Crônicas em vozes escrita por Annonnimous J


Capítulo 2
Olhos vermelhos - Pt. 1




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O interior do cubículo que eu chamo de escritório tinha um fedor rançoso de Marlboro, tequila e suor. O ar, enevoado de fumaça tóxica e cancerígena, me envolvia enquanto eu via a luz débil e deformada da lua cheia clarear pelas persianas mal cerradas os papéis espalhados pela minha mesa, ocultos pelas cinzas de cigarro e por recortes de jornais recentes. Sobre elas, meu revólver oleoso descansava com as munições calibre 38 reluzindo em um brilho dourado dentro do tambor.

Contudo, nada disso me chamava particular atenção, tudo em que eu conseguia me concentrar era a foto de uma jovem menina de cabelos ondulados esvoaçantes paralisados pelo disparo da câmera enquanto ela descia correndo uma escadaria de concreto musguento e esborcinado. Ao lado dela, uma outra foto mostrava a mesma menina, com semblante alegre e bochechas que escondiam os olhos em um grande sorriso de orelha a orelha. Por baixo delas, ocultas pelos retângulos de polaroides manchados de café, uma terceira foto, da mesma garota, dessa vez um pouco diferente.

Nessa foto, os olhos brilhantes, redondos e negros como uma jabuticaba, davam lugar a um olhar sereno e frio, fitando o horizonte infinito do céu noturno de inverno enquanto o único brilho que refletia era o flash da câmera. As bochechas, antes congeladas pelas fotos em um sorriso jovial e terno, agora estavam caídas, murchas e machadas de barro. A foto parecia me fitar por entre as outras. Meu estômago embrulha.

Me coloco de pé sem muita pressa, sentindo o peso da tequila em meu sistema nervoso. A cadeira reclama em um rangido incômodo enquanto me levanto com os braços firmemente seguros nos apoios, minha cabeça gira por um momento, não sei se pela bebida, pelo ar cheirando a câncer que me abraçava ou simplesmente pelo maldito caso da semana passada.

Dou alguns passos em direção à porta de vidro fantasia decalcado com as iniciais da polícia civil do Estado de Goiás. O distintivo pesava em meu pescoço, a calça social que usava parecia me apertar as nádegas e a camisa branca de botões amarelada pelo uso parecia incômoda. De fato, tudo me incomodava, até mesmo o som emborrachado do mocassim contra o piso de cerâmica que um dia fora branca.

Deixo a mesa de madeira nobre para trás, junto a ela, todos os papeis bagunçados. Ensaio passos lentos para a porta, giro nos calcanhares e me encaminho como que automaticamente para o meu armário. Afasto alguns troféus e medalhas e alcanço um pequeno frasco metálico com a ponta dos dedos. O metal era frio em minha mão direita, assim como a sensação da arma que agora parecia pesada na esquerda. Por um segundo, não percebi que ela estava ali. Cruzando o braço frente ao peito, a acomodo no coldre axilar.

Por causa da embriaguez, o movimento me desequilibra e eu pendulo de forma ridícula para trás, atravessando a sala em um ângulo estranho até desabar no sofá de couro falso que a enfeitava, sofá esse que parecia ser a única coisa dessa década ali, incluindo a mim.

Passo os olhos quase fechados pelo escritório e vejo meu diploma pregado precariamente na parede, haviam semanas que ele estava pendido para o lado e eu sempre me prometia arrumá-lo no final do expediente, mais uma falha para a lista. “José Alencar de Farias”, eu lia, “Perito Criminalístico Forense do Estado de Goiás - turma de 1998”. Meu nome era em memória de um famoso escritor que meu pai adorava ler, mas por mim poderia ter sido o nome de um pintor, um jogador de futebol ou de um mendigo, não me importava.

— Perito Criminalístico Forense – falava para mim mesmo em um tom de escárnio -, um belo nome pomposo para um carniceiro.

Não estava errado.

Desatarraxo a rosca metálica no topo do pequeno cantil e dou um gole no conteúdo, jogando a cabeça para trás até encostar no encosto do sofá, a bebida desce como lâminas em minha garganta, queimando todo o caminho até o estômago e depois desaparece como em um passe de mágica. Fico naquela posição um tempo, olhando para o teto branco de gesso salpicado por infiltrações dos banheiros comunitários a cima. Apesar de estar no segundo andar, algum engenheiro engraçadinho achou por bem colocar mais dois andares no prédio de fachada vitoriana e os banheiros precisavam, necessariamente, estar acima do meu escritório.

As manchas esverdeadas formavam pequenas estalactites de musgo e com elas formas horrendas. Uma vez, uma criança que acompanhara a mãe para um reconhecimento facial, vira uma borboleta em uma delas, o que era engraçado, pois onde ele vira um pequeno inseto, eu via um corpo caído no chão, com os braços abertos e as pernas arqueadas, como se tivesse caído de costas depois de ser baleado enquanto sentado.

Sem perceber, me vejo tragando mais um cigarro, deveria ouvir a minha ex-esposa e parar de levá-los com um isqueiro no bolso da camisa. Dou um trago longo, sentindo a fumaça preencher a minha boca e irritar a mucosa em minha garganta, depois, solto-a pelo nariz, como duas chaminés de trem a carvão. Enquanto o cigarro descansa em brasa entre meus lábios, permito meus pensamentos voarem de encontro ao teto como a fumaça e em um piscar de olhos, estou uma semana mais jovem.

Através da janela do carro em que recolhemos corpos, vejo a paisagem urbana mudar para uma paisagem mais rural, as ruas de asfalto dão lugar a ruas de terra batida e castigada pela garoa fina que caía, os prédios davam lugar a casas mais simples e os muros altos e decorados davam lugar a muros precários. Paramos em algum ponto do caminho, me acordando de um torpor contemplativo com o sacudir do automóvel e um guincho de seu sistema de freios. Olho em volta e sou pego de assalto pelas luzes acima de duas viaturas da polícia militar que barravam o trânsito da rua, com o auxílio de fitas zebradas. Ao lado das fitas, dois pares de policiais uniformizados e carrancudos tentavam dispersar a aglomeração que se formava. Dentro do perímetro da fita, avisto sobre o ombro de um deles duas formas, uma, de uma mulher de idade já um pouco avançada sentada sobre os joelhos e a outra, um tanto menor, de uma garotinha, caída de costas na rua como se estivesse brincando de fazer um anjo de lama.

Me aproximo.

Passando por debaixo da fita de contenção depois de acotovelar uns dois moradores locais, chego próximo a mulher que velava o pequeno corpo e toco em seu ombro, minhas mãos já estavam cobertas pelas luvas de látex brancas, então esperava que meu toque gelado assustasse a mulher que usava uma roupa sem mangas, mas o sobressalto não vem. Ela penas me olha sob a cabeleira encaracolada com olhos marejados e fundos.

— Me desculpe senhora – falo em meio a um pigarreio -, mas a senhora vai ter de me dar permissão para estudar o corpo.

— Claro – ela responde, em um tom choroso e profundo, como de quem já não estivesse mais ali em corpo e alma.

Ela se afasta, mas a mantenho por perto enquanto tiro fotos do local, ponderando se deveria fazer as perguntas ou não. Meu profissionalismo e experiência me dizem que sim. Meu parceiro, Otis, percebe meu desconforto e toma a iniciativa, se agachando ao lado da mulher, a cobrindo com um guarda-chuva.

— Boa noite senhora, meu nome é sargento Otis Ferreira, tenho que te fazer algumas perguntas, se importa em responder?

Ela maneia a cabeça, mais interessada em me observar fotografando e tocando o corpo procurando por evidências.

— A senhora é parente da vítima?

— Avó – ela responde, secamente.

— Viu o que aconteceu?

— Ela brincava na rua, depois, escutei os gritos, quando cheguei, ela estava caída e ele estava ao lado dela.

Sinto um calafrio, minha experiência me dizia que havia algo errado, nenhum assassino fica no local.

— Entendo – Otis responde, incomodado – e pode me dizer com ele era?

— Ele... – ela pensa por alguns instantes, sem tirar os olhos do pequeno corpo, depois segura de leve a manga da camisa de Otis e continua em tom baixo e sussurrado, como se não quisesse ser ouvida por mais ninguém – ele era alto, não parecia muito forte e usava uma roupa para proteger da chuva.

— A senhora viu o rosto dele?

— Não – ela responde em um soluço mudo – apenas os olhos.

— Me descreva ele, por favor, roupas, cabelo, olhos, algum detalhe da face, tudo que pode ajudar a identificá-lo.

— Ele usava uma capa de chuva preta que parecia pesada, um chapéu longo como o de um vaqueiro, mas sem as dobras e seu rosto... estava muito escuro senhor, eu não vi...

— Tudo bem, – diz Otis em um suspiro longo - mas a senhora me disse que viu os olhos, como eram?

— Vermelhos.

A porta do carro bate, olho ao meu redor e estamos na porta de descarga do IML. Pisco os olhos repetidamente como que para me certificar de que aquilo não é uma ilusão, mas nada parece se desfazer a minha frente. Desço do carro ainda sem entender como vim parar ali.

— Dá pra acreditar? – Vocifera Otis atrás de mim, desolado - a caipira acha que ela foi morta pelo velho mato.

— Ela estava em choque Otis, tenha um pouco mais de compaixão.

— Você e sua compaixão, Zé, sabe que isso não te leva a lugar nenhum, não é?

— E o seu asco leva?

Ele ri.

Levamos a garota para dentro em uma caixa de plástico grosso e entregamos as evidências envoltas em sacos transparentes. Olho no relógio. São 20h47, meu turno acabava às 17h, mas já era natural para mim ficar um pouco mais. Me troco e marcho em direção ao meu carro, um Santana com o para-choque amassado por uma batida no portão de casa depois de uma noite exaustiva, noite aquela que custara meu casamento. Ainda podia escutar os ecos da discussão, tinha raiva daquilo tudo, mas não dela, não podia cobrar um reconhecimento que não a dava.

Entro no carro e giro a chave, ele engasga algumas vezes até pegar e engato a ré para sair do estacionamento, deslizando sobre o cascalho. Minha casa não ficava longe, mas as ruas estavam, logo hoje, excepcionalmente escuras e vazias.

O carro arranca pelas ruas já quase desertas, com a exceção de alguns bares abertos, viro duas esquinas para a direita e então sigo em frente, minha casa ficava logo mais adiante, depois do semáforo, no fim da quadra. Como de costume, o maldito estava fechado, mas não era como se eu tivesse pressa de chegar, ninguém me esperava lá. Subitamente, sinto minha nuca ficar gelada, como se alguém a soprasse, meus pelos de ambos os braços se eriçam como se quisessem deixar o meu corpo e o arrepio percorre do meu tronco até as pernas. Olho para os lados e não vejo nada, a rua estava deserta, a chuva parara e o silêncio era sepulcral, cortado apenas pelo ronco do motor abaixo do capô. O sinal vermelho, parece piscar enquanto eu o observo nervosamente, mas nada acontece, tenho a sensação de estar ali mais do que deveria.

Minhas têmporas martelavam em minha cabeça enquanto o sangue pulsava, as ondas de calafrio não paravam e eu sabia que aquilo era um mal sinal. Sentia a pressão do banco em minhas costas, mas tinha a nítida impressão e que havia alguém atrás de mim. Tinha certeza de estar sozinho quando entrei, fiz questão de olhar, mas todos os meus sentidos gritavam para que eu olhasse para trás. Já suava frio, minhas mãos escorregavam no volante e no câmbio, meu olhar variava entre os retrovisores e o sinal, mas nada me acalmava.

Em um pico de adrenalina, respiro fundo e olho para trás. A figura me olha de volta, envolta em uma roupa completamente negra e reluzente de umidade, os olhos vermelhos vivos e brilhantes, calada no banco de trás.

Congelo.

— O sinal abriu, filho da puta! – Grita um sujeito mal encarado de dentro do seu carro se colocando quase todo para fora da janela. A figura não estava mais ali.

Arranco respirando forte e acelero para chegar em casa, as ruas parecem longas demais, as luzes nos braços dos postes piscavam enquanto eu passava, mas eu não me importava com nada disso. Passava a quarta marcha no carro quando chego em casa, paro em um arrastar agudo de pneus e corro para dentro. Tinha fechado bem o carro? Tinha esquecido a chave ignição? Fechara a porta da frente de casa que agora estava logo atrás de mim? Não sabia, não queria saber, só queria um lugar seguro.


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