Crônicas em vozes escrita por Annonnimous J


Capítulo 4
Calafrios




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A pena apoiada de qualquer jeito entre meu indicador e polegar gotejava uma tinta escura e gélida sobre o papel, criando uma forma aracnídea em um relevo que durava poucos segundos. Na folha de celulose branca manchada de um amarelo acre e familiar, algumas palavras em letras cursivas e tortas se emaranhavam como cobras mordendo o rabo uma das outras em um frenesi estático.

Meu olhar distante e sombrio fitava a chama da vela que banhava meu rosto com um alaranjado débil e nauseante. Em minha mente, dor e memórias disputavam espaço em um balé agoniante e desesperador, meu peito, comprimido de angústia, doía uma dor inerte e indiferente, onde meus pulmões apenas se moviam o suficiente para que a pressão sobre minhas costelas rijas não as quebrasse.

Minhas pernas, por outro lado, balançavam freneticamente ora de cima para baixo, ora de um lado para o outro sem que eu sequer me desse conta do que faziam.

A luz que vinha da única vela em um candelabro de ouro disposto em uma mesa de madeira de junco também iluminava minimamente o resto do quarto do chalé, as paredes de grandes troncos trançados agora pareciam muralhas que caminhavam em minha direção. Corro os olhos cansados e marejados por elas, passando pela cabeceira ornada da cama de madeira escura e polida, vislumbrando de soslaio a moldura de meus pais, um atrás do outro com um sorriso estático e olhos mortos, trajados em roupas requintadas e muito bem limpas me saltando os olhos em cores. Ao lado, uma foto minha ainda criança com um pequeno arco em mãos, tentando fazer algo mais do que apenas ensaiar um tiro.

A lembrança daquele dia me trás um leve acalento, que logo se perde.

Por último, observo um retrato emoldurado por uma moldura ornada e brilhosa, em que uma mulher de cabelos negros e encaracolados se sentava sozinha em um banco de palacete, vestida com um vestido rodado de seda roxa e babados, com um decote entrecortado por tiras que ao mesmo tempo revelavam e ocultavam algo. Seus olhos, ternos e gentis, imortalizados por aquela impressão em prata e papel colorizada por um artista habilidoso parecia me fitar.

Sinto um conhecido arrepio e meu rosto se aquece, com um fio de memória que começa a acometer as sinapses de meu cérebro e enevoar meus pensamentos mais escondidos.

Salto então de susto com um estrondo. A janela logo atrás de mim, aos pés da cama, se abre em um solavanco e um rangido doído, se chocando contra uma pobre prataria colocada no dia anterior no lugar errado e na hora errada. Mas nada disso me choca ou chama particularmente a atenção.

De pé, diante da janela aberta, banhada pela luz tímida da lua de inverno, quase escondida sob as nuvens, havia aquela que para mim poderia ser dita como a nova encarnação de Vênus. Seu delicado e firme corpo contornado em curvas estava de pé logo ali, iluminado por uma luz quase angelical, seus cabelos, repartidos ao meio, caiam para frente como dois veios virgens de quartzo negro ainda na pedra, ocultando seus seios desnudos. Seu rosto, quase todo tomado pela penumbra, apenas deixavam cintilar os olhos cor de avelã, o que dava a ela um tom ameaçador e ao mesmo tempo convidativo.

Me levanto ignorando a dor no joelho causada pelas horas a fio em que estava sentado, meu corpo todo se arrepiava ao ver a imagem e meu coração poderia facilmente ser usado como uma fonte de energia pulsante de alguma máquina de Leonardo Da Vinci tamanha a rapidez com que bombeava meu sangue e minhas emoções em meu peito. Com passos silenciosos vindo de pés gentis e macios, a imagem caminha em minha direção. Seus braços, pendendo ao lado do corpo chacoalhavam despretensiosamente para frente e para trás enquanto caminhava, mas ao contrário da sua expressão corporal, seus olhos estavam cravados nos meus como apenas um predador olha para sua presa. Contudo, aquilo não me dava medo, muito pelo contrário, me sentia atraído pelo campo magnético que a sua presença fantasmagórica produzia.

— Van... – tento pronunciar seu nome sem nem mesmo perceber que meus lábios se moviam, mas um dedo de unhas vermelhas os faz congelar entreabertos, sob uma pressão gentil.

Outro calafrio me percorre quando o chacoalhar de uma mecha de seu cabelo deixa a luz banhar seu rosto e uma vez mais vejo os lábios macios e delineados, agora a menos de trinta centímetros de distância dos meus. Meu coração quase para ao observar aquele corpo colado ao meu e os dois pares de olhos na mesma linha, fitando um ao outro sem nada a dizer.

De forma furtiva, a mão que tapava meus lábios com o dedo indicador desliza para meu punho pendido ao mesmo tempo que a outra imitava o gesto, arrastando minhas mãos para suas costas e as entrelaçando, como se a estivesse guiando em uma dança que só existia em nossa mente. Para completar a pose, ela passa os dois antebraços pelo meu pescoço e entrelaça os dedos em minha nuca com uma leveza e calma inquietantes.

Não sei por quanto tempo ficamos assim, com os hálitos quentes transformando a fumaça do vapor de ambas em uma só e perdidos nos olhares um do outro, mas o que acontece logo depois é rápido.

Sem me conter mais um minuto sequer, aperto os braços em sua cintura e a comprimo contra mim, sentindo todo seu corpo no meu, sentindo seu cheiro doce de jasmim me impregnar e sentindo o toque de seus cabelos em meu rosto, que a essa altura estava grudado em seu pescoço. Ela então responde ao gesto apoiando uma das mãos abertas em minha nuca, enquanto desliza sua face contra a minha, roçando seu rosto liso contra minha barba rala por fazer.

Por um instante não entendo o motivo daquilo, mas logo sinto dentes pressionando meu lóbulo direito e ar quente de sua respiração acaba em um leve sorriso quase sussurrado. Outro arrepio me acomete e antes que eu desse por mim, já girava de costas para a cama mal arrumada, desabando com seu peso sobre mim.

Seus cabelos pareciam me banhar e agora não mais escondiam o que eu ainda não podia ver de seu corpo, seus olhos ainda eram penetrantes e pareciam ver através de mim e seu peso, apesar de menor que o meu, parecia me imobilizar a medida que ela se apoiava sobre minhas mãos, entrelaçando nossos dedos. Uma alegria juvenil me invade e o calor incendeia todo meu corpo, por um momento voltara a ser feliz, não sabia bem o motivo da minha tristeza anterior, mas agora não importava, sequer me lembrava de um dia ter me sentido infeliz.

Calma e resoluta, ela se abaixa vagarosamente, se aproximando de mim e deixando seu quadril nu se assentar sobre o meu, em poucos instantes que para mim, em minha impaciência impertinente, pareceram dias e horas, senti seu nariz tocar o meu e novamente a eletricidade percorreu meu corpo. Meus mais profundos desejos afloraram e tudo que eu queria era me desvencilhar do aperto de suas mãos e a apertar uma vez mais contra mim, até que nos tornássemos um.

Seus lábios se moveram por um instante, formando palavras inaudíveis e mais uma vez procuraram meus ouvidos. Podia sentir novamente seu hálito quente na noite fria de inverno bem próximo do meu ouvido, aquecendo minha face, queria escutar o que ela ainda tinha a me dizer.

— Você tem que me deixar ir, Jonathas.

Salto da cadeira com toda a força de minhas pernas, quicando no lugar como uma caneca de metal jogada contra chão. Demoro um pouco para assimilar tudo, me viro mais que depressa para tentar procurar minha amada, mas apenas a janela fechada me saúda e a tristeza novamente toma conta de mim, junto à torrente de memórias.

Me viro para frente e releio a página maltrapilha da documentação de óbito em nome de Vanessa Von DeGraff, minha amada mulher e amante desde a adolescência. Fito mais uma vez seu retrato na parede e mais uma vez meu rosto se torna quente. Mas um quente liquido e salgado, que toma minhas bochechas à medida que as lágrimas as lavam, entrando em minha boca e pingando no papel. A tinta borrada agora escorria para baixo, traçando longos dedos negros até o final da página, enquanto que a vela se esforçava para queimar o resto de corda que se entremeava à cera.

Com uma raiva advinda da tristeza, soco o candelabro e ele voa de encontro à parede e antes de se chocar, o fogo se estingue, deixando o quarto com o mesmo aspecto de Minh ‘alma.

Escuro.


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