A Égide de Athena escrita por Joy Black


Capítulo 4
4. Treinamento




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Parecia que Sophia havia entrado no túnel do tempo. Caminhando logo atrás de Galahad, o cavaleiro de Capricórnio, olhava boquiaberta para a vila de Rodorio. As pessoas também a olhavam, estranhando suas roupas do mundo exterior, enquanto se vestiam como se vivessem séculos atrás. Todavia, o que mais impressionou Sophia, não foram as vestimentas, nem as casas de madeiras, nem todas as coisas antigas que havia na vila. Estava abismada pelo que não havia: não havia nenhum carro ou motociclo, nenhum painel holográfico, nem letreiros em neon, nada daquilo. E o ar… O ar era tão puro que parecia que ela estava respirando pela primeira vez. E para completar, não viu uma única pessoa usando membro biônico. Nenhuma.

Era realmente um outro mundo.

— Caralho! – exclamou a menina.

Galahad parou e se virou para Sophia.

— Sophia, acho que devemos conversar sobre seu vocabulário. – falou pacientemente.

— Por quê? – quis saber.

— Você será uma amazona de Athena. Deve se comportar como uma. E isso inclui não ter um linguajar… - ele hesitou, antes de completar – Do mundo exterior. Algumas pessoas podem se sentir ofendidas com a forma que você fala.

Sophia o encarou, com a testa franzida.

— Vamos evitar, certo? – insistiu o cavaleiro.

Se fosse outra pessoa, Sophia xingaria e diria que fazia o que queria e que se as pessoas ficassem ofendidas, o problema era delas. Porém, gostava de Galahad. Gostara dele desde que o vira no dia anterior. Ele emanava tanta calma, tanta tranquilidade, que ela apenas deu de ombros e falou, num muxoxo:

— Vou tentar…

Galahad sorriu, satisfeito.

— Já é um começo. Vamos.

A Academia de Aspirantes era logo após a vila. Era um prédio no mesmo estilo antigo das casas de Rodorio, só que bem maior, com dois andares e muitas janelas. Sophia estremeceu, pois lhe lembrou o abrigo de crianças para onde fora enviada, inúmeras vezes, e de onde sempre fugira. Não gostou da sensação e parou de andar abruptamente. Galahad também parou e olhou para trás.

— Algum problema? – perguntou.

Sophia balançou a cabeça em negativa e voltaram a andar.

Ao se aproximarem, Sophia viu vários jovens treinando em frente ao casarão. Alguns eram de sua idade, outros eram mais velhos e havia outros bem mais jovens. Ao verem Galahad, eles pararam de treinar e se aproximaram, baixando a cabeça em sinal de respeito.

— Senhor Galahad! – disse aquele que parecia o mais velho deles – É uma honra revê-lo!

— Obrigado, meu jovem, mas não parem o treinamento por minha causa. – pediu o cavaleiro – Vim apenas para trazer a jovem Sophia para nossa academia.

Todos os olhares se voltaram para Sophia, que ficou constrangida. Imaginava como parecia deslocada, com sua roupa surrada e tênis verdes desbotados, ao lado de Galahad, em sua reluzente armadura de ouro.

— Voltem a treinar, crianças. – disse ele sorrindo – Venha, Sophia.

Sophia o seguiu, satisfeita por sair da vista de todos.

O prédio era bem organizado e Sophia ficou olhando para todos os lados, admirada. Assim que entravam, viu um salão imenso, com uma lareira no centro e diversas cadeiras, grandes e pequenas, além de poltronas e sofás. Após esse salão, uma escada igualmente grande, de degraus de madeira, levava para o próximo andar.

— Uau!!! – exclamou, estupefata.

— Esse é o salão social. – foi explicando Galahad – Deixamos os aspirantes de socializarem depois dos treinos. Confiar em seus companheiros é essencial para um defensor de Athena. A cozinha e o refeitório são para lá. – falou apontando para a parte de trás – Ali, - disse, apontando para a esquerda – está a biblioteca e a sala de estudos.

— Eu tenho que estudar aqui?! – perguntou, horrorizada.

Galahad gargalhou, antes de responder:

— Sim, mas o estudo não é como no mundo exterior. Nossa sala de estudos é para quem quiser ler e ficar um pouco sozinho com seus pensamentos. E estudar não precisa ser apenas ler e escrever ou fazer contas. Você pode meditar e estudar a si mesmo. Todo conhecimento é válido.

— Aí eu gostei! – animou-se ela.

— Que bom. Venha, vamos ao meu escritório.

O escritório de Galahad era imenso, com grandes janelas de vidro, que deixavam a luz entrar. Uma mesa imponente de madeira, que tinha aparência de muito antiga, estava no centro do cômodo. Havia umas coisas amareladas e rugosas em cima da mesa, Sophia percebeu abismada, que eram pergaminhos. Quem ainda usava pergaminhos? Galahad, pelo visto. Sophia só os reconheceu porque já vira imagens deles em filmes. Havia uma pena dentro de um tinteiro e alguns enfeites de mármore, como uma imagem de Athena. Mas o que mais a impressionou foram as estantes cheias de livro. Muitos e muitos livros. Estantes cheias que iam do chão ao teto daqueles objetos que não existiam no mundo exterior. Livros físicos só em filmes. As pessoas no século 22 liam de outras formas.

— Todos esses livros são seus? – perguntou abismada.

— São sim. – disse com orgulho – Temos muito mais na biblioteca, mas esses aqui são os que tenho mais carinho. Você pode pegar um, se quiser. Não precisa pedir, apenas peço que cuide bem do livro.

Sophia se aproximou da estante e os encarou.

— Como se usa isso?

Galahad não estranhou a pergunta. Já ouvira muitas vezes.

— Você primeiro vê a lombada. – ele passou o dedo na lombada do livro – Veja que há algo escrito nele. Normalmente é o título e o autor. Você sabe ler?

— Sei. – e olhando o título, leu – “Ilíada de Homero”. Conheço essa história. Pensei que fosse um filme!

— Muitos filmes são baseados em livros. Bem, depois que você lê o título, se você se interessar, você o retira assim. – e retirou o livro com cuidado da estante – E você o abre e lê passando as páginas. – Galahad folheou o livro e mostrou como se lia um livro para a menina. – Sei que deve ser estranho para você. Os livros não existem mais lá fora há uns cem anos.

— Lá fora? – estranhou.

— É como chamamos o mundo exterior. – e estendeu o livro a Sophia – É uma leitura complexa, mas muito boa. Se quiser, pode levar.

Sophia pensou um pouco e pegou o livro.

— Obrigada…Você deve ser muito inteligente. – elogiou a menina.

— Gosto de pensar que eu sou. - ele riu – Obrigado, Sophia. – agradeceu – Venha, sente-se, quero fazer algumas perguntas a você.

Apesar de ser muito jovem e não entender por que gostara de Galahad, Sophia podia perceber a aura de tranquilidade que o envolvia. Ela descobrira o que todos que conviviam com o cavaleiro de Capricórnio sabiam: sua paciência e o empenho que tinha pelos jovens cavaleiros o fazia ser muito querido. Ele emanava estabilidade e confiança. Trabalhava exaustivamente com os aspirantes, explorando seus potenciais e acreditando em suas habilidades. Galahad, mais que ninguém, sabia lidar com crianças que foram maltratadas, abusadas e sofreram muito no mundo exterior antes de ir ao Santuário. E, em um mundo em colapso, praticamente todas crianças chegavam ali quebradas.

Havia um motivo para tanto empenho. O mestre de Galahad lhe dissera, certa vez, que durante o pior período do cataclismo da humanidade, quase não havia aspirantes porque quase acabaram-se as crianças no mundo. Pensar o mundo sem defensores de Athena e da humanidade o deixara horrorizado. Por isso, o atual guardião da décima constelação se esforçava para que o brilho da juventude nunca se apagasse.

— Tem um monte de crianças aqui. – disse Sophia sentando-se na cadeira em frente à mesa de Galahad, como se soubesse o que se passava na alma do cavaleiro.

— Sim, tem. – concordou enquanto se sentava em sua cadeira.

— São todos da vila?

— Não. Na verdade, poucas crianças da vila entram para a academia.

— Sério? – surpreendeu-se Sophia.

— Sim. Não que seja proibido, ou algo assim. – explicou – Todos são encorajados a tornar-se cavaleiros e amazonas. Mas, penso eu, que como as crianças da vila sabem como é difícil e perigosa a vida de um defensor de Athena, prefiram uma vida tranquila, servindo nossa deusa de outra forma. Afinal, são eles quem cultivam nossa comida, pastoreiam os animais e fazem tudo que precisamos. O trabalho deles permite que façamos o nosso. – havia um profundo respeito na fala do cavaleiro pelos aldeões.

— E de onde vem todos os aspirantes?

— De todo o mundo. Cavaleiros e amazonas sempre são mandados em missões ao redor do mundo e, às vezes, topamos com crianças com aptidões. E os trazemos. Como trouxemos você. – e sorriu – Quer um biscoito? – perguntou apontando para um pote à sua frente.

Sophia prontamente pegou um biscoito do pote, enquanto Galahad puxava um pergaminho, pegava sua caneta-tinteiro de pena e começou a perguntas:

— Nome?

— Sophia.

— Sophia de quê?

— Só Sophia.

Galahad assentiu e fez uma anotação ao lado do nome dela, mas Sophia não conseguiu ler o que era.

— Onde estão seus pais? - quis saber.

— Mortos. Pelo menos foi o que disseram a mim.

Galahad parou a escrita e a encarou.

— Sinto muito. Você deve sentir muita falta deles.

Sophia deu de ombros.

— Não lembro deles.

As primeiras lembranças de Sophia eram em um hospital. Lhe falaram que ela e seus pais sofreram um acidente e que apenas ela sobrevivera. Depois, fora mandada para um orfanato, pela primeira vez. Era o inferno na terra. Mesmo sendo tão jovem, Sophia desejou, mais de uma vez, ter morrido junto com seus pais.

Como órfão, Galahad sabia como Sophia se sentia. Na verdade, todos ali sabiam. Não havia um único aspirante que tinha pais vivos.

— Local de nascimento? - ele continuou o questionamento sem adentrar no assunto dos pais dela.

— Athenas, até onde eu saiba.

Mais uma anotação.

— Você sabe sua data de nascimento?

— Sei. Seis de novembro de 2186. – e diante do olhar surpreso de Galahad, ela explicou – Sei por que em uma das vezes em que o governo tentou me pôr no orfanato, tinha um documento com meu nome e essa data. Tinha um “H.” depois de meu nome, mas não sei o que significa.

— E como você fugia, se as crianças normalmente recebem um chip nessas instituições? – perguntou o cavaleiro, interessado.

— Eles sempre me encontravam, até eu descobrir sobre o chip. Aí, arranquei com uma gilete na minha última fuga. – e segurou o cabelo para mostrar uma cicatriz no pescoço, onde um chip fora instalado nela.

O cavaleiro encarou a cicatriz antes de anotar mais alguma coisa. Sophia soltou o cabelo e tentou ler o papel mais uma vez, mas a mão de Galahad cobria o documento.

— Já sei que você sabe ler e escrever. Aprendeu quando estava no orfanato?

— Não. Uma mendiga me ensinou numa das vezes que eu fugi. Achei que ela gostasse de mim, mas depois ela tentou me vender, aí fugi dela.

Não foi o que Sophia disse que deixou Galahad triste; já ouvira histórias tão ou mais tristes quanto aquela. Fora a forma como a menina falara. Como se fosse normal as pessoas venderem crianças. Como se não esperasse outra coisa da humanidade. Como alguém que já perdera toda a esperança.

— Terminamos aqui, Sophia. – Galahad pousou a caneta no tinteiro, pegou as anotações, foi até uma estante, tirou uma pasta com a letra “S” e guardou a ficha lá, depois recolocou a pasta no local – Venha, vou te apresentar duas pessoas.

Caminharam até a parte de trás do prédio. Duas amazonas orientavam os aspirantes mais jovens, que treinavam batendo em bonecos de madeira. Como os outros aspirantes, eles também pararam de treinar quando o cavaleiro de Capricórnio chegara. Mas aqueles pequeninos pareciam morrer de vergonha para falar algo para ele.

As duas amazonas eram bem jovens, reparou Sophia. Muito mais do que o cavaleiro de Capricórnio. Ao lado de Galahad, elas pareciam suas filhas. Kaiola era mais alta, de cabelos negros longos, presos em uma trança. Seus olhos eram cor de mel, como sua pele, e ela olhava com curiosidade para Sophia. Claire era loira, cabelos bem curtos e a usava uma bandana vermelha ao redor da cabeça. Os olhos da amazona de águia eram de um azul límpido, e sua expressão era séria e compenetrada. Sophia percebeu que as duas amazonas encaravam Galahad com respeito e admiração, da mesma forma que os aspirantes.

— Sophia, essas são as amazonas de prata Kaiola de Cobra e Claire de Águia. – apresentou - Elas são as monitoras daqui.

— Achei que fosse você quem mandasse aqui. – falou Sophia olhando para Galahad.

— Ah, ele manda. – disse Kaiola, sorrindo e cruzando os braços – Não há nada que aconteça aqui sem passar pelo crivo dele. – ela falava em tom divertido e sorria, mas Sophia entendeu que não era brincadeira.

Galahad não desmentiu Kaiola, o que reforçou sua fala. O cavaleiro apenas disse:

— Kaiola, Claire, essa é Sophia, nossa nova aspirante.

— Oi. – disse Sophia simplesmente.

— Seja bem-vinda, Sophia. – disse Claire educadamente.

— É bom ter sangue novo por aqui. – complementou Kaiola animada – Está preparada para o sofrimento interminável e assolador?

— Como é? – assustou-se Sophia.

— Kaiola! – reclamou Claire.

Galahad apenas riu.

— Vou deixá-la com vocês. – disse para as amazonas – Preciso resolver algumas pendências. Voltarei assim que possível. – e olhando para Sophia, desejou – Boa sorte, cara criança.

Galahad acenou com a cabeça para as amazonas e saiu, a capa branca esvoaçando ao redor de sua armadura de ouro, que reluzia ao sol da manhã. Houve um momento de respeitoso silêncio à saída do cavaleiro.

— Atenção, todos vocês. – disse Claire com uma voz enérgica para os mais jovens – Vão para a arena que já os encontraremos lá. – obedientemente, as crianças saíram. Claire então se voltou para a recém-chegada – Venha Sophia. Vou lhe mostrar o alojamento. Kaiola, pode pegar o conjunto para ela?

A amazona de Cobra fez que sim e saiu.

O alojamento ficava no andar de cima do prédio e ocupava quase toda sua extensão. Eram diversas camas enfileiradas, todas arrumadas, apesar de Sophia ter visto uma ou duas roupas enfiadas embaixo da cama. As camas eram separadas por pequenos criados-mudos, onde os ocupantes do quarto colocavam livros, pergaminhos, e diversos outros objetos. A menina acompanhou Claire, caminhando pelo corredor que havia entre as fileiras de cama, na direção dos fundos do aposento.

— Quantos aspirantes têm aqui? – quis saber a menina.

— Com você, trinta e dois. – respondeu Claire – Mas nem todos se tornarão cavaleiros e amazonas.

— É, o Mestre me falou algo assim. – relembrou Sophia – Depende da habilidade de cada um.

Claire parou de repente de andar e a encarou.

— Mestre? O Grande Mestre? – perguntou.

— Sim. Por quê?

“Então é verdade.”, pensou a amazona. Aquilo seria muito interessante. Que tipo de aspirante aquela menina seria?

— Não é nada. – desconversou a amazona de Águia – Venha, você ficará aqui.

A cama designada para Sophia era a última do cômodo, na fileira da esquerda e embaixo de uma grande janela.

— Essa será sua cama. Você deve mantê-la arrumada e limpa. Não permitimos comida aqui, então não vai ser difícil deixá-la limpa. O banheiro fica no final do corredor. A água quente é limitada, então, se não quiser tomar banho frio, acorde cedo.

Pouco tempo depois, Kaiola chegou trazendo algumas roupas. Sophia recebeu dois conjuntos de cama, duas roupas de treino idênticas às que vira os aspirantes usar, uma sandália e uma roupa de dormir (que parecia uma roupa de freira, só que branca e sem o gorro).

— A lavandeira é lá fora. – avisou Kaiola – É sua responsabilidade manter seu enxoval limpo.

— Tem um baú embaixo da cama. Você pode guardar suas roupas nele. – complementou Claire.

Sophia analisou as roupas que estavam em seus braços.

— Vocês sempre têm roupa para todos que chegam? – perguntou, curiosa.

— Reaproveitamos dos que morrem. – disse Kaiola seriamente.

Sophia encarou a roupa, assustada, e a jogou em cima da cama, como se os tecidos fossem mordê-la.

— Kaiola! – repreendeu Claire – Não a assuste! – e olhando para Sophia, disse – Não é isso. Temos roupas porque sempre tem alguém que desiste. E quando desistem, devem deixar suas coisas. Gal também sempre avisa quando trará aspirantes e quais seus tamanhos. É apenas organização.

— Ah...- ainda assim, Sophia hesitou um pouco antes de pegar novamente a roupa.

— Se troque e nos encontre lá embaixo. – avisou Kaiola antes de sair, junto com Claire.

Sophia foi deixada sozinha, se jogou na cama e olhou para o teto. Aquele local parecia um pouco com o orfanato, ao qual fora mandada há tanto tempo, mas, ao mesmo tempo, era completamente diferente. O orfanato era mais um depósito de crianças e ali, no Santuário, ela tinha um propósito: tornar-se uma amazona. E pretendia levar a cabo seu intento.

Sentiu vontade de conversar com Athena. Contar o que estava achando dali até aquele momento. Assim que pudesse, iria visitá-la. Se perguntou o que Athena fazia naquele momento. Será que estaria brincando com seu Pégaso gigante ou fazendo planos para salvar o planeta? Não importava, desde que ela estivesse bem. E, se quisesse protegê-la, não poderia ficar ali pensando bobagem. Pulou da cama e se trocou.

Quando saíra do templo de Athena com Galahad naquele dia mais cedo, recebera uma mochila de pano com a mesma roupa grega antiga que usara lá e o Pégaso de pelúcia. Acariciou o presente de Athena lhe dera antes de colocá-lo no baú, junto com sua roupa do mundo “lá fora”. Pôs o livro que Galahad lhe emprestara na cabeceira da cama; o leria mais tarde. Percebeu que, na cabeceira da cama, havia um pergaminho com as regras do local, espetado com um alfinete. Deu uma lida rápida nelas. Não era muita coisa, eram mais regras de convivência: não podia pegar nada de outro aspirante sem permissão, não podia lutar se não fosse em treinamento, nenhuma forma de discriminação seria aceita… Quando leu tudo, empurrou o baú para baixo da cama e foi em busca das amazonas. Estava ansiosa para começar seu treinamento. Muito ansiosa.

Encontrou as amazonas no campo de treinamento em frente ao alojamento, orientando e observando os aspirantes. Sophia não percebera quando chegara, mas o local parecia uma miniarena, em formato circular, onde o local das lutas era mais baixo, no centro, e circundado por bancos de pedras. Se aproximou e viu outros aprendizes sentados, assistindo uma luta. Sophia nunca estivera na companhia de tantas crianças e sentiu-se desconfortável. Por isso, sentou-se um pouco mais afastada e começou a prestar atenção na luta que se desenrolava no centro da miniarena.

Dois garotos lutavam sobre os olhares atentos dos outros aspirantes. Um deles apanhava bastante, enquanto o outro parecia ter prazer em espancá-lo. Sophia o detestou na mesma hora.

“Esse cara vai ser um cavaleiro? Que idiota!”, pensou.

— Ele é tão forte! – comentou uma menina perto dela.

— É mesmo! – exclamou um menino – Deve ser de família! O irmão dele é pupilo de um cavaleiro de ouro!

“Ele é apenas um idiota.” pensou Sophia.

Quando o rapaz que estava apanhando caiu no chão, o garoto idiota partiu para cima, mas a voz de Claire ressoou:

— Pare, Kosuke. Você o derrotou.

O rapaz ficou um pouco frustrado, mas parou, com um sorriso presunçoso na face.

— Vamos para os próximos. – anunciou a outra amazona – Venham vocês dois. – e apontou para dois recrutas.

Várias lutas se seguiram e Sophia pode ver como os aspirantes lutavam. Percebeu que os estilos de luta eram bem diferentes. Havia aqueles mais inseguros, aqueles mais violentos e aqueles que gostavam de ser o centro das atenções.

— Ei, você.

Sophia demorou um pouco para perceber que estavam falando com ela. Levantou a cabeça e viu Kosuke, encarando-a.

— Você é a novata, não é?

— É o que dizem. – respondeu.

Kosuke a encarou demoradamente. Várias crianças começaram a prestar atenção neles e esqueceram a luta que se desenrolava lá embaixo.

— Você só precisa saber quem manda aqui. – avisou ele – Saiba isso e nada vai acontecer com você.

— Quem manda aqui é Galahad, o cavaleiro de Capricórnio. – respondeu Sophia calmamente.

Kosuke deu uma risada.

— Ele não está aqui o tempo todo não é? Eu estou e eu sou mais forte. – disse apontando o polegar para si mesmo.

— Se você fosse tão bom assim, você seria pupilo de um cavaleiro de ouro e não seu irmão. – retrucou.

Todos ao redor prenderam a respiração e Kosuke ficou vermelho de raiva. Antes que ele pudesse dizer alguma coisa, Claire estava mandando todos se sentarem e prestarem atenção. Kosuke lhe lançou um olhar raivoso, se retirou e foi sentar-se em outro local.

Os treinamentos continuaram por mais algum tempo, as amazonas colocando os aspirantes para lutar em pares e as vezes em trio. Em determinado momento, Kaiola falou:

— Hoje temos uma novata. Sophia. – e olhando para a garota, falou – Gostaríamos de ver suas habilidades. Venha.

Todos os olhares foram mais uma vez para ela, que se levantou rapidamente. Estava tão nervosa ao ir ao centro da arena que tropeçou nos próprios pés, mas conseguiu se firmar e não cair. Porém, aquilo foi suficiente para os demais aspirantes rirem dela. Com o rosto ardendo, ela chegou ao centro da arena.

— Muito bem, Sophia. – quem falou foi Claire – Eu soube que você já sabe algumas técnicas de luta. Então, vou escolher alguém para lutar com você. Tudo bem?

Sophia assentiu.

Claire sabia que Sophia lutava e já despertara o cosmo sem nenhum treinamento. Galahad explicara tudo no dia anterior, enquanto preparava a chegada da menina. Por isso, Claire pensava em com quem ela lutaria. Deveria ser alguém mais ou menos da idade dela, com alguma experiência, mas que não fosse muito mais forte. Deveria ser um meio termo, para que nem a menina se sentisse superior, nem que se sentisse inferior. Olhou ao redor, para os aspirantes e já decidira quem chamaria, quando Kosuke se levantou.

— Mestra Claire, eu gostaria de lutar com ela. – falou com uma atitude que era falsamente respeitosa.

“Ele quer me humilhar pelo que falei.”, pensou Sophia no mesmo instante. Ela e Kosuke se encararam e era como se ele o desafiasse a dizer que não queria lutar com ele. Afinal, apesar de terem quase a mesma idade, ele era um aspirante a mais tempo que ela. E a menina vira-o espancar alguém mais cedo. Porém, Sophia nada falou.

— Você é muito mais experiente que ela, Kosuke. – falou Claire – Não seria justo.

— Eu pego leve com ela. – falou com um sorriso dissimulado.

A raiva ardeu dentro de Sophia e ela se pegou dizendo:

— Tudo bem. Eu luto com ele.

Houve um burburinho entre os aspirantes. As amazonas se entreolharam, ainda em dúvida. Porém, acabaram por assentir, afinal, Galahad falara do promissor desempenho de Sophia. Kosuke se aproximou, um sorriso esnobe na cara. Sophia desejou ardentemente quebrar todos os dentes dele.

— Preparados? – perguntou a amazona de Cobra. Quando os dois assentiram, ela ordenou – Comecem!

O idiota veio para cima de Sophia com muita vontade e ela desviou. Kosuke ficou surpreso, mas logo se recuperou e a atacou de novo, dessa vez mais rápido. Sophia não conseguiu desviar dessa vez e foi atingida na barriga e deu dois passos para trás. Ele veio de novo para cima, e Sophia foi atingida no rosto. Com a raiva borbulhando dentro dela, esperou que ele viesse novamente para cima e, quando ele estava bem perto, Sophia aplicou um chute bem em seu queixo. Kosuke, que esperava um soco, se desequilibrou com o chute surpresa. Recuou, num misto de surpresa e incredulidade, antes de partir com tudo para cima de Sophia.

Os demais aspirantes, que esperavam uma vitória rápida de Kosuke, ficaram surpresos, não apenas de Sophia ter desviado mais uma vez dos golpes, mas também ter conseguido acertá-lo. Porém, apesar de toda a agilidade de Sophia, Kosuke ainda era maior e mais experiente. Em breve, a menina se via encurralada e recebeu muitos socos, mais do que deu. E quando se viu encurralada, seu instinto se sobrepôs ao bom senso e Sophia recorreu a uma tática de luta da rua: chutou o saco dele.

Foi uma comoção geral e as amazonas rapidamente interviram, quando Kosuke caiu no chão, as mãos entre as pernas.

— Sophia! – exclamou Kaiola horrorizada – Você não pode fazer isso!

— Por que não? – estranhou a menina – É uma tática de luta!

— É uma tática de luta desonrosa. – explicou Claire – Pode ser uma tática do mundo lá fora, mas um defensor de Athena não pode recorrer a esses meios.

Enquanto Claire reclamava com Sophia, Kaiola ajudava Kosuke a se levantar.

— Pensei que apenas armas fossem proibidas. – se justificou Sophia com sinceridade – E não chute no saco.

Todos os aspirantes, exceto Kosuke, começaram a gargalhar. A amazona de Cobra estava visivelmente segurando a risada, mas a de Águia suspirou e balançou a cabeça, sem acreditar.

— Precisamos rever esses seus comportamentos, menina. – disse Claire seriamente – Acho que vamos parar seu treinamento marcial por hoje e conversar um pouco. – a expressão de Claire era tão dura que todas as risadas se acabaram – E agora, peça desculpa a Kosuke.

Sophia franziu o cenho e estava pronta para dizer ‘não’, quando viu o ódio no rosto do idiota. Então sorriu e se inclinou, antes de falar:

— Desculpe ter chutado seu saco, Kosuke. Espero que você ainda possa ter filhos.

Os aspirantes explodiram em risadas novamente. Nem mesmo Kaiola conseguiu se segurar e gargalhou, recebendo um olhar raivoso de Claire. Irritada, a amazona de Águia pegou Sophia pela orelha e saiu arrastando-a para dentro da academia.

— Ai, ai, ai, ai, ai! – reclamava a menina – Athena permite arrastar aspirantes pela orelha?!

— Se forem crianças atrevidas? Com certeza! – resmungou a amazona de Águia.

— Mas eu pedi desculpas! – se defendeu.

A amazona não respondeu e levou Sophia para a sala de estudos, enquanto lhe dava um imenso sermão sobre luta justa e honrada e como uma amazona deveria se comportar. Sophia até tentou argumentar, mas Claire não a ouviu. No final das contas, ficou confinada na sala de estudos para estudar as regras, meditar e pensar no que fizera.

Sophia suspirou. Seria um longo dia.

 

********************

Lucius caminhou pela praça central da vila de Rodorio, devagar, olhando as barracas de frutas e queijo. Apesar de ser apenas um vilarejo, Rodorio tinha muita oferta de produtos, tanto os fabricados pelos aldeões que moravam nela, quanto pelos que habitavam nos campos ao redor do Santuário. O cosmo de Athena havia protegido o local da destruição mundial, e as pessoas dali apenas ouviram rumores da devastação que existia além da proteção de sua deusa. Por isso, não se encontrava nenhuma pessoa ali que não tivesse um amor profundo por Athena e um respeito ímpar por seus defensores.

O centro da vila era uma praça circular, uma estátua da deusa no centro e com bancos ao redor desta, para os aldeões se sentarem. As pedras eram cinzas, mas de um cinza agradável e havia canteiros de flores por todo o local. A praça era um dos lugares favoritos dele e de Agatha, quando a convencia a sair da casa de Peixes. Suspirou diante da lembrança. Ainda que o tempo com sua amada tivesse o ajudado a se acalmar, as palavras do Mestre ainda ecoavam em seus ouvidos.

Não conseguia parar de pensar no que acontecera. Já revivera o acontecimento várias vezes, pensando no que poderia ter feito de diferente, para evitar a situação. Deveria ter agido mais rápido. Voltado antes para Athena. Ter parado a briga de Lilian e Lorenzo. Era responsabilidade dele. Agora, não só ele, mas sua irmã e seus amigos foram atingidos por seu erro. Patético.

— Lucius!

Lucius virou para quem o chamara. Era Galahad. O cavaleiro de Capricórnio, assim como Lucius, estava sem armadura. Porém, Lucius vestia uma roupa no mesmo estilo da dos aldeões, enquanto o outro vestia roupas do mundo exterior.

— Olá, Gal. – Lucius gostava muito do cavaleiro de Capricórnio e conseguiu sorrir para ele, mesmo naquele momento.

— As frutas estão bonitas hoje. – disse Galahad olhando para as frutas na barraca.

Lucius sequer reparara nelas antes dele falar.

— Estão sim. – concordou e estava falando a verdade – Acho que levarei algumas. Como estão as coisas na academia?

— Tranquilas. Claire e Kaiola estão fazendo um ótimo trabalho, mesmo que tenham começado há tão pouco tempo. E hoje levei a jovem Sophia para a academia. Foi você quem a trouxe para o Santuário, certo?

Galahad era o cavaleiro mais velho no Santuário, não apenas entre os de Ouro. Estava quase na casa dos cinquenta anos e já diziam que era o cavaleiro a chegar a uma idade mais avançada, sem a intervenção de Athena. Aquilo era incomum, pois a vida de um cavaleiro e de uma amazona era bem curta. A morte os rondava o tempo todo.

Além de ser o mais velho, Galahad fora responsável pelo treinamento inicial de todos os cavaleiros da idade de Lucius, o que incluía todos os cavaleiros de ouro. E, para o cavaleiro de Escorpião, a importância de Galahad ia além: fora o cavaleiro de Capricórnio quem resgatara Lucius e Lilian, ainda crianças, e os trouxera para o Santuário, não apenas salvando suas vidas, mas dando um propósito a elas. Era o mais próximo de uma figura paterna que tinha e sabia que era assim não apenas com ele, mas com a maioria dos aspirantes. E por ter esses sentimentos, sua vergonha ficou mais intensa. Sentiu seu rosto corar e baixou a cabeça, antes de começar:

— Sim, fui eu. – e pigarreando, recomeçou – Gal… sobre o que aconteceu…

— Não precisa falar nada. – interrompeu o outro – Eu não o culpo. Não culpo nenhum de vocês. Eu os conheço, sei que são responsáveis. E ninguém é perfeito. Até Athena comete seus erros. O importante, é saber que, no final, deu tudo certo.

Lucius preferia que Galahad tivesse o repreendido.

Percebendo que seu antigo aluno não havia superado o acontecido e sabendo do castigo dele e dos outros, decidiu fazer algo para que se sentisse melhor. Afinal, ainda se sentia responsável por ele. Teve, então, uma ideia.

— Sabe, Lucius, eu estava pensando… Você não poderia dar uma demonstração aos aspirantes? Eu os vi treinando hoje e acho que seria interessante eles observarem uma luta entre dois cavaleiros, para aperfeiçoarem suas técnicas.

— Claro que aceito. – falou o cavaleiro de Escorpião se animando – Hoje?

— Hoje eu tenho que resolver algumas coisas lá fora para o Mestre. E não queria perder a exibição de forma alguma. Que tal amanhã pela manhã?

— Perfeito! – aceitou Lucius.

— Ótimo! Escolha seu parceiro de luta e venham amanhã. Sem armaduras. Quero que os aspirantes vejam como cavaleiros treinam. – pediu Galahad.

Lucius acenou afirmativamente com a cabeça, sorrindo. Ambos os cavaleiros sabiam quem seria a parceira dele na luta. Despediu-se de Galahad, comprou suprimentos, e foi em direção às Doze Casas, mas especificamente à casa de Aquário.

 

 

**********************

Sophia sabia que estava de castigo. Ninguém lhe disse que estava, mas era óbvio. Depois do sermão de Claire, ela foi colocada na sala de estudo, para ler as regras da academia. Recebeu almoço e jantar lá e depois foi convidada a voltar aos seus aposentos.

Logo que Claire a deixou lá, ficou com medo de ser expulsa. Afinal, a amazona de Águia se mostrou muito irritada pelo que ela fizera. Achou que fora colocada na sala de estudos apenas enquanto as amazonas chamavam Galahad para mandá-la embora. Foram minutos de angústia até Kaiola vir deixar seu almoço. Foi quando a menina perguntou:

— Eu vou ser expulsa?

Kaiola a encarou, chocada.

— Claro que não! Ninguém é expulso por chutar o saco de alguém!

— Então por que eu estou aqui?! - esbravejou revoltada – Kosuke espancou aquele menino e estava gostando disso e vocês não fizeram nada! Ele é um sádico!

Kaiola a encarou um momento, respirou fundo, puxou uma cadeira e sentou-se em frente a Sophia. Fez um gesto para que a garota começasse a comer. Sophia não se mexeu.

— Sophia, eu sei que é difícil entender algumas coisas. - começou em um tom compreensivo, que deixou a menina desconcertada – Eu mesma ainda não entendo muitas delas e estou aqui há um bom tempo… Mas vou tentar explicar. Antes, vou te perguntar uma coisa: quantos dos trinta e dois aspirantes que têm aqui você acha que conseguirá uma armadura?

Sophia achou estranha a pergunta e pensou um pouco.

— Uns dez? - arriscou.

— Provavelmente dois. Três, se tivermos muita sorte.

A menina ficou boquiaberta.

— Por que tão poucos?

— Entenda que aqui damos apenas um treinamento básico. Separamos os melhores e os encaminhamos para outros cavaleiros e amazonas. E o treinamento fica mais pesado. Alguns não sobrevivem.

— Os professores matam os alunos? - perguntou, horrorizada.

— Não intencionalmente, claro. Mas o corpo humano nem sempre resiste. E os cavaleiros e amazonas precisam ter corpos preparados, porque a vida de um defensor de Athena é muito arriscada. Por isso o treinamento duro. E, mesmo com esse treinamento, às vezes o cavaleiro ou amazona morre na primeira missão. - ela balançou a cabeça – Alguém da idade do mestre Galahad é uma exceção. A vida de um cavaleiro dificilmente ultrapassa os trinta anos de idade.

Aquilo era realmente perturbador, pensou Sophia.

— Mestre Galahad foi meu mentor e o de Claire. - revelou a amazona – Da minha turma de aspirantes, que eram quarenta, apenas eu e Claire temos armaduras. A maioria desistiu e foi mandada para várias partes do mundo como porta-vozes do santuário.

— Porta-vozes?

— É, foi uma solução que o Grande Mestre implementou há muito tempo. As crianças que desistissem do treinamento e ainda quisessem servir a Athena, seriam mandadas de volta às suas terras natais para observar novos talentos ou até mesmo avisar de alguma catástrofe.

— E os que quisessem continuar aqui? - quis saber.

— Se tornam guardas, servos. E, claro, há aqueles que morreram em treinamento. - a amazona de Cobra suspirou – Eu e Claire conseguimos nossas armaduras há pouco tempo, depois de muito treinamento. O mestre Galahad foi um dos poucos dispostos a treinar duas discípulas ao mesmo tempo. - havia muita admiração na fala de Kaiola, percebeu Sophia – Ele deseja que, no futuro, uma de nós herdemos sua armadura. Ambas temos a constelação de Capricórnio como guardiã e sei que podemos herdá-la. Mas, eu não quero.

— Porque isso significa que Galahad teria que morrer. - disse Sophia lembrando da conversa com Athena no dia anterior.

— Exato.

As duas ficaram caladas por um momento e Sophia mexeu na comida com o garfo.

— Sophia, - recomeçou a amazona e a menina a encarou – o que estou tentando dizer a você é: nós temos regras que facilitem a convivência de vocês, mas a expulsão é algo muito raro. Você está aqui porque temos que dar exemplo para os outros, para que não lutem de forma desonrosa.

— Mas eu nem sabia! - protestou Sophia – Eu cheguei hoje!

— Verdade. Eu acredito que a Claire não precisava ser tão dura. Vou conversar com ela. Não se preocupe. - e dando uma pausa, acrescentou – E, quanto a Kosuke, entenda que temos tão poucas pessoas se tornando cavaleiros, que não podemos perder um aspirante promissor apenas porque ele tem a conduta questionável.

— Mesmo que ele seja um sádico? - perguntou lembrando da alegria de Kosuke quando bateu no outro garoto.

— Desde que ele seja fiel a Athena, sim. - respondeu – Eu te garanto, a maioria não gosta disso, mas é necessário.

— E Athena? O que acha disso? - Sophia lembrou da bondade que sentiu dentro de Athena e duvidava que ela gostasse de ver outras pessoas sendo maltratadas.

— Eu acredito que Athena espera o melhor das pessoas e daria a chance de qualquer um de provar que pode ajudar. - e quando Sophia lhe lançou um olhar de descrença, Kaiola foi até uma estante e tirou um livro de lá – Esse livro fala um pouco da história da Athena do século 20. Você verá um pouco do que eu falo. Leia depois de comer.

Kaiola se dirigiu até a porta, mas antes de sair, parou e voltou-se para Sophia.

— Vou te falar algo, aqui entre nós. - Kaiola baixou o tom de voz – Eu adorei o chute que você deu. Eu mesma chutaria aquele menino, se mestre Galahad deixasse. - ela gargalhou – Mas não conte a Claire, ok? Ela é certinha demais.

E, piscando o olho, saiu da sala.

Sophia sentiu-se melhor depois da conversa com a amazona de Cobra, ainda que achasse tudo muito absurdo e estranho. Mas já vira muitas coisas estranhas e absurdas, então decidiu se concentrar na comida maravilhosa e na leitura do livro.

No livro indicado por Kaiola soube mais sobre a antiga encarnação de Athena, cujo nome era Saori. Havia até uma foto dela e de cinco cavaleiros de bronze. Espantou-se que ela quase fora morta por alguém se passando pelo Grande Mestre da época e que muitos cavaleiros de voltaram contra Athena.

— Sério isso? Que bando de retardados! - xingou segurando firme o livro.

Leu com afinco durante o dia e ficou frustrada quando percebeu que a história terminava com a derrota de Hades. O que teria acontecido após isso? O cavaleiro de Pégaso se curou? E os demais, o que acontecera com eles? Talvez pudesse perguntar a Galahad.

Fazia pouco tempo que terminara o livro quando Kaiola trouxe seu jantar e avisou:

— Quando terminar, pode ir tomar um banho e voltar para o alojamento. - avisara a amazona.

E foi o que fez. Tomou um banho, escovou seus dentes, voltou para o alojamento, pôs o pijama, pegou o livro que Galahad emprestara, abriu-o na cama e começou a ler. Estava absorvida na leitura quando os demais aspirantes foram chegando para dormir. Sophia percebeu que eles a olhavam e cochichavam. Sentiu o rosto arder e procurou ignorá-los e se concentrar no livro.

Aquele tinha sido um dos motivos de fugir do orfanato: detestava se observada, analisada, ter sua intimidade invadida. A vontade de fugir dali surgiu pela primeira vez. Porém, a imagem de Athena empurrou em pensamento para o fundo de sua mente.

“Eu não posso fazer isso.”, pensava “Não posso abandonar Athena.”

E por quê? Por que ficar? Athena tinha muitos outros protetores.

“A vida de um defensor de Athena é muito arriscada”, Kaiola dissera. A maioria morria cedo. Então ela tinha que se tornar uma amazona e proteger Athena, porque não podia confiar que outros conseguiriam. Ela não sabia de onde vinha essa determinação, que sobrepujava seu medo. Só sabia que tinha que ficar. Precisava ficar. Então a melhor coisa a fazer era ignorar os olhares.

Sophia entendia que algumas regras existiam, mesmo sem ser escritas. E quebrara duas dessas regras naquele dia: ao chutar o saco do idiota e ao debochar dele no pedido de desculpas. Por isso, quando se perguntou se seria uma quebra de regras se decidisse dormir no telhado, achou melhor aguentar aquela noite e perguntar Kaiola no dia seguinte. Não queria ouvir outro sermão por pegar o cobertor e ir dormir empoleirada lá fora.

— Olá. – disse alguém do seu lado.

Sophia levantou os olhos do livro e olhou. Era um menino, que ocupava a cama ao lado da sua. Ele tinha os olhos apertados, cabelos lisos e negros na altura dos ombros e um sorriso gentil.

— Oi. – respondeu ela, ressabida.

— Sophia, não é? Eu sou o Shaoran. É um prazer.

Era estranho alguém ser tão simpático com ela depois do que acontecera, por isso pensou que ele poderia querer algo.

— Oi… – respondeu desconfiada.

— Você luta bem. – ele elogiou – Apesar do… golpe baixo. – ele riu, as bochechas vermelhas – Mas, quer saber? Foi bom ver Kosuke apanhando.

— Ele teve o que mereceu. – falou outra voz. Uma cabeça se levantou por trás de Shaoran, na cama ao lado da cama dele – Não foi honrado, mas eu ri muito. A propósito, sou Derya. – se apresentou a menina que tinha os cabelos muito pretos, lisos e uma pele cor de cobre.

Sophia ficou satisfeita ao perceber que não era a única a achar Kosuke um idiota. Acabou por sorrir para os dois aspirantes, se mostrando mais receptiva.

— Que livro é esse? – perguntou Shaoran.

— A Ilíada de Homero. – respondeu – Galahad me emprestou.

— Você deve chamá-lo de mestre Galahad. – explicou o menino – Vai ser assim que a mestra Claire e a mestra Kaiola vão te pedir para chamá-lo.

Mais uma regra não escrita, pensou Sophia.

— Obrigada, Shaoran. – agradeceu.

— Sophia, pode me ensinar a dar aquele chute? – perguntou Derya, animada – Foi, tipo, uau, que chute alto! Parecia que você estava chutando uma bola. – e levantou a perna, tentando imitar o chute que Sophia dera no queixo de Kosuke.

— Não é difícil, é só saber o momento. – disse Sophia animada – Mas posso mostrar sim.

— Podemos treinar os três, amanhã. – sugeriu Sharoan.

— Sim! – exclamou Derya.

— Pode ser. – falou Sophia, relutante, mas um pouco mais feliz. O local não parecia mais tão ruim.

Os demais aspirantes terminaram de chegar e todos se aprontavam para dormir. A cama de Kosuke era uma das primeiras do alojamento, mas ele foi até o final do cômodo, até a cama de Sophia. Toda a conversa entre os três morreu, enquanto o garoto encarava a menina. Ele nada falou e depois voltou para a sua cama. Sophia percebeu que Shaoran e Derya tinham prendido a respiração e ficaram tensos.

— Cuidado, Sophia. – sussurrou Shaoran – Ele não esqueceu.

— Ele quem deve ter cuidado comigo. – resmungou Sophia.

— Espero que ele não faça nenhuma confusão. – desejou Derya – Ele sempre apronta quando o senhor Galahad não está e quando as mestras não estão presentes…

— E por que ninguém fala nada? – quis saber a menina.

— Porque tem medo de não acreditarem. – respondeu Shaoran – Ele é sempre o aspirante exemplar na frente dos adultos.

— É um covarde, então. – falou Sophia.

Os dois aspirantes concordaram.

“Mas Kaiola sabe.”, pensou Sophia. “Sabe que ele não é confiável.”

— Hora de dormir. - anunciou Derya puxando o cobertor por cima do corpo – Boa noite Shaoran, boa noite Sophia.

— Boa noite Derya. – desejou Shaoran – E para você também, Sophia.

— Boa noite para os dois. – desejou Sophia, antes de perceber que era a primeira vez que desejava boa noite para alguém.

Sophia adormeceu rápido e logo sonhava que voava novamente. Só que seu sonho foi bruscamente interrompido, quando alguém tapou sua boca e a puxou para fora da cama. Três garotos a seguraram no chão, de joelhos, um deles tapando sua boca e outros dois segurando seus braços abertos, em forma de cruz. A luz da lua que entrava de sua janela a fez ver Kosuke na sua frente, estalando os dedos e sorrindo ameaçadoramente.

Sabendo o que a esperava, Sophia travou o queixo e fechou os olhos. O primeiro soco atingiu seu olho esquerdo, que inchou na mesma hora. Seu grito de dor foi abafado pela mão que tapava sua boca. O olhar de Kosuke era puro ódio. Depois que socou novamente o rosto de Sophia, um dos garotos que a segurava, sussurrou:

— Cara, as mestras vão ver as marcas!

— É! – concordou outro – Bate na barriga!

E foi o que ele fez. Deu vários murros na barriga de Sophia, que tentava se livrar, mas não conseguia. Kosuke descarregou sua raiva no corpo da menina, cujas dores estavam quase fazendo-a perder os sentidos.

Apesar de Sophia não conseguir gritar, o barulho da surra acabou acordando os aspirantes, que viram a cena e ficaram assustados. Mas nenhum deles se mexeu para pará-lo. Nenhum, a não ser os vizinhos de cama de Sophia.

— Ei! – disse Derya se levantando – Pare com isso!

— Solte-a, Kosuke! – mandou Shaoran se levantando também – Isso não é coisa de um cavaleiro de Athena.

Kosuke os encarou e se voltou para os dois.

— Eu não estou vendo Athena aqui para me repreender. - debochou – Por que não voltam a dormir e ficam na de vocês?

— Se você não parar, vamos chamar as mestras! – ameaçou Shaoran.

Antes que o menino pudesse dizer qualquer coisa mais, Kosuke o atacou de repente, atingindo-o na barriga e derrubando-o. Sophia grunhiu algo, inteligível, já que estava sendo calada a força. Shaoran ficou no chão, gemendo de dor. Derya tentou protegê-lo e foi também foi atingida na barriga e jogada no chão.

— Você nunca me venceu numa luta, moleque de merda. – falou com desprezo para Shaoran – Nem você. – disse apontando para Derya – Então, não se metam!

Apanhar era algo que Sophia estava acostumada. Vivera na rua por um bom tempo e teve sua cota de surras. Porém, ver pessoas que foram tão legais com ela naquele dia, a fez ficar irada. A mesma raiva que quando tentaram tocar em Athena. Mal os conheciam, mas sentia que precisava ajudá-los. Fechou os olhos, tentando ignorar a dor e se concentrou seu cosmo. Precisava despertá-lo mais uma vez.

Kosuke tinha se voltado novamente para Sophia quando se assustou. Uma luz envolvia o corpo da menina. Os outros garotos também viram, mas nem tiveram tempo de soltá-la. Uma força invisível, a força do cosmo de Sophia, empurrou os quatro rapazes que a rodeavam, libertando-a. Ela ficou em pé, os cabelos se mexendo como se estivessem ao vento, mas era a força da própria menina que os agitava-os. Todos seus algozes caíram no chão com um baque, e o cosmo que emanava dela invadiu todo o alojamento.

— O quê… – murmurou Kosuke.

Sophia não ficou em pé muito tempo. Os golpes que recebera voltaram a doer e o cosmo dela se apagou. A menina começou a cair, mas foi amparada por Derya, que se levantara rapidamente. Shaoran ajudou a amiga a levar Sophia até a cama dela.

Por um momento, os aspirantes acharam que haveria uma luta, mas então ouviram um barulho no corredor. As amazonas sentiram que algo ocorria e vieram averiguar. Todos correram de volta para suas camas e Shaoran jogou o lençol por cima de Sophia, antes de se deitar. Claire e Kaiola acenderam as luzes e viram todos os aspirantes deitados. Algumas cabeças se levantaram com a luz.

— O que está acontecendo? – quis saber a amazona de Águia.

— Nada, mestra. – disse um dos garotos que segurara Sophia.

— Sentimos um cosmo aqui. - disse Kaiola desconfiada – Vocês sabem que é proibido exibições e luta no dormitório.

Os aspirantes negaram veementemente que estavam fazendo qualquer coisa, mas as amazonas sabiam que estavam mentindo. Elas andaram pelas camas, observando todos, mas não viram nada de errado.

— Vamos deixar as luzes acenas e viremos fiscalizá-los. – avisou Kaiola – E espero que não tentem dar uma de espertinhos.

As amazonas apagaram as luzes e saíram, mas eles viram que uma delas ficou do lado de fora. Os aspirantes entenderam que a briga tinha acabado. Pelo menos por hora. Um deles decidira que não, a briga não tivera fim.

Sophia decidiu que aquilo não ficaria daquele jeito.

Kosuke não tardaria a pagar o que fizera a ela e aos seus novos colegas. Mas, não prejudicaria sua estadia ali por causa do idiota. Iria derrotá-lo e, daquela vez, seria dentro das regras.


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