Doutrinação escrita por Jubs


Capítulo 1
Uma adorável bonequinha




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Estava havendo uma reunião familiar na casa de Emília naquela noite.

Enquanto os muitos adultos conversavam alegremente na sala, dispostos cada um em sua respectiva cadeira ao redor da tela da televisão, a garotinha e duas de suas primas menores se recolheram no quarto para brincar com suas bonecas, felizes pelos mais velhos terem dispensado sua presença por ali. Conversa de adulto é muito chata, elas achavam. Quer dizer... pelo menos duas delas.

Emília tinha sua boneca nova nas mãos, aquela que havia praticamente acabado de ganhar como presente de aniversário, há dois dias. Era uma coisinha fofa, apesar de ser de pano, com cabelos lisos e loirinhos como os seus, e até aquela pintinha no antebraço que ela própria também tinha. Havia sido feita exclusivamente para ela pela mãe de uma de suas amiguinhas da escola, a Sofia. A menina, é claro, havia amado a ideia de ter ganhado uma miniatura de si mesma para brincar.

— Obrigada, Sofia — ela dissera durante a festa, em meio a um abraço tímido com a menininha toda sorridente que acabava de lhe dar o presente. — Você é a melhor amiga de todas!

E foi assim que viraram melhores amigas. Rápido assim, inesperado assim, sem grandes complicações ou considerações. Era parte da espontaneidade gostosa de ser criança.

No entanto, com a bonequinha nova nas mãos e os olhinhos fixos pregados nela, Emília havia sentado próxima à porta do quarto e tentava ouvir casualmente sobre o que raios que os adultos tanto conversavam, tendo sido necessário até mandar as pequenas para "longe" dali. Suas priminhas pouco se importavam; estavam ocupadas se comunicando através de suas Barbies, em seu mundinho particular. Caso elas também tivessem essa curiosidade, na verdade não seria nada difícil saciá-la, já que nem a porta do quarto estava fechada.

Com os ouvidinhos alertas, Emília ouvia cada gargalhada, cada tosse, cada palavra que vinha lá da sala, meio misturadas com o som metálico das vozes da televisão. Sem muito interesse ou conhecimento, ouvia palavras como "sexo", "piranha", "corno", ou até "doutrinação", sem fazer a menor ideia do que significavam, apesar de não ser bem a primeira vez que as ouvia na vida. Ah, quer dizer, "piranha" ela já havia escutado sim. Não era aquele negócio lá de prender o cabelo?

Tudo isso era dito como comentário às cenas da novela que passava na televisão e que, apesar da curiosidade, Emília não era cara-de-pau o suficiente para colocar a cabeça para fora do quarto e dar uma espiadinha. Ouvia, no entanto, o som metálico de uma música romântica qualquer, que denunciava se tratar de um quadro romântico.

— Mas é muita safadeza, não é? — a voz de tio Romualdo soou rouca como sempre — veja só o que essas novelas ensinam. A mulher está fazendo o marido de corno bem debaixo do nariz dele!

"Corno". De novo aquela palavra engraçada.

Tia Zélia fez algum comentário baixinho com aquela voz de cigarro que Emília quase nunca entendia, mas que foi suficiente para fazer todos na sala se matarem de rir por alguns instantes. O assunto correu então para casamentos, na novela e fora dele. Emília ouviu uma longa discussão sobre o divórcio do primo Abelardo, e do quão absurdo ou entendível era ele já estar com uma nova mulher apenas um mês após o fim do casamento.

— É homem, né — foi tia Carmem quem comentou, com ares de pouca importância de quem só com essas palavras já havia explicado tudo.

— É — tio Romualdo concordou. — ele tem suas necessidades...

Houve então um silêncio repentino na sala. Curiosa, a pequena espiã espichou as orelhas, chegando a ouvir vozes metálicas e masculinas trocando palavras de afeto, tendo como fundo mais uma daquelas músicas românticas típicas de novela. Por fim as vozes cessaram e a música aumentou de volume, tomando todo o som da TV.

O silêncio que se seguia era quase audível, tão inesperado se deu. Emília dessa vez se remexeu para arriscar pôr a cabeça só um pouquinho para fora, só o suficiente para ver o motivo daquela comoção toda — mas se interrompeu na metade do jesto ao ouvir um murmúrio furioso do tio Romualdo:

— Mas que absurdo!

Uma palavra complicada, mas que pelo menos ela conhecia o significado. Por isso já sabia que não devia ser nada bom.

— Uma pouca vergonha — corroborou tia Zélia, em tom irritado.

— Como é que deixam passar na televisão uma coisa dessas!  tio Adriano replicou.

Murmúrios de pura desaprovação se seguiram. Emília precisou usar de toda sua concentração para tentar recuperar o fio da conversa, que já se desenrolava a todo vapor.

— Como é que uma emissora de televisão tem a coragem de exibir em rede nacional uma cena dessas? — tia Zélia continuou — é um absurdo sem tamanho. Uma falta de respeito.

— Ah, mas agora é assim né, eles querem enfiar gay em tudo quanto é lugar! Nem a novela escapa mais!

"Gay"... ecoou Emília, em pensamento. Já havia escutado essa palavra, sempre da boca dos adultos, em especial dos homens, e mais em especial ainda quando queriam fazer alguma piada ou perturbar alguém de seu grupo de amigos. Ela lembrava também de ter ouvido seu primo Gabriel usar essa palavra para xingar um colega de escola que não havia devolvido o jogo que ele havia lhe emprestado. Mas o que ela realmente significava... ainda era quase um mistério.

Era para rir?

Era para ficar com raiva?

Era para brincar?

— Ainda bem que as meninas estão no quarto — mamãe comentou, abaixando a voz como se subtamente se lembrasse da presença das crianças ali perto. — imagine se a minha filha visse isso. O que é que eu ia dizer pra ela? O que é que ela ia pensar?

— Mas eles querem é exatamente isso, Margarida! Confundir, doutrinar as crianças. Agora que ser gay virou moda, eles querem que todo mundo vire, começando já desde pequeno.

— É o fim dos tempos! — Tia Joana, A Dramática, choramingou.

— Mas é assim agora, está é tudo misturado— Vô Pedro contribuiu, indignado — é homem com homem, mulher com mulher, homem que diz que é mulher, mulher que diz que é homem. A raça humana está perdida, escutem o que eu digo. Desse jeito ninguém procria mais, e seremos extintos.

Extintos? Como os dinossauros?

— Eu ainda tenho pra mim que isso é alguma espécie de doença, não sei... — primo Duda, o mais novo ali, murmurou enquanto certamente bebericava seu copo de café. — não é culpa deles diretamente falando.

— Isso não é doença, Duda. É sem vergonhice mesmo!

— Não, é sério, eu li uma vez num site, sobre um gene...

— Ah sim, eu vi isso também — papai concordou.

— Um gene gay, que é o culpado por essas pessoas serem desse jeito. Torna os rapazes mais afeminados desde o útero materno, e as meninas... bom, vocês sabem. Sapatonas.

— Até que faz sentido. Eu concordo, só pode ser uma doença essa coisa, e as pessoas estão tentando normalizar a todo custo.

— Eu já acho que é mais questão de criação — tio Romualdo interrompeu. — veja bem, geralmente esses meninos que são criados só pela mãe, sem um pai em casa, são mais viadinhos mesmo. Eles têm trejeitos desde criança às vezes.

— Ah, a falta que um pai faz na vida de um menino...

— Um pai ou uma boa de uma cinta — completou Vô Pedro.

Um silêncio de consenso correu pela sala, enquanto que, lá no quarto, Emília, com uma caretinha enrugada de concentração, tentava entender direitinho o que havia acabado de ouvir. Era todo um papo esquisito de doença, e criação, e gay, e gene... apesar de não ter entendido uma parte da conversa ou o motivo daquela indignação toda, uma coisa havia ficado perfeitamente claro em sua mente infantil: boa coisa aquilo não era. Do contrário os adultos, até mesmo seus pais, não teriam ficado tão furiosos e cheio de indignação — afinal, os adultos sempre sabem o que é bom e o que é certo para todo mundo!

— Bom, eu não tenho nada contra — suspirou mamãe, com um barulho de madeira como se ela estivesse ajeitando a coluna contra a cadeira. — desde que não fiquem se exibindo por aí, principalmente na frente das crianças.

— Isso confunde a cabeça delas mesmo. Imagine se um dia a Emília chega para você, Margarida, e diz que virou gay porque viu duas mulheres se beijando na TV e achou bonito, achou normal?

E então a mente de Emília se iluminou num estalo. Isso que era ser gay, afinal? Duas mulheres se beijarem? E dois homens se beijarem também, por consequência?

— Ah, vire essa boca para lá! — Margarida reagiu, enojada. — Deus me livre!

— A nossa filha jamais vai se envolver com esse tipo de gente — corroborou papai, sério.

Pensativa, Emília se aquietou.

Encostou-se na parede de seu quarto, sentadinha onde estava, e deixou que sua mente terminasse de organizar direitinho aquelas novas informações lá dentro. Havia aprendido mais uma coisa importante com os adultos, mesmo que sem querer, e mesmo que brigasse um pouquinho com algumas informações prévias que já existiam na sua cabeça — mas ela sabia que, apesar de confusa com aquilo tudo que havia ouvido e com o que já julgava saber, deveria sempre pender para o lado dos adultos, em especial da sua família, e, mais em especial ainda, o de mamãe e papai. Eles sempre sabem o certo. Sabem o que é melhor. Bem mais que as crianças, e bem mais que as outras pessoas.

E então subitamente ela se pegou assustada com aquela doença, que ela, pelo visto, poderia contrair a qualquer momento — exatamente como quando houvera aquele surto de catapora e ela, assustadiça como era, passava noites em claro e dias tenebrosos no meio das outras crianças, com medo de ser a próxima que aquele vírus das bolinhas iria infectar. Detestava ficar doente, trancada no quarto, sozinha, se sentindo mal e tomando todos aqueles remédios horríveis. Isso quando não precisava enfrentar a terrível agulha da injeção!

Piscando repetidamente, alarmada e com o coração saltitando, a menina baixou o olhar para a bonequinha de pano que ainda jazia em suas mãos, sorrindo para si com aquela boquinha de linha cor-de-rosa. Ela era macia e gostosa de abraçar, dava a sensação de proteção que ela estava buscando desesperadamente naquele momento — e então, com toda a força de seus bracinhos finos, Emília tomou a boneca em seus braços e a abraçou calorosamente, enterrando o nariz na lã de seus cabelinhos cor-de-ouro. Sentiu um perfume diferente do seu emanar de seu pano costurado, mas, sorrindo, lembrou que tinha sido o mesmo cheiro que sentira ao abraçar a Sofia, sua nova melhor amiga, na ocasião em que havia ganhado aquela bonequinha no seu aniversário, especialmente costurada para ela mesma, pela maravilhosa artesã que era a... a...

Repentinamente, Emília abriu os olhos.

Novamente assustada, afastou o brinquedo de si e encarou-o, com os olhinhos vidrados de quem se vê diante de um perigo inesperado e mortal. Aquela boneca, aquela adorável boneca. Ela havia sido feita pela mãe de Sofia. Toda costurada à mão, desde os bracinhos, até as perninhas, o rostinho, o vestido, os cabelos, a pinta, tudo, tudo, tudo — tudo tinha vindo diretamente das mãos daquela mulher.

Com um gritinho inaudível de susto, Emília ergueu-se de onde estava, jogando a bonequinha longe e assustando as primas que brincavam ali pertinho de si. Iria pedir para a empregada para que jogasse aquela boneca no lixo o mais rápido possível, assim como inevitavelmente iria ter que se afastar de sua nova melhor amiga da escola, já que havia se lembrado de um detalhe muito importante:

Sofia tinha duas mães.


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