O Legado das Cores escrita por Lyn


Capítulo 2
A visita




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Suspirei pela décima oitava vez esperando que Lucrea entendesse que o ar exaltado que eu soltava significava que eu já estava cheia de suas reclamações; mas ela estava os ignorando com uma maestria que me dava raiva.

Mas, sabe, há quinze minutos eu estava muito bem acomodada na sala de leitura — a sala tinha uma grande estante ocupando uma parede quase inteira, porém chamá-la de biblioteca era demais —, lendo sobre História da Arte, um assunto que eu considero interessante, mas que dou pouca atenção, quando irmã Lucrea apareceu.

O infortúnio era que ela estava me procurando e ela só me procura quando quer tomar chá comigo ou me dar sermões, no entanto, anteontem, ela estava reclamando que precisava reabastecer o lugar da dispensa que guardava os chás porque seus preferidos tinham acabado e — coincidência ou não? — ontem mesmo eu tinha batido em um... como chamá-lo? Porque "infeliz" ou qualquer termo pejorativo não parecem suficientes para descrevê-lo.

Então, não era coincidência e agora eu estava andando de um lado para o outro no Madre Espirina com a esperança de cansá-la, mas meu plano estava saindo pela culatra.

— E você não pode sair por aí quebrando narizes só porque a pessoa te irritou um pouco! — finalmente ela pareceu terminar seu protesto contra minha má conduta.

Mas não eram pessoas no geral, era apenas uma. E, em minha defesa, Thomas Stewart merecia.

— Eu não saí por aí, Lu — começamos a subir a escada que dava para os quartos das meninas, o livro que eu tinha pegado da estante pesava no meu braço e meu quarto era o único lugar onde eu poderia lê-lo em paz. — Ele já estava bem na minha frente, e não foi por pouca coisa! Ele tinha tocado na minha cicatriz.

Não tocado diretamente, Thomas era louco, mas tinha total consciência que ali, no orfanato, não era como costumava ser em sua casa, qualquer ato agressivo contra algum colega acarretaria em castigo. Eu tive o meu depois de batê-lo, mas considerei que valeu a pena perder o jantar, pelas rezas que tive de fazer, por ver sangue saindo do seu nariz.

Mas o imbecil ainda teve a audácia de encostar aquela mão imunda em mim.

A imagem de ontem, de Thomas com o sorriso presunçoso de quem acha que tem algum poder ou direito sobre mim, apareceu na minha mente e a saliva que engoli para não cuspir no chão desceu amarga.

— Eu sei que você não gosta, Red, mas…

Mas?

Me virei tão rápido que Lucrea precisou se segurar no corrimão para não tombar em mim.

— Não tem mas e não é só não gostar — trinquei os dentes, remoendo aquelas palavras. — Ele me esperou do lado de fora do banheiro e, quando eu não quis conversar, ele me tocou. Em cima da cicatriz! — chiei, o gosto de bile alcançando a garganta, e Lucrea desceu um degrau. — Se lembra de como ela é? — sussurrei, descendo mais um degrau para que ela me escutasse. — De que foi ele quem fez? Ele necessita estar em um hospício. É para lá que loucos vão.

Não dei chance de me sentir compadecida pelo seu rosto submerso em pesar e voltei a andar.

Adentrei o corredor com ela balbuciando desculpas e dizendo como sabia que aquele era um tema delicado para mim e de que forma alguma queria diminuir os atos de Thomas contra mim, mas que era seu dever me orientar para me pôr no bom caminho.

Eu teria rido se não a respeitasse.

Um caminho onde eu não esmago todos os ossos de quem me fez mal não é um que eu queira trilhar.

Eu gostava dela. Lucrea era nome de megera, dava para imaginar todas as madrastas más da Disney com esse nome, mas ela e madre Evangeline foram as únicas que tiveram paciência comigo e me deram apoio quando cheguei ali três anos atrás, mais quebrada por dentro e por fora do que qualquer criança deveria estar.

E a vida ainda parecia querer brincar comigo quando virei a esquina para o corredor do meu quarto e vi uma mulher cercada por borboletas.

Não as normais. Eu assinei um contrato com a Vida antes de nascer e sabe aquelas letrinhas minúsculas que precisam de uma lupa para lê-las? Nelas diziam que eu estaria ausente de sorte.

Olhei para Lucrea, só mais um pouco e ela estaria vendo a mesma cena.

— Lucrea — chamei, me aproximando, ela parou porque eu nunca a chamava pelo nome. — Desculpa, ok? Eu vou tentar melhorar. Mas isso foi anteontem, o nariz dele já está bom e nem foi quebrado dessa vez — segurei suas mãos e me concentrei para não desviar o olhar do dela. — Eu agradeço sua preocupação, mas acho que já basta.

Seus olhos se entristeceram, enxergando na minha jura vazia que eu apenas queria me ver livre logo dela. Me senti mal, Lucrea era a mais jovem do Madre Espirina, não devia chegar aos trinta, e ela foi parar lá depois que sua irmã morreu, cuidar de crianças e adolescentes era seu objetivo de vida. E ela via em mim essa irmã, por isso me dava mais conselhos do que aos demais.

Doeu, mas era melhor do que ela ver uma bruxa.

— Obrigada — completei, com o sorriso mais sincero que eu sabia dar e apertei suas mãos.

A expressão dela voltou a ser suave, com o sorriso singelo, porém acolhedor, e acenou com a cabeça porque não gostava de dizer "por nada". Em suas palavras: nunca é por nada.

— Acho que já te perturbei o suficiente por hoje — sorri mais porque, sim, era verdade. — E tenho outras crianças para cuidar — ela depositou um beijo na minha testa, tão breve e suave que mal o senti. — Tente não brigar mais.

— Eu sempre tento.

Era verdade. Eu sempre me controlava, até sair do sério.

A observei até que virasse à direita e esperei um pouco. Quando tive certeza de que não teria mais nenhum sinal dela e de ninguém, voltei para o corredor do meu quarto.

Reconhecer bruxas não é difícil, mesmo se elas não estiverem com as borboletas.

Uma vez vi Stella conversando com outra que se vestia semelhante a ela. Naquele dia, descobri que "é assim que bruxas se vestem, ao menos no meu mundo" — foi o que ela disse, mas não deu nenhuma resposta a mais para minha curiosidade. E percebi que deveria ser verdade quando vi aquela bruxa, uma semana atrás.

Se você ver uma mulher em vestido épico, como se tivesse saído de um filme de alta fantasia da era medieval, poderia ser uma cosplayer, uma louca, ou uma bruxa.

E tinham as borboletas, as de Stella eram metálicas, mas a daquela e dessa bruxas pareciam feitas de pedras preciosas.

Seu olhar desceu do teto e passaram a acompanhar minha aproximação lenta, parei à um metro de distância dela.

— Olá, criança — não me simpatizei pelo seu sorriso gentil porque os olhos tinham malícia, a forma mais arrogante da maldade.

Torci meus lábios. Se eu era uma criança, então ela era baixa demais por sermos do mesmo tamanho.

— O que você quer aqui?

Decidi que um metro de distância era suficiente e não cheguei mais perto. At me disse uma vez que bruxas são as almas de demônios em corpos de anjos. No mesmo dia ele me apresentou Stella e, um mês depois, entendi o que quis dizer.

Todo o cuidado lidando com uma não chega nem a ser pouco de tão mísero que é.

"Mas existem exceções", foi o que disse logo depois, o incrível é que ele não me trouxe uma dessas.

— Bom dia para você também, Scarlet — meu nome foi dito como se ela o conhecesse bem e fosse comum falá-lo.

Quis me afastar quando compreendi que eu devia estar certa, mas não o fiz.

"Não mexa com bruxas, Red", At me disse uma vez, mas ele não devia ter me apresentado a uma e depois a outra se realmente quisesse isso.

— O que significa isso? — revirei os olhos. — Vocês têm um grupo onde conversam sobre a fofoca da semana e a desta sou eu?

A bruxa riu, um som escandaloso e agudo que me fez querer tapar os ouvidos.

— Mais ou menos isso — ela me olhou dos pés à cabeça, diminuindo o sorriso, até seus lábios se tornarem uma linha retorcida. Minha roupa não chegava a ter um vigésimo do encanto que seu vestido tinha; era uma camiseta larga e azul, com mangas até o cotovelo, ensacada sob uma saia xadrez em tons de preto, cinza e branco e sapatos desgastados, era o que as doações ao Madre Espirina me forneciam. Mas a bruxa não parecia julgar as roupas, era algo além disso: eu. — E o que te faz pensar que te devo satisfação?

Travei. At não me disse se era segredo a aparição da bruxa, e nem precisava dizer, para quem mais eu diria que me encontrei com uma bruxa? Evangeline chamaria um padre para me benzer e depois me colocaria para rezar todas as rezas existentes nem que eu tivesse de perder todas as refeições para completá-las.

Evitei de balançar o pé e me obriguei a não mexer nenhum músculo, mesmo que eu quisesse começar a andar de um lado para o outro.

— Anteontem vi uma bruxa perambulando pela estrada bem aqui em frente. Vocês querem o quê aqui? Fazer pactos com as crianças?

Quanto mais tempo você leva para responder, mais óbvio será que é uma mentira, mas a bruxa pareceu não notar minha demora de segundos.

— Não seja petulante, criança. — ela revirou os olhos, soltando o ar com desagrado.  — Mas, sim, é sobre você.

Não gostei da afirmação. Ter bruxas falando sobre você parece pior do que elas aparecerem na sua frente.

— Como se chama? — perguntei.

— Muriel — ela teve a decência de estirar a mão para me cumprimentar, mas eu não dei a mínima, o que a fez recuá-la com uma careta.

— Muriel, então... — escutei passos na escada e fechei a boca. — Sai daí! — sussurrei para Muriel, ela estava escorada na porta do meu quarto, os braços cruzados e uma cara com uma clara mensagem de que não morria um músculo. Revirei os olhos. — Eu preciso abrir a porta, ou quer ser vista? — mas ela continuou sem se mover.

— Não precisa ter... — ela mesma se interrompeu com um grito quando girei a maçaneta e a porta foi escancarada com tudo pelo seu peso.

— Entra logo! — exclamei, chutando seus pés para dentro.

Escutei vozes, em tom normal de conversa, mas estavam tão perto da esquina daquele corredor que dava para entender o que elas falavam.

Claro, o assunto tinha que ser de Thomas pelas garotas que tinham uma paixonite por ele.

— Rude! — Muriel gritou.

Minha vontade foi de a esganar. Bruxa maldita que não sabe ser discreta. Mas vi um pé aparecer no início do corredor e entrei no quarto com tanta pressa, jogando meu corpo sobre a porta, que quase me dei um tapa por ela ter batido com força.

Fiquei ali mesmo, forçando meu peso contra a porta, porque a chave não estava na fechadura, apesar das vozes não serem de nenhuma das minhas colegas de quarto. A louca tinha chamado atenção suficiente para alguém ter a curiosidade de querer saber o que estava acontecendo.

Por falar nela, ela já estava de pé, me olhando como se quisesse retirar meu fígado comigo acordada e comê-lo na minha frente — se eu sobrevivesse à invasão.

Coloquei um dedo na boca, a pedindo silêncio, enquanto as meninas estavam passando em frente ao quarto, e me impressionei quando ela só bufou e virou o rosto.

Mas eu preferia um grito de Muriel a escutar aquilo.

— Eu acho que ele gosta dela — disse a voz número um.

— Óbvio que não, eles vivem se matando, se lembra de quando ele precisou ir ao hospital? Quando a Red empurrou ele da escada e ele ficou desacordado? — a voz número dois era a da razão.

— Não sei, não... Sabe o que dizem sobre quem briga muito, né? E Thomas parece olhar para Red como se ela fosse um troféu.

Agradeci pela sensatez da segunda garota e retorci o rosto inteiro em desgosto pela fala da primeira. 

O que ela queria insinuar? Que um dia meu ódio por Thomas se transformaria em amor e viveríamos uma linda história clichê de amor? A vontade de vomitar veio, mas a engoli, forçando os biscoitos que comi na sala de leitura a ficarem no estômago.

Me dava asco admitir, mas depois de pararmos no Madre Espirina, após anos de maus tratos, Thomas pareceu criar uma fixação por mim.

Louco, totalmente pirado, insano e nojento.

Depois disso, as vozes sumiram e, pela distância do som, calculei que foi a última porta do corredor, dois quartos depois do meu, que foi aberta e fechada.

Respirei fundo e voltei minha atenção para Muriel.

Ela estava observando as paredes brancas, as camas idênticas com lençóis cinza claro, seis enfileiradas, e até o chão de azulejos brancos.

— Esse quarto é horrível, parece um hospital — torceu o nariz, mas não a julguei, eu concordava. — Como eu estava dizendo: não precisa ter medo — ela avaliou se a primeira cama da fileira era boa o bastante para ter seu traseiro sobre ela. Por fim, se sentou, parecendo desconfortável. —  Não é como se alguém fosse perceber que sou uma bruxa.

— Não é medo, é precaução — revirei os olhos. — Imagine você, uma garota normal e comum, em um orfanato numa cidade onde não acontece nada demais, vira um corredor e se depara com uma pessoa vestida como há mil anos, com um bando de borboletas que parecem jóias a rodeando. O que você acharia?

Muriel não fez nenhuma expressão, como se fosse difícil achar essa cena estranha, só deu de ombros, fazendo pouco caso.

— Você não tem medo de ficar a sós com uma bruxa desconhecida?

A observei desde a barra do vestido bege, que chegava a cobrir os pés, até a divisão do seu cabelo castanho escuro, que caía solto até a cintura. A pele dourada cintilava pelo brilho que as borboletas jogavam sobre si. Borboletas de um amarelo escuro.

Mas foi em seus olhos que me atentei. Âmbares, da cor de uísque, e, se o que dizem sobre a bebida descer queimando a garganta for verdade, essa seria a ideal para descrevê-los.

Eu já tinha visto piores.

— Que tal irmos logo ao ponto do porquê você estar aqui e por que sou tão interessante para vocês?

— Bom, por onde devo come…

— Comece pelo início — a cortei. Muriel semicerrou os olhos, sem gostar nada da interrupção. — De preferência, vá direto ao ponto.

Seu olhar foi cortante, o queixo se ergueu em superioridade e os lábios se espremeram pelo descontentamento.

— Tudo bem — disse em tom amargo. Se levantou, indo até a única janela do quarto, que ficava perto da minha cama. — O que nos interessa em você é seu sobrenome.

— Stewart não é meu sobrenome — rosnei, mas  ela riu sarcástica, jogando a cabeça para trás, e se virou para mim.

— Não esse, criança tola. O de nascença — ergui uma sobrancelha e um sorriso de vitória, talvez por saber mais sobre mim do que eu mesma, se esticou em seus lábios. — Você é alguém antes mesmo de ter nascido.

Meu sangue esfriou e perdi as forças nos braços, não consegui mantê-los cruzados. Senti o suor nas minhas mãos, minha boca ressecando e todos os pensamentos, perguntas e dúvidas que eu tinha me abatendo.

Eu sabia que ela não responderia nenhuma. Eles pareciam saber muito sobre mim. At, a bruxa das borboletas azuis, Muriel. Mas era como se existisse um acordo entre eles, uma promessa de nunca me dizer nada por inteiro. Mesmo assim eu tentei:

— O que vocês sabem sobre minha família?

Muriel deu algo que eu considerei um sorriso, tão misterioso que parecia o de Mona Lisa.

— O suficiente, mas não se preocupe, um dia, quem sabe, você saberá tanto ou mais que a gente.

Eu sempre reclamei dos fantasmas. Todos os que vi trocaram só cinco palavras comigo antes de sumirem e me deixarem cheia de dúvidas. E até mesmo At, o único que continuou aparecendo e conversando comigo, nunca me respondeu como eu queria.

Eu não gostei de saber que bruxas eram tão misteriosas quanto.

— Por quê? — a irritação beliscou minha pele. Bruxas apareciam, faziam um pacto e iam embora, jurando voltar com o preço. Elas apareciam e me davam informações pela metade, com uma chave de ouro e me mandavam protegê-la como se custasse minha vida. Elas apareciam e falavam sobre minha família com o conhecimento sobre ela que eu deveria ter. — Por que ninguém me diz nada claramente?

Escutei uma risada, irônica e debochada, foi o suficiente para me fazer respirar fundo e pôr minha cabeça no lugar.

Eu não deixaria um bando de bruxas, que não tinham nada melhor para fazer além de se intrometer na minha vida, mexerem com a minha sanidade.

— Ok — molhei meus lábios ressecados e pigarreei. — Você não vai me dizer nada além disso, não é? — Muriel negou com a cabeça e eu assenti. — Certo... E o que você está fazendo aqui?

Quando ela abriu a boca para falar, um som de carro ultrapassou a janela aberta e Muriel se virou para ver o que era como se estivesse ansiosa esperando por alguém.

— Parece que perdemos muito tempo — não dava para ver, mas pela sua voz era nítido o sorriso que carregava.

Tentei chegar até a janela, mas ela se pôs na minha frente antes disso, o maldito sorriso de Mona Lisa ainda enfeitando seu rosto

— O que você é capaz de fazer por sua família?

A encarei com os olhos estreitos, desconfiada.

— Nada. Eu não tenho e nunca tive família.

Muriel me olhou tão intensamente que eu quase me senti desconfortável. Então duas borboletas pousaram em mim, uma no rosto e outra no ombro, suas asas balançando com toda a suavidade que seres frágeis têm. Mas elas não pareciam frágeis.

Não as expulsei, gostei da sensação que me trouxeram, era suave que fez algo em mim se iluminar, algo que parecia adormecido. Senti aquilo se mover, mas foi tão de leve que não me incomodou. A sensação foi embora quando as borboletas voaram para Muriel.

Ela torceu o canto dos lábios e suspirou anasalado, como se não gostasse muito do que via, voltando a olhar pela janela, antes que eu pudesse detectar se era decepção ou indecisão o que estava em seu olhar.

— E se eu disser que você está errada? — quando ela voltou a me olhar, seu rosto não demonstrava mais nada. — Sobre a sua família.

Foi tão rápido que, se eu tivesse piscado, teria perdido as diversas borboletas amarelas que irromperam do chão, em volta de seu corpo, e sumiram quando tocaram o teto, levando a bruxa com elas.

Senti o buraco no meu peito se abrindo, o que eu demorei anos para tampar e que sequer tinha cicatrizado ainda, era invisível, mas doía fisicamente, os pontos se desfazendo um por um, e o sangue invisível que queria escorrer da ferida parecia querer também sair dos meus olhos.

— É mentira.

Sussurrei, eu não soube se para mim ou para a presença de Muriel que continuava ali e isso me incomodou.

Fiquei sentada onde Muriel estava por dez, quinze, vinte minutos, talvez meia hora ou mais, até eu conseguir afastar aquelas palavras da minha mente. Mas meu esforço foi destruído quando alguém bateu na porta e irmã Lucrea a abriu, com o maior sorriso que já a vi dar.

— Red, você tem visita!

 

Eu tentei não pensar nas palavras de Muriel durante o percurso do meu quarto até a sala de Evangeline, e muito menos no que "você tem visita" queria dizer.

Claro que significava que eu tinha visita. Mas, bem, o Madre Espirina é um orfanato, quais tipos de visitas órfãos recebem?

Thomas às vezes era visitado pelo advogado dos Stewart e, nos últimos tempos, as visitas tinham se tornado mais frequentes já que faltavam apenas quatro meses para o grande estúpido se ver livre do orfanato e viver em um lugar bem aconchegante, que eu esperava ser o inferno, enquanto chega o tempo de herdar sua herança.

Mas nunca nenhum advogado veio até mim. Nem em mil anos Mathilde Stewart deixaria algo em meu nome — talvez, e só talvez, Charles teria deixado se não tivesse morrido tão cedo.

Ele deve ter pensado que eu ficaria bem nas mãos de sua querida esposa e de seus amados filhos mesmo após sua morte.

— Bata logo nessa porta, Red! — Lucrea me cutucou no braço e fechei meus olhos para não revirá-los.

— Curiosidade não é pecado?

— Fofocar que é pecado — ela disse. — Curiosidade é apenas humano.

Mordi minha língua para não dizer o que eu tinha pensado, em respeito à Lucrea, mas acatei a seu pedido para acabar com minha ansiedade.

Evangeline apareceu com um grande sorriso, parecendo tão contente quanto quando um dos órfãos eram adotados, eu afastei esse pensamento, era coincidência porque não era possível, não comigo, e ninguém tinha ido ao orfanato nos últimos três meses.

— Madre — acenei com a cabeça em cumprimento. — Desculpe se demorei.

— Não se preocupe, Red. Vamos, entre — ela me segurou pelo braço, me puxando para dentro. Lancei um olhar para Lucrea, que não tinha desmanchado o sorriso até ali e franzi o cenho. — Obrigada por buscá-la para mim, irmã Lucrea.

Um movimento tomou de conta da minha visão periférica antes de eu prestar atenção nas poucas palavras que elas trocaram.

Uma senhora, alta e bela. O cabelo branco como a neve, tão bem penteado para trás que não tinha um fio fora do lugar, contrastando com suas roupas pretas que pareciam ser feitas sob medida, e olhos azuis celestes que até o céu invejaria.

Ela estava de pé, os olhos sobre mim sequer piscavam. Sua expressão era de quem não acreditava no que via. Os lábios entreabertos, indecisos se falavam ou sorriam, mas decidiram pelo último quando Evangeline nos apresentou.

E eu fiquei estática.

Fechei minha boca rápido quando percebi que ela estava aberta.

— Eu vou deixá-las conversarem a sós — disse madre Evangeline.

Tive vontade de segurá-la para que continuasse lá dentro, mas eu só recobrei meus movimentos quando só restavam Olea Havilliard e eu na sala.

Quando a bruxa das borboletas azuis me disse que uma Olea estava vindo, eu pensei que seria outra bruxa, mas vendo-a, não, de forma alguma. Blazer, saia até os joelhos e nada de borboletas.

E jóias, colar, brincos e anel que brilhavam como seus olhos. Franzi as sobrancelhas quando percebi que o brilho era de lágrimas.

— Sra. Havilliard… — me arrependi de ter falado porque eu não sabia o que dizer..

Ela me deu um sorriso triste, mas em seus olhos ainda tinha contemplação.

— Por favor, não me chame assim — sua voz saiu embargada, mas ainda firme, assim como sua postura.

— Então… Sra. Olea? — arrisquei e Olea soltou um riso, aquele de quem não sabe se chora ou se sorri.

Red, você é estúpida.

— Venha — ela puxou a cadeira ao lado da sua e a virou para que ambas ficassem uma de frente para a outra, então se sentou. — Sente-se, por favor.

Demorei um pouco para atender seu pedido e, quando o fiz, foi devagar, praticamente arrastando meus pés.

Ela não tirou os olhos de mim por um segundo, como se tivesse medo que eu fosse sumir. Eu queria me sentir desconfortável sob seu olhar, ela era uma estranha e a primeira vez que ouvi seu nome foi pela boca de uma bruxa, mas eu não conseguia. Havia algo de magnético em Olea Havilliard que mais me fazia ter vontade de sorrir do que de afastá-la.

— Red — ninguém que não tinha intimidade comigo me chamava de Red, meu nome do meio era quase um apelido de tão pessoal que eu o considerava, mas senti um sorriso mínimo se repuxar em mim pelo carinho com o qual ela o pronunciou. — Você… Você promete acreditar que o que eu direi é verdade?

— Desculpe, sra. Olea — franzi o cenho e meu sorriso sumiu. — Mas não confio em estranhos.

Minhas palavras pareceram magoá-la, ela limpou uma lágrima que escorreu de pressa pelo rosto e me senti triste.

Não tinha motivo para eu me sentir assim, então espantei o sentimento.

— Elijah me disse que não seria fácil…

— Quem é Elijah? — quase mordi minha língua com força assim que terminei de falar, me estapeando por dentro pela minha curiosidade.

— O meu filho — ela sorriu tão genuinamente que não evitei de um sorriso voltar a se abrir em meus lábios. — Ele queria ter vindo comigo, mas não pôde, tive de quase amarrá-lo na cama.

Meus lábios estavam me traindo, eles sorriam sem minha permissão, os mordi para fazê-los parar, mas não tive muito sucesso.

— Por que ele não pôde vir?

— Ele fraturou uma perna recentemente e precisa de descanso, mas é um teimoso.

Eu ri e o sorriso dela aumentou ainda mais e os olhos não brilhavam mais de lágrimas.

— Sinto muito por ele — parei de sorrir e Olea notou isso, diminuindo o seu também. — Mas por que ele queria vir com a senhora? E o que a senhora quer comigo?

— É uma história um pouco longa...

— Eu tenho bastante tempo se for uma interessante.

Olea sorriu me olhando como se enxergasse outra pessoa em mim, mas meneou a cabeça de leve e seu sorriso se desmanchou, a fazendo voltar a ter um semblante pesado de tristeza e nervosismo.

Demorou para que ela falasse, seus dedos não paravam de girar um anel e do nada a decoração da sala se tornou mais interessante do que eu.

Não a apressei, algo em mim me dizia para respeitar seu tempo.

— Há pouco mais de quinze anos, eu tive uma neta — Olea respirou fundo, baixando o olhar para as próprias mãos, e eu apertei com força o assento da cadeira. — A mãe dela… Eu não sei o que houve, estava tudo bem, até que… — seus olhos se ergueram para mim, mas não conseguiram se manterem firmes e os abaixou — Um dia, acordamos e não encontramos mais a bebê e nem a mãe — sua voz quebrou, notei suas mãos tremerem de leve e seu peito subir com força. — E há alguns dias, eu encontrei um diário, o da ex-esposa do meu filho… Nele tinha o nome de um local e de uma família.

Eu gelei. Gelo ártico percorreu cada centímetro das minhas veias, tirando todo o calor humano que eu tinha e me trazendo frio.

O diário.

Meu cérebro estava trabalhando mais rápido do que eu conseguia pôr meus pensamentos em ordem, eles se ordenavam automaticamente, formando vinculações entre si e tomando uma forma que era difícil de engoli-la.

— Quais os nomes? — não segurei minha língua, então ela me olhou, toda seu rosto tomou um tom de preocupação notando que meu corpo inteiro tremia e se inclinou na minha direção, as mãos esticadas com menção de me tocar, mas me levantei, levando a cadeira ao chão. — Me responda!

Olea se afastou pelo meu grito. Mesmo que sua pose imperiosa e firme não tivesse se alterado, sua testa franzida, seus lábios encrespados e seu olhar só demonstravam dor.

— Chapelfields, família Stewart.

Senti vontade de rir, ela estava brincando comigo? Mas a vontade passou rápido quando as lágrimas começaram a inundar meus olhos.

Cobri meu rosto para ela não ver as lágrimas, para tentar impedi-las de cair, mas abafar os soluços que queriam sair, mas não adiantou.

Me lembrei de quando eu era criança, depois que Charles morreu. Ele morreu e eu fiquei sozinha, nas mãos de Mathilde, Audrey e Thomas. Eu esperei por eles, por minha família, esperei tanto e com tanta força que cheguei a sonhar várias vezes: pessoas que eu só conseguia ver o sorriso, e eles sorriam para mim, me seguravam no colo e beijavam minha testa.

Parecia tão real que eu acordava chorando, sentindo saudades de quem eu sequer tinha conhecido.

Eu esperei por aquelas pessoas, qualquer uma delas. Não precisava nem ser meus pais. Esperei, até perceber que eu estava sozinha.

Imagens da minha infância iam e vinham. Audrey pisando sobre minha mão com a ponta do seu salto fino; Thomas batendo no meu rosto com um carrinho porque tinha achado ele quebrado e colocou a culpa em mim; Mathilde e o seu cinto. E outras dezenas, centenas, pareciam milhares.

Por quê?

— Por quê? — senti um toque na minha, mas o espantei, e tropecei na cadeira quando tentei me afastar dela, caindo no chão com tudo, arquejei pela dor que senti no pulso, mas foi muito mais pela a que eu estava sentindo por dentro. — Você está mentindo — foi difícil falar, minha voz saiu num fiapo, tão fraca que me senti doente apenas em ouvi-la. — Eu não tenho família.

Há anos que dizer tais palavras não me machucava mais, mas o buraco que Muriel reabriu doeu, dilacerando meus peito e me rasgando por dentro.

Olea se aproximou de mim e me arrastei até bater as costas contra a parede, mas ela continuou indo até mim, até se ajoelhar ao meu lado.

— Me desculpe, meu amor…

— Não! — gritei. As lágrimas embaçavam minha visão, eu as soltava, deixava-as rolarem, mas vinham mais e mais grossas. Eu só chorei assim quando Thomas fez a cicatriz em mim, a ferro quente. — Você está se confundindo — funguei, abraçando meus joelhos e baixando minha cabeça. — Eu não tenho…

Não completei porque estava doendo, falar aquilo doía.

Os braços de Olea me rodearam e a senti tremendo.

— Nós nunca teríamos te deixado, eu juro, Red, pela a minha vida. Eu juro — sua voz soou dolorida, entrecortada pelo embargo. 

Você não tem casa, você não tem nada. Você não tem ninguém.

Escutei o defunto de Mathilde sussurrar no meu ouvido como quando sussurrava em vida.

— Não! — tapei meus ouvidos, mas a voz continuou lá dentro, enraizada tão fundo que até meus soluços altos não a encobriam. — Eu… eu não…

Um soluço me interrompeu, ele cortou entre meus pulmões e subiu à garganta com tudo, saindo gritado. Em seguida Olea estava me apertando contra si como se eu fosse de porcelana, só que com força suficiente para eu não me afastar.

O chão não parecia mais o suficiente para me segurar, ele sequer parecia existir e eu me sentia cair no buraco dentro de mim. Não a afastei porque eu precisava de alguém para me impedir de cair lá, era fundo demais para eu sair sozinha.

— Nós sempre te procuramos, Red. Sempre. — meu nome saiu de seus lábios como um afago, a melhor palavra carinhosa que ela poderia me dar. Tremi e me encolhi mais. — Agora nós te temos e você tem a nós, a sua família.

Seus dedos percorriam pelo meu cabelo, alisando os frios; a cada soluço que eu dava, seu aperto se firmava mais em torno de mim.

Levantei meu rosto, o que expulsou seu queixo que estava sobre minha cabeça, e a encarei. Seu rosto estava vermelho, mas os olhos estavam mais, trilhas molhadas desciam deles até seu queixo. As sobrancelhas franzidas e o canto dos lábios caídos. Não parecia natural, não era a mesma senhora de minutos atrás.

— Eu não sei o que é ter uma família.

Ela não disse nada, o brilho natural de seu olhar se apagou um pouco, tremeluzindo, e seu queixo tremeu.

Ainda vi uma gota rolar dos seus olhos antes de sentir na minha testa o toque dos seus lábios.

Eu já senti aquilo antes. Aquele calor envolvendo o coração, o peso no fundo dele, que se expandia aos poucos querendo explodir, a profusão de sentimentos que não me pertenciam transmitidos por um toque.

Era tudo igual.


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