Poeira, Recordação, Saudade escrita por André Tornado


Capítulo 3
Capítulo terceiro




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O pequeno problema mencionado por Ritchie era a sua amnésia seletiva. Ele lembrava-se de algumas coisas, como o seu nome, que idade tinha, onde morava, quem era a família, o que fazia, o que tinha feito na noite anterior num registo vago, mas tinha-se esquecido de detalhes importantes que ajudariam a completar com minúcia o relato do que sucedera na noite de temporal e por que motivo acabara na cama de uma pousada, a convalescer de um suposto acidente grave.

O xerife, a beber uma chávena de café quente, queixou-se de que não estava a perceber nada e Mark não quis acrescentar outros elementos, pois que já tinha contado tudo o que sabia e que constituía a verdade dos factos. Pelo menos, na sua perspetiva. E pelo desânimo do xerife, o rapaz tinha corroborado a sua versão.

No entanto, acontecia não existirem provas físicas que dariam mais consistência a ambos os relatos, dele e de Ritchie. Na manhã seguinte, quando Mark despertara, os destroços tinham desaparecido misteriosamente e por muito que ele tentasse explicar à tia que não tivera uma alucinação, que presenciara realmente um desastre de avião na noite da tempestade, era difícil que acreditassem nele pois não havia nada nas traseiras. Nem restos carbonizados de uma avioneta, nem corpos, nem sinal de incêndio ou de explosão.

Por causa da borrasca, a tia, o tio e os primos só tinham regressado de madrugada e foi quando ele contou que estava um rapaz a precisar de cuidados médicos num dos quartos. Tiveram de esperar o restabelecimento das linhas telefónicas para chamarem o médico e também chamaram o xerife.

Mark também não queria problemas, quando estava de partida para Mason City. A sua semana de detenção findara e ele só queria regressar a casa, naquele início de fevereiro.

Olhou para o calendário da cozinha, onde bebia um copo de leite. Era sexta-feira, três de fevereiro de 1989. Não teria perdido grande coisa das aulas e achava que teria aprendido a lição que a mãe lhe quisera dar. Entretanto, salvara alguém e só isso bastaria para lhe limpar o currículo. Ou não?

Os tios saíram com o xerife, muito provavelmente foram todos até à esquadra para assinar os depoimentos, já que tanto ele como o rapaz eram menores. Não sabia por andavam os primos. Os dois rapazes ficaram estranhos depois de conhecerem aquela história do misterioso desastre de aviação que resultara num sobrevivente. Parecia que o evitavam, como se ele se tivesse convertido num demónio. Ou pior, que tivesse invocado um ser do outro mundo e o tivesse alojado na sua casa. Portanto tivera de explicar que levaria o rapaz consigo para Mason City, quando fosse embora. Era responsabilidade sua e iria ajudá-lo. Assim evitava problemas adicionais, já que os primos queriam notoriamente livrar-se de Ritchie.

Escutou passos arrastados a se aproximarem da cozinha. Pensou no primo, ele costumava andar dessa maneira irritante, a raspar as solas dos sapatos pelo chão. Espreitou a porta da cozinha aberta e assustou-se quando viu o rapaz enquadrado pela moldura de madeira. Cuspiu o gole de leite que bebia. Limpou a boca com as costas da mão, pousou o copo no balcão lançando uma nuvem de salpicos e foi ter com ele.

— Ei, meu. O que fazes fora da cama?

O rapaz fez um esgar.

— Estás a sentir-te bem?

— Sim, estou – respondeu. – Não tenho nada partido, posso perfeitamente sair do quarto. Só estou ligeiramente zonzo, dói-me a cabeça. O médico disse que é normal estar desorientado. Apeteceu-me comer qualquer coisa…

Mark afastou uma cadeira da mesa e fez um gesto para que se sentasse. O rapaz obedeceu.

— Claro, claro. Eu também estaria com uma fome de cavalo se depois de ter tido um acidente grave só comesse bolachas. Queres que te faça uma lasanha? – propôs Mark.

— Tu falas de uma maneira engraçada…

— Falo?

— Uma lasanha? Vais cozinhar-me… uma lasanha?

— É muito fácil. Tiro-a do congelador e enfio-a no micro-ondas. Cinco minutos.

O rapaz hesitou.

— Eh… e que tal uma sandes? Uma sandes bastava.

— Como disseste que tinhas fome.

— Pode ser uma sandes?

— Sim, pode.

Mark abriu o frigorífico e retirou a manteiga, queijo, mortadela, um frasco de pickles e outro de azeitonas. Abriu um saco de pão, escolheu seis fatias e começou a compor a sandes em cima de um prato que foi buscar ao armário, por cima da sua cabeça. Com uma faca barrava um pouco de manteiga, depois juntava o queijo, a mortadela, rodelas de pepino em conserva, cobria tudo com uma fatia de pão e repetia o recheio. No fim, espetou um palito com uma azeitona. Na cozinha havia um rádio sintonizado numa rádio local e estava a passar a mesma música country do fim da manhã.

Deixou o prato em frente do rapaz que olhava para todos os lados com uma expressão exaurida, mas também intrigada.

— Obrigado – agradeceu.

— Queres acompanhar com leite? Eu estou a beber leite.

— Pode ser. Obrigado.

Mark encheu um segundo copo de leite e pousou-o junto ao prato. Puxou uma cadeira e sentou-se também. O rapaz observava a sandes com minúcia, a avaliar qual o melhor ângulo para agarrar nesta e dar a primeira dentada.

— Correu bem, com o xerife?

As mãos do rapaz travaram a caminho da sandes, dedos abertos.

— Hum? Sim… acho que correu. Contei-lhe tudo o que podia. A certa altura ele deixou de fazer perguntas e só me ficou a escutar.

— Isso foi bom.

— Não sei, sinceramente. – O rapaz baixou as mãos. Suspirou. – Há qualquer coisa que não bate certo.

Mark não queria rever essa suspeita, porque ele também tinha a impressão de que havia ali qualquer coisa que não batia muito certo. Bebeu um grande gole do seu leite, quebrando o contacto visual. Ele estava de partida. O fim da sua estadia em Clear Lake significava, efetivamente, o fim da sua estadia em Clear Lake e ponto final. Haveria de implorar à mãe, numa humilhação bastante patética, que não desejava regressar jamais à pousada da tia. Depois logo inventaria uma história qualquer de fantasmas…

Olhou para o rapaz que se decidira, por fim, a trincar a sandes.

Ritchie era o fantasma que o iria acompanhar a Mason City. Levaria esse lastro consigo e, com um ligeiro arrepio que lhe arrefeceu a boca do estômago, perguntou-se se seria uma boa ideia. Estava numa situação ambígua, todavia. Salvara o rapaz e isso significava aguentar com todas as consequências, mesmo com as mais assustadoras. Continuava a ter de salvá-lo, agora da animosidade dos primos e a da indiferença polida dos tios. Talvez da desconfiança em larga escala daquela cidadezinha, que não o iria acolher muito bem quando a história do misterioso desastre de avião de espalhasse. E ele também tinha medo do rapaz por causa desses mistérios, um medo dos diabos.

Apontou timidamente para a cara dele.

— Desculpa lá por isso, meu.

— Hum? Do que é que estás a falar? – indagou o rapaz, com as bochechas cheias de comida.

— Desse arranhão na cara. Fui eu que to fiz, quando andei a arrastar-te pela neve. Se não fosse pela minha falta de cuidado, terias mesmo saído daquele avião… sem um ferimento! Uma coisa bem baril, não concordas?

Baril?

, meu. Uma coisa fixe.

— Do tipo… porreiro?

… isso. Onde moras, Ritchie?

O rapaz mastigou o que tinha na boca, engoliu e respondeu.

— Los Angeles, na Califórnia.

Mark arregalou os olhos.

— A sério, meu? Estás muito longe de casa… pensava que eras daqui, da zona.

— Se fosse, não andaria a viajar de avião.

— Falaste num autocarro também. Podias ser de outra cidade do Iowa ou coisa assim.

— Não sou daqui. – E soou ressentido.

Mark não queria que se zangassem. Era bastante estranho zangar-se com o rapaz que tinha salvado. Fizera uma boa ação e não a queria macular com outra ação, mais mesquinha e maldosa.

— Eu sou – disse. – Vivo em Mason City. Não é esta parvónia de Clear Lake, é uma cidade à maneira. Temos um centro comercial e tudo. Com três salas de cinema.

— O que é isso?

— Não sabes o que é um cinema?

— Não… um centro comercial. O que é isso?

— Vocês não têm um centro comercial onde moras? E onde moras, afinal? Los Angeles é bastante grande.

— Moro em Pacoima, na região do vale de São Fernando.

— Oh… bem me pareceu que eras… bem, tens sangue latino, não tens?

Uma gargalhada divertida escapou-se da garganta do rapaz, que deitou a cabeça para trás. Depois agarrou-se à testa, muito provavelmente porque lhe doeu. Disse:

— Se sou um chico? Pois claro que sou um chico! O meu nome completo é Richard Steven Valenzuela. Ritchie Valens é o meu nome artístico. Sou um artista, lembra-te… Tenho muito orgulho nas minhas raízes mexicanas, portanto não me ofendes nada com essa pergunta… Mark.

— Ah… um artista. Que música tocas, Ritchie?

— Toco a única música que vale a pena tocar. Rock ‘n Roll!

Mark assentiu. Levantou um punho, esticou os dedos indicador e mindinho, a imitar uns cornos, no típico sinal associado à música pesada, rugiu deitando a língua de fora:

Oh, yeah!

O rapaz ficou chocado com o gesto, mas depois riu-se, atrapalhado.

— Tu és mesmo estranho.

— Tu bates-me nesse campeonato, meu. Afinal, sobreviveste à queda de um avião. Isso é que é uma história para se contar. Vais ser um herói, lá em Pacoima.

O rapaz empalideceu e Mark percebeu que continuava a pisar em falso. De momento, não era motivo de vaidade ter essa linha no currículo. Tinham morrido pessoas. Fez a proposta, para corrigir o que tinha dito:

— Ei, meu. Vou-me embora amanhã, volto para Mason City. E que tal vires comigo? A não ser que queiras ficar na casa da minha tia. Estamos numa pousada e este lugar costuma receber hóspedes. – Pensou que não seria uma boa ideia, ele iria ser o freak da cidade.

— Ir contigo…

— Sim, se não te importares, claro. – Encolheu os ombros, para soar mais casual. – Se já te sentes restabelecido e aparentemente não tens nenhuma mazela visível, se o médico te considera apto para fazeres a tua vida e tal, o que te prende a Clear Lake? Nem sequer moras aqui.

— Nem sequer moro no Iowa. Sou da Califórnia.

— Estás bastante longe de casa, é verdade. Os meus pais podem ajudar-te a regressar a casa. Eu poderia ir contigo até à Califórnia. Nunca fui à Califórnia.

— Estás a usar-me para ir visitar a Califórnia?

— Não, claro que não! – exclamou Mark. Baixou os olhos. – Se calhar, estou… Não costumo viajar muito.

— Tens dezassete anos.

— Tu também e estás aqui.

— A minha profissão assim o obriga, Mark. Sou contratado para dar espetáculos e venho tocar onde me pagam para o fazer.

— Ah, sim… claro. Bem, descontando que te estou a usar para fazer uma viagem entre estados, as minhas intenções são sinceras, acredites ou não. Estou a pensar em ti. A tua família deve estar preocupada contigo. – E não queria que ele ficasse deprimido por ser alguém esquisito numa cidadezinha esquecida da América profunda. Estaria a pensar no bem-estar de Ritchie, efetivamente e sentiu-se orgulhoso com o feito inédito. Nunca tinha protegido ninguém na sua vida. Também nunca tinha salvado ninguém…

— A minha família? – Ritchie pestanejou.

— Terás família, suponho…

— Eh… Sim, claro que sim. Tenho a minha mãe e o meu irmão, são a minha família mais próxima. E tenho uma namorada…

— Eles devem pensar que morreste ou assim… Imagina que ouviram a notícia sobre o acidente de avião. Eles sabem quem ia no avião, certo?

— Devia avisá-los… mas não me recordo do número de telefone. Estou com falta de memória.

— Ah, a tal amnésia! O médico comentou com a minha tia e depois ouvi o xerife dizer alguma coisa a respeito disso também. Ele estava um pouco frustrado com o que lhe disseste no depoimento… Estava ainda mais frustrado do que quando foi comigo.

O rapaz susteve a respiração, mordeu os lábios.

— Ele insistia nas perguntas, mas eu repetia a minha resposta e ele ficou um pouco… irritado. Depois pediu-me para contar tudo, conforme me lembrava e não me fez mais perguntas.

—  Foi igual quando lhe contei sobre ontem à noite. Escuta lá, Ritchie… o que achas que aconteceu? – Mark arrependeu-se de ter soado tão enfático. Emendou, de imediato, agitando a mão: – Se não quiseres falar, vou perceber…

Mas Ritchie falou.

— Estivemos no espetáculo. Eu, o Richardson e o Holly. Fomos para Mason City, a tua cidade… Tínhamos de nos fazer à estrada e o autocarro tinha o sistema de aquecimento avariado. Foi fretado um avião. Nevava bastante. Tivemos de tirar à sorte pois só havia espaço para três passageiros para além do piloto e eu tive… a sorte de ganhar o meu lugar. Foi o guitarrista do Holly que perdeu comigo, o Allsup. O baixista do Holly, o Jennings, já tinha cedido o seu lugar ao Richardson que estava doente com gripe. O avião descolou, o nosso destino era Fargo, no Dacota do Norte. Passado pouco tempo… passado pouco tempo, começou a perder altitude. Desmaiei com o embate e quando despertei estava muito frio e continuava de noite. Estava na rua, deitado na neve. Ao voltar a despertar, estava numa cama e estava nesta pousada. Disseram-me que tinha sido salvo e que mais ninguém sobrevivera. Foi isso o que aconteceu.

— Dizes que estiveste num espetáculo… onde?

— Aqui mesmo, em Clear Lake. Tocámos até perto da meia-noite.

— Não me lembro de ter acontecido algum espetáculo aqui, no dia dois de fevereiro.

— Não foste convidado e agora dizes que não aconteceu – zombou Ritchie.

— Ei, meu… estou a falar a sério. Ninguém se arrisca a fazer bailes e outras festas numa quinta-feira. É sempre aos fins-de-semana.

— Não foi quinta-feira, foi segunda-feira!

— Numa segunda-feira muito menos. – Mark experimentou um calafrio. – Meu, estás enganado. Hoje é sexta-feira, dia três de fevereiro. Ontem foi quinta-feira, dia dois.

Ritchie riu-se sem alegria.

— Tenho a certeza que ontem foi segunda-feira. Bati com a cabeça, estou ainda um pouco confuso, sem memória, mas sei que dia é hoje.

Uma pausa em que Mark ficou de boca aberta, a digerir os dados novos.

Fez outra pergunta:

— Ritchie, com quem tocaste ontem à noite? Nesse tal espetáculo?

— Com o Holly e o Richardson.

— E eles tocam Rock ‘n Roll… como tu?

— Claro! É a única música que vale a pena tocar, já te disse.

— Eles têm uma banda ou…?

— São eles, Mark. Os autênticos e únicos. Toquei com eles, sim. Com o Buddy Holly e com o J.P. Richardson, o nome verdadeiro do The Big Bopper. – Esticou o braço e apontou para o rádio. – Está a tocar uma canção do Holly, agora mesmo. Escuta!

— O quê?

Com um segundo calafrio Mark olhou para o rádio. Havia um medo estranho que se insinuava, como uma língua gelada que ia passando pela sua pele, numa faixa tão estreita que lhe espicaçava todos os sentidos. Levantou-se, rodou o botão para aumentar o volume e escutou uma daquelas canções velhas que a Carol, a amiga que fizera ali em Clear Lake, adorava e que tinha compiladas em cassetes, que gravara dos seus discos de vinil que ela colecionava e estimava com um fervor quase religioso.

Não sabia identificar a canção e olhou para o rapaz.

— Chama-se “Rave On” – explicou Ritchie. – De certeza que conheces.

— Sim, acho que sim… oh, merda… tu dizes que te chamas…?

— Ritchie Valens.

Mark levou as mãos à cabeça.

Lembrou-se do nome, num repente de iluminação que em vez de lhe encher o cérebro de luz, deixou-o mergulhado numa sombra densa. Ritchie Valens também fazia parte da coleção dos artistas antigos da Carol.


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Notas finais do capítulo

Muito obrigado pela leitura!