As primeiras neves do que seria um rigoroso Inverno caíam lentamente, como que em câmara lenta. Os pequenos e cristalizados flocos de neve aterravam sobre um pequeno nariz húmido e preto, derretendo-se num piscar de olhos. No meio dos vales já cobertos de branco, algo sobressaía. Um lobo preto e ferido olhava fixamente para a ruínas de uma vila que outrora fora a sua casa. Um rasto leve, mas significativo de sangue formavam um caminho que o levavam até ao seu destino. Ele sabia que ia morrer ali. Uma última visão da sua casa junto com um nascer do sol era o que ele queria como as suas últimas memórias.

Ele queria morrer em paz. Ele não queria ser apenas mais um numa pilha imensa de corpos peludos e mutilados como acabara os da sua raça. Para ele isso não era digno de um lobo. Que fim cruel e cobarde seria esse? Ele, que lutara até ao seu último folego. Que lutara até os profundos golpes de lâmina por cima das pálpebras lhe impedissem a vista devido ao sangue que ainda escorre.

Uma gota de sangue cai sobre a neve. O manto branco deixou de ser branco e passou a camuflar-se com outra cor. Por baixos das suas rijas patas, o solo tinha outra tonalidade. As feridas começaram a doer um pouco mais. As pernas começaram a querer descair e a respiração já não era tão ofegante como á umas horas atrás.

Desta vez, o irmão mais velho dele não estava ali para curar. Não estava ali para lhe dar umas últimas lambidelas que tantas vezes o salvaram de feridas maiores. De dores maiores. Não lhe doía só o corpo, mas o espírito também. Já não se sentia parte da natureza. O seu objetivo tinha sido concretizado, mas a que custo?

Não muito longe dali, dois pares de olhos amarelados observavam-no pacientemente. Serenos como um mar num dia calmo. O lobo preto tomba na neve, depois de um longo suspiro que pôs fim á sua vida.

Segundos depois, um pelo acinzentado decide sair do meio das árvores quase nuas que o disfarçavam por pouco e caminha lentamente cambaleando até ao corpo do seu amigo estendido no chão. Para ser sincero, eles não eram apenas amigos. Tinham sido companheiros uma vida inteira. Ele deita-se ao lado dele e põe-se confortável. Ele quer que seja aqui também o seu descanso eterno. Sem feridas fatias no corpo, ele apenas reza para que a neve os cubra e que isso lhe provida uma morte mais fácil de digerir. Ambos os focinhos se tocam. Ele quer aproveitar enquanto ainda está quente. Agora só lhe resta fechar os olhos, e esperar…