Fine Young Gentlemen escrita por Lerdog


Capítulo 1
Puppy


Notas iniciais do capítulo

Para aqueles que tenham interesse, eu coloco fotos dos intérpretes dos personagens aqui: https://www.wattpad.com/836418253-fine-young-gentlemen-cast

ooooou

Para aqueles que preferirem, eu também publiquei o capítulo com imagens/fotos em pdf, neste link: https://drive.google.com/drive/folders/1IZcqVARlVN4rj4RmZRPUibA-wlhlgfU1



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Rainfort, Connecticut, Estados Unidos. Setembro de 2020.

Desliguei meu celular pela última vez e o guardei no porta-luvas do carro. Eu tinha lido extensamente o manual de regras da Saint Dominic Academy For Boys, então eu sabia que aparelhos celulares não eram permitidos por lá. Não fazia muita diferença, na verdade. Eu não tinha com quem falar. Talvez eu fosse sentir falta das leituras que fazia pelo aparelho, mas eu podia facilmente substituí-las por livros da extensa biblioteca da nova escola.

— Só mais dez minutos, master River. — Eu ouvi a voz de Carlos dizer.

Carlos era o chauffeur do meu pai desde antes de eu nascer. Ele tinha trabalhado também para o meu avô paterno, o qual eu não cheguei a conhecer. Eu tinha vagas memórias de Carlos, de quando era pequeno e meus pais ainda estavam juntos, mas nada muito vívido.

Meus pais ficaram juntos por seis anos. Três antes do meu nascimento, três depois que eu vim ao mundo. Minha mãe tinha nascido no Japão, mas fora criada na Inglaterra. Seus pais, meus avós maternos, eram médicos e pesquisadores japoneses que durante boa parte da vida viveram e trabalharam na Europa. Eles agora viviam uma aposentadoria tranquila em Okinawa, e eu nunca os via. Já meu pai era um típico all-american boy, formado em um college da Ivy League e herdeiro de um império de pesca. Os dois se conheceram durante o intercâmbio do meu pai na Inglaterra, e quando decidiram se casar, minha mãe se mudou com ele para os Estados Unidos. Eu nasci na América, mas fui com a minha mãe para o Japão quando meus pais se separaram. Foi lá que eu vivi os doze anos seguintes da minha vida, e era lá que eu considerava minha casa.

Afastei meus pensamentos e assenti com a cabeça através do espelho retrovisor. Eu estava sentado no banco de trás. Meu pai nunca se sentava na frente, ele dizia que não era correto, eu me lembrava. Eu imaginava que havia algum aspecto de manutenção de hierarquia nessa atitude, o que eu compreendia.

Eu sabia lidar bem com hierarquia e disciplina, eu era bom nisso. A St. Dominic Academy não parecia ser muito diferente das escolas que eu havia frequentado no Japão, talvez um pouco menos desafiadora do ponto de vista acadêmico, se a grade curricular deles era algum indicativo. Ou talvez esse fosse um pensamento pretensioso da minha parte.

Começava a anoitecer. Chovia bastante do lado de fora, o que não me permitia ver meus arredores com muita clareza. Eu conseguia enxergar somente um bocado de árvores por todos os lados, sinal de que estávamos entrando em uma área bastante isolada. Notei também quando atravessamos uma ponte, observando o lago abaixo de nós por alguns segundos. Eu havia lido que aquele era o Lake Myriam, o qual cercava toda a propriedade da escola, tornando-a uma espécie de pequena ilha. A ponte era elevada durante a noite, e só era abaixada pela manhã. Eles diziam que se tratava de uma tradição datada da fundação da instituição, mas eu imaginava que devia ser para conter pupilos que tentassem fugir às escondidas.

Assim que o carro terminou de atravessar a ponte, eu consegui ver parte da estrutura da escola despontando através das árvores que a cercavam. A St. Dominic Academy existia desde o século XVIII, fundada pela família Dumas. O castelo que servia de berço para a instituição era ainda mais antigo, datando da metade do século XVII, e considerado uma construção única nos Estados Unidos, por sua arquitetura e idade. Eu definitivamente havia feito meu dever de casa quanto à história da academia.

A estrutura colossal me deixou sem fôlego por alguns segundos. Conforme o carro se aproximava mais e mais, eu conseguia ver as imponentes paredes de pedras, torres, janelas, luzes. Tudo ali exibia um ar de tradição e secularidade. Aquela escola existia muito antes de mim, e continuaria a existir muito depois.

— Master River? Nós chegamos.

— Oh.

Pisquei algumas vezes e notei que o carro estava parado. Carlos abriu a porta e saiu, pedindo que eu esperasse. Ele voltou alguns segundos depois, carregando um guarda-chuva e a minha mala. Peguei os dois objetos e o agradeci, saindo do carro. A chuva caía mais fraca agora. Acenei com a cabeça e fechei a porta.

Caminhei uma pequena distância até a entrada da instituição, subindo dezenas de degraus de pedra. Olhei para trás e o carro já desaparecia no horizonte.

Havia alguns estudantes espalhados por ali, com livros em mãos ou conversando. Eles notaram quando eu cheguei, mas eu tentei não cruzar meu olhar com os olhares deles. Imediatamente me senti deslocado, já que todos os garotos utilizavam o uniforme da academia, enquanto eu vestia somente um terno preto e uma gravata branca. Não era uma diferença muito notável, porém, já que o uniforme também consistia de calça e paletós pretos e uma camisa branca. A gravata, porém, era bordô. E ainda havia uma espécie de broche em suas lapelas.

Fechei o guarda-chuva e suspirei. Não tive muito tempo para prestar atenção em outros detalhes. Assim que estiquei o braço para bater na imponente porta de madeira, ela se abriu.

Um homem elegante e baixinho estava diante de mim. Ele tinha a pele pálida, grandes olhos azuis, cabelo bem arrumado e uma barba alguns tons mais clara que o seu cabelo. Naquele momento o homem se vestia com um casaco de lã comprido, gravata, calça escura e um par de sapatos lustrosos. Eu sabia quem ele era.

— Headmaster Dumas. — Falei, instintivamente inclinando meu corpo como forma de reverência.

Me arrependi do meu gesto quase imediatamente, mas o homem sorriu fracamente e falou com um japonês errático:

— ようこそ. Você deve ser o mister Ito.

Fiquei tentado a respondê-lo em japonês, mas eu sabia que ele só estava tentando ser educado. Eu realmente não esperava que a primeira pessoa que fosse encontrar fosse ser o Headmaster da instituição, de modo que eu ainda estava um pouco desconcertado. Gaguejei um pouco quando respondi:

— Sim, senhor. Eu peço desculpas pelo atraso.

— Não há do que se desculpar. Os caminhos até a academia são difíceis durante o período de chuvas. Eu fico satisfeito que tenha chegado são e salvo, Ito—san. — O diretor falou, abrindo um sorriso sincero.

Assenti com a cabeça.

— Entre, nós temos muito a fazer e pouco tempo.

Headmaster Dumas me indicou a entrada com um gesto, saindo em seguida para chamar os garotos que estavam do lado de fora. Assim que todos nós entramos, os outros estudantes se espalharam pelos corredores. Eu percebi brevemente que a chuva do lado de fora havia ficado mais forte.

O interior da mansão era tão fascinante quanto o seu exterior. Tudo ali existia em tons escuros, com paredes de madeira cobertas por quadros e pinturas, um chão bem encerado coberto por um tapete dourado, um lustre imponente no centro e enormes escadarias que se dividiam no andar superior como as raízes de uma árvore.

— Eu caminho por estes corredores desde que aprendi a andar, e eles nunca deixam de me fascinar. — O diretor falou, seguindo com passos solenes através dos corredores. — Deixe a sua mala e guarda-chuva próximos das escadas, o mister Bloodworth os levará até o seu quarto.

Não questionei quem era o tal mister Bloodworth. Eu segui o diretor, tentando prestar atenção em tudo ao meu redor. Eu sabia que o Headmaster Leon Cassius Dumas fazia parte da família que havia fundado a escola, e que ele havia estudado ali quando não passava de um garoto. Eu sabia também que ele havia se tornado Headmaster muito recentemente, após o falecimento de seu tio, Dominic Leon Dumas, o qual carregava o mesmo nome do santo patrono da academia. Seu tio havia exercido aquela posição por cinquenta anos, e agora era a vez dele.

— Aqui. — O diretor indicou uma porta, abrindo-a e pedindo que eu entrasse.

O escritório do Headmaster era tão exuberante quanto o restante da instituição.

— Se me permite uma pergunta... — Arrisquei. O diretor assentiu com a cabeça, deixando a porta atrás de si aberta.

— A decoração da academia me parece reminiscente da era vitoriana. Eu me lembro de ter lido que a St. Dominic Academy foi fundada no século XVIII, correto? Por que então não uma decoração georgiana?

O diretor sorriu, me indicando uma cadeira e sentando-se do outro lado da mesa.

— Muito bem observado, mister Ito. Devemos isso a Myriam Dumas, a primeira, e até hoje única, Headmistress da nossa instituição. Foi ela quem modificou todo o interior do castelo, não só esteticamente, mas também em suas estruturas. Perspicaz como é, o senhor deve saber que o castelo foi construído um século antes da fundação da academia, de modo que ele precisava de algumas reformas. Foi Myriam também quem estabeleceu os Packs, sistema de classes que utilizamos até hoje. Digamos que a St. Dominic era uma antes de Myriam e se tornou outra completamente diferente depois dela.

— Oh, é interessante saber disso. — Eu respondi com sinceridade, assentindo com a cabeça. — É por isso que o nome dela foi dado ao lago que cerca a escola, suponho.

Headmaster Dumas concordou com a cabeça, satisfeito com as minhas observações. Agradeci a ele pelas respostas e em seguida fiquei em silêncio.

— Certo. — O diretor falou, checando uns papeis em sua mesa. — Você é um sophomore, correto? Segundo ano?

— はい. — Respondi instintivamente, me corrigindo em seguida. — Sim, senhor.

No Japão eu havia estudado até o final do Chūgakkō, que nos Estados Unidos equivalia a middle school. Apesar disso, a análise das grades curriculares da instituição de onde eu vinha e da St. Dominic mostraram que eu tinha um nível de estudo equivalente ao segundo (de quatro) ano do high school norte-americano.

— Você tem um manual? — O diretor perguntou, e eu concordei com a cabeça.

— Na minha mala.

— Muito bem. Então eu acho que não tenho muito pra você, mister Ito. — Headmaster Dumas abriu um sorriso simpático. — A sua grade horária vai estar em uma pasta na escrivaninha do seu quarto. Qualquer dúvida que o senhor tenha e não estiver contemplada em nosso manual, não se acanhe em me perguntar. As portas do meu escritório estão sempre abertas. Literal e figurativamente.

Assenti com a cabeça e pedi licença, me levantando em seguida.

— Oh. — Exclamei. — Eu acho que não sei qual é o meu quarto.

Assim que terminei minha frase, notei alguém passando correndo do lado de fora do escritório. O Headmaster Dumas assoviou e os passos imediatamente cessaram. Alguns segundos depois um garoto entrou através da porta, uma expressão facial de desapontamento no rosto. Ele tinha a pele, os cabelos e os olhos escuros, e dentes muito brancos. Ele era baixinho, da mesma altura que o nosso diretor. O menino usava apenas uma parte do uniforme, sem o paletó e a gravata, e com a camisa pra fora da calça.

— Mister Kalantar, justamente quem estávamos esperando. — O Headmaster falou em um tom falsamente gentil. — Mister Kalantar, este é o mister Ito. Ele é o seu novo roommate.

O garoto arregalou os olhos, e eu achei aquilo um pouco engraçado.

— Mas, senhor, aquele era o quarto do Matt. A cama do Matt!

O diretor assentiu com a cabeça, e eu percebi que ele ficou levemente irritado pela primeira vez.

— Se o senhor souber de algum outro quarto disponível para abrigar ao nosso novo pupilo, eu sou todo ouvidos.

O garoto concordou em silêncio e abaixou a cabeça.

— Se o senhor se voluntariar a ser o guia do mister Ito pela primeira semana dele aqui na escola, eu posso me esquecer da sua detenção por estar fora do seu quarto em um horário não permitido na noite de ontem.

— Sim, senhor. — O menino respondeu em um tom de voz meio forçado. — Será um prazer, Headmaster.

Headmaster sorriu e então nos encaminhou para fora do escritório.

— Por hoje, o senhor pode tomar o tempo que precisar para se estabelecer, mister Ito. O mister Kalantar pode lhe indicar os chuveiros, caso o senhor precise, e também a cozinha. A partir de amanhã, eu espero que cumpra com os horários estabelecidos para as aulas, refeições, banho e o toque de recolher. — O diretor ficou alguns segundos em silêncio, e então finalizou: — E arrume esse uniforme, Kalantar, por favor.

— Sim, senhor. — Nós dois respondemos ao mesmo tempo, o garoto apressando-se em colocar sua camisa dentro da calça.

Headmaster Dumas se despediu de nós e voltou a entrar em seu escritório, ainda sem fechar a porta. O garoto caminhou alguns passos pelo corredor e eu o segui. Ele então se virou e estendeu a mão para mim.

— Pujit.

— Oh. — Exclamei, apertando a mão dele. — Eu sou o River.

Pujit subitamente colocou a mão atrás da minha orelha, o que me deixou levemente sobressaltado. Ele riu diante da minha reação, e então eu vi uma moeda prateada entre os dedos dele. O garoto me entregou o objeto, ainda sorrindo, e falou:

— Muito prazer, River. O seu sotaque parece com o dos meus pais. Você é britânico?

Neguei com a cabeça, observando a moeda de maneira confusa.

— Eu nasci aqui nos Estados Unidos, mas eu fui criado no Japão. Eu aprendi o inglês com a minha mãe, e ela viveu a vida toda na Inglaterra, então deve ser por isso que o meu sotaque é assim.

— Isso é interessante. — O garoto respondeu, e ele não parecia estar sendo irônico.

— Bom truque. — Eu falei, finalmente, e Pujit acenou com a cabeça.

Eu segui Pujit através dos corredores. No caminho passamos por vários garotos realizando uma porção de atividades diferentes. Alguns liam livros, outros conversavam. As salas estavam com as portas quase todas abertas, e na maioria delas eu via garotos estudando, enquanto em algumas haviam pupilos realizando outras atividades, como tocando piano ou violino. Eles faziam algum barulho, mas nada diferente do que eu estava acostumado.

— O que são esses broches? — Eu perguntei, enquanto caminhávamos.

— Esses daqui? — Pujit me perguntou, retirando do bolso um broche com a figura de um cachorro na cor marrom.

Concordei com a cabeça. Ao ver o objeto de perto, porém, eu imediatamente fiz a associação com os Packs, sistema de classes sobre o qual eu havia lido no manual.

— Oh, eles representam as classes. — Eu falei retoricamente.

Pujit concordou, acrescentando:

— Como você pode ver, eu sou um simples stray. Você também vai ser, no começo. Mas você parece inteligente, acho que não vai precisar conviver com os outros vira-latas por muito tempo.

Eu não soube direito como reagir, mas tentei sorrir.

O sistema de classes na St. Dominic Academy funcionava de acordo com o desempenho dos alunos em diferentes áreas de avaliação. Se tratava de uma soma entre notas obtidas nas tarefas acadêmicas, atividades extracurriculares (como os esportes) e disciplina no geral. Existiam três classes: Dogs, a qual abrigava a maior parte dos alunos e compreendia aqueles com notas próximas ou um pouco abaixo da média; Foxes, na qual pertenciam os alunos com notas gerais acima da média, mas não suficientes para estarem entre os melhores da academia; e Wolves, a classe que abrigava os estudantes com os melhores desempenhos. Apenas 2% dos garotos da academia faziam parte dessa terceira classe.

Eu não sabia como a relação entre as classes funcionava por parte dos alunos, mas a hierarquia dentro da instituição era bastante clara. Wolves possuíam o primeiro lugar em tudo, como direito às melhores acomodações e prioridade em todos os aspectos da vida na academia. Depois deles, os Foxes gozavam de algum privilégio, embora reduzido. Por último estavam os Dogs, os quais recebiam um tratamento inferior, embora respeitoso, de qualquer forma. Era curioso que Pujit os chamasse de “stray”, vira-latas.

O manual da academia dizia que os Packs existiam para estimular os alunos a buscarem a excelência, mas eu tinha conhecimento suficiente para acreditar que se tratava simplesmente de um sistema de manutenção de ordem. Isolados, nós éramos como uma sociedade própria ali, e em toda sociedade existia aqueles mais e menos privilegiados. Nos dividir em grupos estimulava a rivalidade, prevenia a organização rebelde e permitia que fossemos mais facilmente controlados.

Pujit e eu subimos uma das escadas que davam até o segundo andar, com o garoto cumprimentando alguns outros estudantes pelo caminho. Então nós paramos na frente de uma porta. Do lado de fora havia uma placa marrom onde estava escrito: “Berger / Kalantar / Valentine”.

— É aqui. — O garoto falou, abrindo a porta.

O dormitório era como eu o imaginara. Ele era pequeno, e a decoração tinha mais ou menos o mesmo aspecto vitoriano do restante da academia. Ali havia uma cama de solteiro, um beliche, uma escrivaninha e uma cômoda. Todos os móveis eram feitos de uma madeira escura, e as roupas de cama tinha cores bordôs. Havia um abajur e um tapete, e do lado da cama de solteiro existia alguns pôsteres colados na parede, nos quais eu acabei não prestando muita atenção. Aquele era o primeiro ambiente com algum tom de pessoalidade em toda a escola.

— Bom, seja bem-vindo ao nosso canil. — Pujit disse, abrindo os braços.

Notei imediatamente que havia um garoto deitado na cama de cima do beliche, virado de costas para nós.

— Quem é ele? — Cochichei.

— Oh, esse é o Atticus. — Pujit respondeu em um tom de voz normal. — Ele quase não sai do quarto, fica dormindo a maior parte do tempo. Eu acho que nunca nem ouvi a voz dele. Mas não precisa se preocupar em falar baixo, o sono dele é pesado.

Eu concordei com a cabeça, embora tivesse achado aquela situação um pouco estranha. No Japão pessoas como o Atticus eram chamadas de hikikomori, mas eu não imaginava que existisse algo semelhante nos Estados Unidos. Especialmente em uma boarding school tão rígida quanto a St. Dominic. De qualquer forma, aquilo não era da minha conta.

— A cama de solteiro é minha, como você pode ver pelos pôsteres. Você fica com a cama de baixo do beliche. — Pujit falou, e eu concordei com a cabeça, agradecendo-o.

— Essa era a cama do tal Matthew, certo? — Eu perguntei, apontando para a cama onde eu dormiria. Notei que o Pujit fez uma expressão facial um pouco incomodada.

Imediatamente me senti envergonhado por estar sendo tão intrusivo. Tentei me desculpar:

— Me desculpe pela intromissão. Não é da minha conta.

O garoto concordou com a cabeça, mas daí o rosto dele relaxou um pouco.

— Não tem problema. Na verdade, eu acho melhor eu te contar, porque você vai ficar sabendo eventualmente de qualquer forma.

Franzi o cenho. Pedi licença e me sentei na cama de Pujit, e ele sentou-se na cadeira em frente a escrivaninha.

— O nome dele era Matthew Valentine, mas todo mundo o chamava de Matt. Como você com certeza viu, ainda não tiraram o nome dele da porta do quarto. Bom, o Matt... Morreu.

Aquilo me surpreendeu.

— Eu sinto muito.

— Oh, não, nós não éramos muito amigos. Eu gostava dele, ele era um cara legal, mas a gente não conversava muito. Bom, a questão é que o Matt não só morreu, ele se matou. No vestiário dos Dogs, ele se enforcou com uma gravata.

Não consegui conter minha reação, imediatamente pedindo desculpas para Pujit, em japonês mesmo. Flashbacks iam e voltavam da minha cabeça, o fluxo de pensamentos e lembranças me assolando por inteiro como uma poderosa onda. Por alguns segundos eu me senti sem ar, e eu acho que a minha aparência mudou visivelmente, já que, quando me dei conta, Pujit estava ajoelhado na minha frente chamando pelo meu nome.

— River? River? Tá tudo bem?

Levantei o rosto e suspirei longamente.

— Me desculpe, eu... Eu acho que a minha pressão caiu um pouco. — Menti.

Pujit concordou com a cabeça. Eu não achava que a minha mentira havia sido convincente, mas o garoto preferiu agir graciosamente, mudando de assunto:

— Bom, você quer comer alguma coisa? Com sal, pra sua pressão. — Pujit sugeriu.

Eu agradeci, inclinando a cabeça.

— Antes... Você sabe onde eu posso conseguir um uniforme? A minha transferência foi de última hora, então eu não tive tempo de encomendar um. Eu sei que a academia tem regras bem rígidas sobre o uso do uniforme, então...

— River, relaxa. — O Pujit falou, abrindo um sorriso. — Você é um puppy, todo mundo vai pegar leve com você no começo.

— Um filhotinho? — Perguntei, sem conseguir esconder um sorriso.

Pujit concordou com a cabeça.

— É como nós chamamos os novatos. Você sabe, cachorros, raposas, lobos... Todos eles têm filhotes.

Aquilo era adorável.

— Mas bom, respondendo a sua pergunta... Eu falo com o mister Bloodworth pra você, é ele quem costuma tirar as medidas dos garotos e encomendar os uniformes.

Agradeci, inclinando a cabeça mais uma vez. Eu precisava abandonar aquele costume, eu não estava mais no Japão.

— Uma última pergunta...

— Hey, você ouviu o Headmaster, a minha função aqui é responder as suas perguntas na primeira semana. Depois disso, eu vou cobrar.

Ri fracamente com aquela fala do garoto.

— Quem é o mister Bloodworth? O Headmaster Dumas o mencionou mais cedo também.

— O Bloodworth é a figura mais peculiar dessa escola, você vai ver... — Pujit respondeu em um tom de mistério. — Mas de maneira resumida, ele é o mordomo. É ele quem coordena todos os outros funcionários aqui da academia.

— Oh!

— Aos poucos você vai conhecer todo mundo. — O garoto falou. — Bom, você quer ou não quer comer?

— Eu não estou com fome agora, na verdade... Vocês já jantaram?

Pujit negou com a cabeça. Ele olhou o relógio na parede e disse:

— O jantar é daqui uma hora. Mas você ouviu o Headmaster, os horários ainda não se aplicam a você, filhotinho.

Eu ia acabar me acostumando com aquele apelido. Sorri.

— Eu consigo esperar até o jantar. Acho que vou me acomodar por aqui enquanto isso. Eu agradeço toda a sua gentileza, Pujit. E me desculpe pelo incômodo.

O garoto sorriu e levantou-se da cadeira.

— Fico feliz em ser útil. — Ele então se dirigiu até a porta. — Eu vou descer um pouco então, quero fazer umas coisas antes do jantar. Se você precisar de alguma coisa, fala com qualquer stray que encontrar, nós somos gente boa.

Eu concordei com a cabeça, e então Pujit falou, já no corredor:

— E se você encontrar algum Wolf por aí, não faça contato visual!

O garoto sumiu antes que eu pudesse compreender se ele estava brincando ou falando sério. Eu me levantei e fechei a porta.

Em cima da escrivaninha havia uma pasta marrom, assim como o Headmaster havia dito. Dentro dela havia alguns papeis detalhando a minha grade horária. Havia as matérias obrigatórias listadas na primeira página, com uma lista de atividades extracurriculares optativas em anexo. Após checar todas por alguns minutos, decidi que tentaria me inscrever em qualquer time de esporte que existisse naquele semestre. No Japão eu costumava jogar beisebol e futebol, e era mediano em ambos. Eu não sabia qual esporte a academia estava treinando naquele semestre, mas gostaria de fazer parte.

Minha mala estava colocada em cima da minha cama. Abri o zíper e comecei a retirar todas as roupas, colocando-as de maneira organizada em cima da cama. Me aproximei da cômoda e hesitei em abrir as gavetas. Eu devia ter perguntado ao Pujit qual delas estava vaga. Imaginei que eles ocupassem as primeiras, então fui direto para a última gaveta. Por sorte ela estava vazia, então coloquei todas as minhas roupas ali.

Assim que tinha organizado as roupas, separei meus objetos de higiene pessoal e os guardei em uma pequena gaveta que ficava acima da minha cabeça, na parte de baixo do beliche. Reuni meus materiais escolares e os coloquei em cima da escrivaninha, junto de alguns objetos que já estavam ali. Minha intenção era que os meus colegas de quarto compartilhassem dos materiais que eu havia trazido.

Restaram somente as fotos. Da minha okaasan, dos meus dois otouto-chan, de lugares que eu costumava visitar... Havia somente uma de Hikaru, rasgada, mas a qual eu havia conseguido consertar com uma fita adesiva transparente. Não fiquei tentado a vê-las por muito tempo. Juntei todas as fotografias e as coloquei dentro da pasta marrom, guardando-a debaixo da cama, assim como a mala.

Eu ainda estava um pouco molhado. Me senti mal por ter deixado a roupa de cama de Pujit úmida, então rapidamente a troquei com a roupa de cama que eu havia trazido. Felizmente elas eram da mesma cor, então eu não estava quebrando nenhum regulamento. Em seguida retirei meu paletó e depois minha camisa. Eu estava agachado procurando outra camisa na última gaveta da cômoda quando a porta se abriu.

Me virei na direção da porta e meu olhar se cruzou com o de um garoto. Ele tinha a pele acobreada, olhos escuros, sobrancelhas grossas e um cabelo escuro e liso que fazia ondas em sua cabeça. Em seu paletó havia o broche de uma raposa dourada. O garoto me encarou por vários segundos, e eu subitamente me senti envergonhado por estar sem camisa.

— Você deve ser o filhotinho sobre o qual estão falando, huh? — Ele disse, e eu não consegui definir o seu tom de voz.

Concordei com a cabeça e me virei de costas, colocando a minha camisa de volta. Me virei na direção do garoto, ainda sem abotoá-la, e estendi o braço:

— River.

O garoto me encarou por mais alguns segundos, seu olhar parecendo me inspecionar minuciosamente.

— Binky. — Ele respondeu, apertando minha mão com firmeza.

Aquele era um nome curioso.

— Eu vim buscar uma coisa, só vai levar uns segundos. — O tal Binky falou, me pedindo licença.

O garoto prostrou-se em frente a cômoda e abriu a gaveta em cima da minha. Eu não quis incomodá-lo, então me virei de costas e abotoei minha camisa enquanto ele procurava pelo que precisava. Depois de alguns segundos eu ouvi a gaveta sendo fechada e me virei mais uma vez.

Binky segurava uma caixinha de madeira em suas mãos. De relance eu consegui ver que na parte de fora da caixa alguém havia talhado: “M.V.”. Devia ser um objeto do tal Matthew, mas aquilo não era da minha conta.

Encarei o chão por alguns segundos, sentindo que Binky olhava pra mim. Ele se aproximou alguns passos e eu me senti desconfortável. Olhei para cima e o garoto piscou. Daí ele se virou de costas e abriu a porta.

— Nos vemos por aí... River.

E saiu.

Eu suspirei longamente. O perfume do garoto era forte demais, e o seu cheiro tinha ficado impregnado em todo o quarto. Espirrei duas vezes, tentando fazer o mínimo de barulho possível para não acordar o Atticus.

Aquela situação havia sido... Estranha.

Me sentei na minha cama e reli algumas partes do manual até que o relógio indicasse que era o horário da janta. Minha camisa e paletó já estavam secos naquele momento, então eu desisti de trocá-los. Atticus ainda dormia. Me levantei e segui até a porta, ajeitando a gravata em meu pescoço. Do lado de fora eu consegui ouvir um burburinho, com alguns garotos trocando frases ininteligíveis.

Girei a maçaneta e saí do quarto. Havia um grupo de estudantes reunidos no meio do corredor, embora eu não conseguisse ver o que estava chamando a atenção deles. Me aproximei aos poucos, tentando passar por eles para descer as escadas. Assim que consegui me aproximar o suficiente, notei o que tinha causado a comoção.

No meio do corredor estava um boneco articulado de madeira, pendurado no teto por uma gravata bordô. Havia um broche de cachorro preso ao peitoral dele, e em sua mão havia um papel em que se lia, em letras vermelhas:

O sangue dele está nas suas mãos, Headmaster.

 

 


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