ter recebido na noite anterior. Porém, ao chegar lá, descobri algo horrível. O padre estava morto. Tinha sido assassinado por algum animal selvagem enquanto andava a caminho de minha casa.

       Mais uma vez aquela fera selvagem estava me perturbando e toda a minha crença na teoria de que eu estava louco se dissipou.

       Decidi que iria pôr um fim nessa história de uma vez por todas. Iria descobrir o que havia por trás de tudo aquilo. Fui até a cabana que eu não visitava há dezoito anos. E lá, depois de muito procurar, encontrei um livro chamado “O segredo da família Clarke” e, para a minha surpresa, aquele livro tinha sido escrito por Cássius Clarke, meu bisavô.

       Levei-o para casa, determinado a ler ele assim que chegasse. Porém, tive um contratempo.

       – Peter – Chamou Karol vindo em minha direção. Ela estava tão linda com seus cabelos loiro-prateados brilhando sob a luz do sol e os seus lindos olhos azuis da cor do oceano. Usava um vestido branco que a  deixava ainda mais atraente do que de costume – Eu gostaria de saber – Continuou ela ao chegar perto de mim – Se você quer jantar comigo hoje em minha casa. Você gostaria?

ꟷ Perdoe-me Karol! – Falei – Eu realmente adoraria, mas... Estou muito ocupado hoje.

       Ah! – Era nítido que ela estava tentando esconder sua mágoa – Tudo bem!

       Entrei em casa e corri rapidamente para o jardim, determinado a ler aquele livro e finalmente descobrir os segredos do passado tenebroso de minha família. Abri e vi que as letras eram muito belas, porém em um estilo bastante antigo.

       Eis o que li:

“Escrevo este relato com o intuito de auxiliar os meus descendentes que provavelmente herdarão a minha maldição, pois eu a herdei de meu pai, que herdou do pai dele. A história que contarei é muito antiga, pois se inicia na época em que meu avô foi vivo.”

“Meu avô era um homem inteligente, rico e bem sucedido, porém o que ele tinha de sucesso ele tinha de maldade. O homem era tão cruel e possuía uma mente tão entregue à maldade que, Deus me perdoe por isso, eu acho que ele mereceu tudo o que foi feito contra ele. Contudo uma injustiça fora cometida, a maldição que servira como castigo para meu avô continuou a existir mesmo após a sua morte e foi passada dele para meu pai, que, como disse agora a pouco, passou para mim.”

“Tudo começou em uma festa em que todos os colegas mais ricos de meu avô compareceram. Todos estavam embriagados, o que só fez despertar ainda mais a sua maldade. Meu avô então teve a idéia de chamar a sua empregada com a desculpa de que precisava de um café, mas, quando ela virou-se para ir pegar o café, meu avô a golpeou, rasgou suas vestes e a estuprou ali mesmo, na frente de todos. E ninguém protestou, pelo contrário, riram e incentivaram.”

“Aquela mulher, cujo nome eu desconheço, após ser estuprada, jurou vingança e, já que possuía conhecimentos de bruxaria, usou esses tais conhecimentos contra a família de meu avô. Ela o amaldiçoou e amaldiçoou a sua descendência com um feitiço de licantropia, o que fazia com que a vítima da maldição se transformasse em lobisomem à cada noite de lua cheia.”

“Todavia, a mulher não contava com uma coisa. Meu avô era um homem solteiro e ele morreu solteiro, e o único filho que ele deixara antes de morrer estava no ventre daquela mulher. Meu avô a engravidou durante o estupro, e foi assim que nasceu meu pai.”

“Minha avó aprendeu duas grandes lições naquele dia: nunca pague o mal com o mal e nunca faça um trato com o diabo, porque é isso o que um feitiço é: uma obra do diabo”. A partir daí, minha avó converteu-se ao cristianismo e educou o seu filho bastardo (meu futuro pai) com base naquela religião, e, quando meu pai chegou à casa dos trinta anos, a maldição começou a se manifestar e ele começou a sofrer as tais transformações em lobo. Minha avó, culpando-se por tudo aquilo, ajudou-o a superar a dor das transformações e, com a ajuda do padre e de diversas orações ao bom DEUS, ela conseguiu diminuir a freqüência das transformações de meu pai e logo ele se livrou da maldição.”

“Anos mais tarde, com a morte de minha avó, meu pai desviou-se da igreja (nessa época eu já era nascido e era uma criança de cinco anos) e começou a beber e a praticar imoralidades e, como conseqüência, a maldição retornou com força total.”

“Não demorou nem uma década para que ele falecesse e me deixasse viver sozinho, já que minha mãe morrera em um acidente em que ele, transformado em lobo, a matou.”

“Quando completei meus trinta anos, o medo já tomava o meu coração, que temia as minhas futuras e sinistras transformações. Eu achava que seria doloroso, assim como era com meu pai e com meu avô, porém, em minha primeira transformação, percebi que era algo semelhante a adormecer. Quando eu me transformava eu perdia a consciência, mas minha mente ainda mantinha guardadas todas as coisas que eu via e fazia quando estava transformado em lobo e, quando eu voltava ao normal, as lembranças do que eu vi e fiz durante minha transformação foram semelhantes a um sonho. Eu até acreditaria que era um, se eu não conhecesse a triste, arrepiante e terrível realidade.”

“ Consegui curar a minha maldição clamando muito à DEUS e implorando todos os dias à ele para que me curasse desse feitiço injusto que estava sobre mim. Jurei ser fiel a ele e cumpri esse juramento com firmeza e foi assim que consegui a cura, livrando-me de toda a maldade de meu coração. E é exatamente isso o que eu aconselho a vocês meus descendentes, livrem-se do mal em seus corações, pois será sempre o mal a trazer essa maldição de volta.”

Ass.:

Cássius Clarke

       O livro era até pequeno, o que dava volume à ele eram os desenhos que meu bisavô fizera nele e o tamanho da letra que era enorme, além das inúmeras páginas em branco. Porém aquelas poucas palavras tinham acabado de me impactar tão profundamente que até hoje fico chocado, pois me lembro exatamente da sensação que tive ao ler aquilo.

       Agora tudo fazia sentido. Nos meus pesadelos mensais, eu não fugia de uma fera. Eu era a fera. Eu que havia matado todas aquelas pessoas. Eu que matei o padre, meu único amigo. Os uivos que eu ouvia em meus sonhos eram os meus próprios uivos. E o pesadelo infelizmente não era só um sonho.

       Agora eu entendia o porquê de meu pai me levar àquela cabana. Ele queria me explicar tudo isso. Porém ele provavelmente se esqueceu que era noite de lua cheia... Ele foi o lobo que me atacou. No dia seguinte ele acordou, me viu desmaiado e deduziu o que acontecera... Tomado pela culpa ele se suicidou. Tudo fazia sentido agora.

       Olhei para as páginas em branco e fui virando-as uma a uma, procurando por algo que eu não sabia o que era e nem sabia se existia, mas que eu sentia que devia ver. E então encontrei. Era um texto diferente, escrito com uma letra diferente e menos antiga que a do primeiro texto.

       Estava escrito:

       “Não sei quem irá ler isso, mas espero que seja você meu filho ou um de seus descendentes. Eu sou Lucinda Smith, futura SRA. Clarke. Estou grávida de seis meses e estou prestes a me casar com o homem que amo.”

       Lágrimas se formaram em meus olhos ao reconhecer aquele nome: Lucinda Smith, minha mãe. Continuei lendo:

“Porém não é isso o que vim relatar nesse livro. O que vim dizer é muito mais importante e tenebroso do que isso. Meu noivo, Michael, vem de uma família amaldiçoada e infelizmente ele herdou essa maldição. O pai dele (homem podre e desgraçado) adora essa maldição, pois segundo ele, ela o deixa mais poderoso. Eu o detesto e sei que o sentimento é recíproco. Além disso, embora Michael não queira aceitar, eu sei que é o pai dele quem vem matando pessoas por aqui nesses últimos meses.”

“Mas enfim... Certo dia, Michael foi até  seu pai para esclarecer as coisas e falar do nosso casamento. A briga que eles tiveram depois disso foi intensa e o seu avô transformou-se em lobo, pois aquela noite era noite de lua cheia. Seu pai não se transformou, pois na época ele ainda não tinha trinta anos, e por isso ficou em desvantagem. Porém ele lutou contra seu avô e foi obrigado a matá-lo. Só após isso ele percebeu o monstro que ele era.”

“Entenda filho... Seu pai não é um assassino, ele foi obrigado a fazer isso. Por mais que seu avô fosse um monstro ele o amava. Tanto que quando ele me contou essa história ele chorava desesperadamente somente sentir os seus chutes na minha barriga o fez sorrir. Seu avô foi enterrado no jardim da casa e eu e seu pai juramos não contar isso a ninguém. Escrevo isso na esperança de complementar a história desse livro em que falta muita coisa.

Boa sorte meu filho!

De sua mãe que te ama.

Lucinda Smith

       Quando terminei de ler, chorei compulsivamente, perturbado com a desgraça que pairava sobre minha vida. Como eu poderia viver com isso? Como meus ancestrais viveram com isso? Como eu poderia viver perto das pessoas desse jeito?

       E como ficaria Karol quando soubesse disse? Provavelmente arrasada. E sua vontade de ser minha amiga provavelmente acabaria.

       “Eu já tinha uma vida péssima muito antes de saber disso.”, pensei,  “Agora que eu sei... Não me resta escolha a não ser...”

Lembrei-me do destino de meu pai.

“... A não ser livrar-me da minha vida...”.

       Entrei em casa determinado a cumprir meu pensamento, mas antes escrevo aqui a minha história. Agora que eu a estou encerrando, chegou a hora...

       Embora eu saiba que ninguém irá ler este diário, já que não tenho a mínima pretensão de publicá-lo, eu acho que ele precisa conter o relato completo de minha trágica história.

       Para você que está lendo (se alguém estiver lendo), saiba que passaram três longos anos desde a minha decisão de suicidar-me. Devem estar se perguntando o porquê de eu não pôr minha decisão em prática, e a resposta para essa pergunta é: Karol Van Garret.

       Eis o que aconteceu:

       Depois de terminar de escrever o meu relato, entrei em meu quarto determinado a tirar minha vida. Cheguei até minha cabeceira e abri a primeira gaveta. Lá dentro, toda empoeirada e com o aspecto mais antigo do que os bustos de Pallas que se encontravam na biblioteca municipal, estava um pequeno revólver, que pertencera a meu pai antes de sua morte.

       Foi o revólver com que ele se suicidara, e quase transformou-se na arma que tiraria minha vida.

       Peguei-o e o apontei com precisão à minha testa.

       Sentindo que o meu medo de morrer venceria a determinação de minha decisão, resolvi encostar a pequena e velha arma negra à minha têmpora. O cano frio da arma combinava perfeitamente com o tremor que viajava por todas as partes de meu corpo velho e fadigado.

       “É agora...”, pensei.

       – Não! – Berrou uma voz feminina desesperada, e senti mãos pequenas e macias me abraçando enquanto  minhas mãos tremiam e a arma caía no chão suavemente.

      ─ No que você estava pensando? – Perguntou ela gritando ─ Por que estava tentando fazer uma besteira dessas?

       ─ Você não entende! ─ Gritei  ─ Você não sabe o que eu sou!

       ─ Não importa ─ Disse ela me abraçando ainda mais forte ─ Eu amo você!

       Aquela revelação chocou-me. Não por eu não saber disso, isso estava óbvio desde o começo, mas por ela ter tido a coragem de dizer.

       ─ Eu te amo! ─ Continuou ela ─ Te amo e quero que seja meu marido.

       A intensa alegria dominou-me, pois ali percebi que também a amava, mas a alegria logo dissipou-se, pois lembrei-me da triste e cruel verdade.

       ─ Você não quer isso ─ Disse eu ─ Não de verdade. Não depois de ler isso ─ Apontei para o manuscrito que repousava acima de minha cama, o mesmo que você está lendo agora, o qual na época não tinha essa parte que agora escrevo.

       E ela foi a primeira a ler a trágica história de minha vida. Ela chorava enquanto lia e pude perceber a pureza de seu coração.

       Eu sabia, embora não soubesse como sabia, que ela chorava por compaixão a mim e não por medo ou por decepção.

       ─ Não importa ─ Ela disse após terminar sua leitura ─ Eu te amo mesmo assim e quero te ajudar com o que precisar.

       Aquelas simples palavras me fizeram transbordar de felicidade. Num ato de impulso, puxei-a e a beijei como se fosse a última vez que a beijasse embora aquela fosse a primeira de muitas.

***

       O tempo passou.

       Nos casamos dois meses depois daquilo e, depois de muito clamar ao bom Deus, o feitiço foi quebrado e a maldição se encerrou. Nunca mais me transformei em lobo.

       Dez meses depois de meu casamento, Karol engravidou e eu fiquei apreensivo durante os nove meses que se seguiram. Estava morrendo de medo de meu filho herdar a maldição já quebrada.

       Ele nasceu, forte e saudável, belíssimo como a mãe. E, embora eu estivesse preocupado com a maldição, o simples olhar que troquei com os belíssimos olhos azuis dele me acalmou.

       Um ano e três meses depois, aqui estou eu, escrevendo o desfecho dessa história, para satisfazer a curiosidade de quem o lê.

       Ah! Sobre a maldição, ainda não sei se meu filho a herdou, afinal as transformações só começam após os trinta anos. Se algum dia ele se transformar, relatarei a você leitor aqui neste diário. Se ele não se transformar, não haverá razão para que eu volte a relatar algo aqui.

       Assim me despeço... feliz e satisfeito. Ansioso para o futuro.

       Que DEUS os proteja de todo o mal e que vocês sejam gratos pelas vidas que têm. A minha quase foi uma grande tragédia.

***

50 anos depois

       Minha vida foi feliz...

       Estou agora doente, aguardando a morte, pois a velhice já pesa sobre o meu corpo.

       Meu filho não herdou a maldição. Ela foi quebrada de uma vez por todas.

FIM!


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Notas finais do capítulo

E aí miga? Gosotu?



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