A Égide de Athena escrita por Joy Black


Capítulo 1
1. Nova Encarnação


Notas iniciais do capítulo

Espero que gostem dessa nova história!



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Deserto da Amazônia – Ano 2196

A terra estava seca e árida. O vento levantava a poeira do chão rachado, nublando parcialmente a visão dos que estavam ali. O local, que antes abrigava uma grande floresta, estava morto.

            “Os seres humanos são tão idiotas…”, pensou Lucius.

Séculos de exploração desenfreada até levar o planeta à beira do colapso. Foram diversas vezes avisados, lembrados e somente após o surgimento de grandes desertos como aquele foi que a humanidade começou a repensar suas atitudes. Para locais como a Amazônia, já era tarde demais.

“Autofagia”, pensou novamente.

E por conta dessa estupidez ele estava ali, de pé, naquele mar de areia, protegendo a dádiva que a humanidade não merecia, mas receberia. Suspirou. A humanidade não sabia a sorte que tinha.

Sua irmã, ao seu lado, o espiava de canto de olho e Lucius fingia não ver. Se desse brecha, ela começaria um discurso de como ele deveria ter mais esperança, que a humanidade estava aprendendo sua lição, que eles poderiam fazer diferença e “blá blá blá”.

— Não precisa ficar tão tenso. – ela falou, finalmente – Não tem ninguém nesse fim de mundo que a coloque em risco. Deixe de ser tão paranoico.

Então Lilian achava que ele estava preocupado com a segurança? Talvez ela não o conhecesse tão bem quanto pensava. Aquele pensamento lhe dava um certo prazer e, para que ela continuasse pensando assim, disse:

— Com o seu conhecimento de História, você deve saber que o perigo vem até de onde menos se espera. – e lhe lançou um olhar divertido.

Ela abriu a boca para retrucar, e ele já estava se arrependendo de ter falado, mas parou a ação, atenta para algo a sua frente. Lucius olhou também. O vento parara de soprar. Ia começar.

Alguns passou a frente deles, uma menina estava parada, em meio ao vazio laranja do deserto. Tinha por volta de nove anos e, apesar de ser pequena para a idade, tinha olhos atentos e perspicazes. Quem encarasse a menina, veria milênios de sabedoria borbulhando nos olhos verdes. O vestido branco ondulava ao redor de seu corpo pequeno e magro, dando a impressão que o vento poderia carregá-la. Quando ela levantou uma das mãos, o vento parou. Depois, ergueu uma adaga dourada com a outra mão e perfurou seu dedo indicador com a ponta afiada. Uma única gota de sangue escorreu e caiu no chão, próximo às suas sandálias douradas.

Por um instante, nada aconteceu. Depois, um solitário broto surgiu e a menina sorriu. O broto cresceu lentamente, quebrado a casca seca do chão, continuando sua subida, espalhando uma camada verde ao seu redor. Cresceu e cresceu, e outros brotos se juntaram a ele, dando origem a imensas árvores, flores, samambaias e toda a sorte de flora tropical. Um lago brotou no meio delas.

Um oásis tinha nascido.

A menina virou-se para seus acompanhantes e sorriu. Lucius finalmente relaxou. Sequer percebera que estava tão tenso. Talvez sua irmã o conhecesse bem, afinal.

—Viu? – disse sua irmã apontando a menina – Nada aconteceu.

— Poderia ter acontecido. – retrucou, apenas para irritá-la.

Lilian revirou os olhos. Lucius sorriu. Lilian acabou sorrindo também.

Alegre com seu feito, a menina se encaminhou para os irmãos, quase saltitando. O coração de Lucius se encheu de um amor sem igual, como de um pai que vê a filha andando pela primeira vez.

—Terminei aqui. - anunciou em sua vozinha infantil, mas melodiosa – Podemos voltar para casa.

Lucius assentiu.

 – Como quiser, Athena.

**********************

            O barulho das máquinas pesadas trabalhando acordou Sophia. Rapidamente, a menina sentou-se, alerta, e prestou atenção. Sem passos. Nenhuma voz. Eram só máquinas, não havia pessoas. Suspirou, aliviada.

            Estava triste por ter acordado. Sonhar era uma das poucas coisas que davam alegria em sua vida e esperava ansiosa o momento de dormir apenas para ter esse pequeno prazer. E seu sonho mais recorrente era o em que voava. No sonho, ela tinha asas e seus pés tocavam as nuvens delicadamente, impulsionando sua velocidade ao infinito. A sensação era indescritível, o que só piorava sua tristeza ao acordar e perceber que estava presa àquela realidade mundana e sem graça.

            Respirou fundo, empurrando as sensações do sonho para o fundo de sua mente. Morar na rua desde cedo a ensinara que não devia relaxar muito. Por isso, levantou-se rapidamente, juntou o cobertor e seus poucos pertences numa mochila e caminhou até a janela.

            Estava no maior prédio de Athenas, capital da Grécia. Abandonado desde o último terremoto, seis meses antes, o prédio servia de reduto para moradores de rua, como ela. Só que a maioria das pessoas preferia ficar nos andares mais baixos, enquanto Sophia escalava sempre até o último, onde o acesso era muito difícil e tinha menos chances de ser surpreendida.

            Para uma menina de nove anos, Sophia já vivera coisa demais e não queria viver de novo.

            Colocou o gorro na cabeça, escondendo os volumosos cachos negros e saiu pela janela. Lá fora, uma multidão de carros voava, muitos metros abaixo dela. Agachou-se, analisando a melhor forma de descer. Normalmente usava o prédio vizinho como suporte, mas ele estava sendo reformado. Logo, logo, tentariam reformar o prédio onde estava e teria que achar outro lugar seguro para dormir. Mas, por enquanto, poderia continuar ali.

            Começou a descer, usando as partes esburacadas do prédio para se apoiar. A maioria das pessoas teriam vertigem em apenas olhar para baixo de onde estava, mas Sophia não tinha medo. Na verdade, adorava a altura e a adrenalina de estar tão acima dos outros. Continuou a descer até a parte mais lisa, onde era mais difícil de se apoiar. Não hesitou em pular e aterrissou exatamente no teto de um carro que passava por ali.

            - Ei! - gritou o motorista, assustado.

            Sophia soltou uma gargalhada e pulou no carro que voava abaixo. Ouviu uma série de palavrões. Mostrou o dedo do meio ao motorista antes de pular em outro e mais outro, até que chegou ao chão. Correu e sumiu numa das muitas vielas da Cidade Antiga, bairro mais perigoso e inabitado da capital.

            Para os mais desfavorecidos, o século 22 não era muito diferente do século 21 ou 20: as pessoas continuavam sem casas, sem comida e definitivamente sem carros, voadores ou não. As únicas coisas que mostravam que o tempo passara eram as novas armas: mais letais, mais silenciosas e mais destrutivas. Sophia já vira muitas de perto e não era uma experiência que queria repetir.

            Além das armas, os membros biônicos também eram comuns, pois o governo os fornecia sem custo para quem não pudesse bancar. Contudo, os membros mais legais eram os conseguidos no mercado clandestino e o pagamento desses variava desde um membro original da pessoa, um órgão saudável (seu ou de outra pessoa) e trabalhos nada agradáveis. Sophia não tinha nenhum membro biônico, o que não era incomum na sua idade. O interesse que ela tinha nesse mercado era fugir dele.

            Uma menina como Sophia era um alvo relativamente fácil. Órfã, sem amigos, sem nenhum tipo de proteção: ninguém acreditaria que ela estava na rua há tanto tempo. Os caçadores de crianças sempre tentavam pegá-la e ela sempre conseguia fugir. Se fosse pega, sabia qual seria seu destino: teria seus órgãos retirados e usados como moedas para a compra de membros biônicos e armas. Para outras pessoas, claro.

            No mundo do século 22, da mesma forma que os membros, os órgãos também eram sintéticos. Porém, os muito ricos preferiam permanecer orgânicos. Ser orgânico era ostentação do século 22. Se tivesse uma família, Sophia seria exibida com orgulho, por não ter nenhum membro biônico. Na rua, era um alvo. Todos queriam seus órgãos e seus membros e pagariam caro por isso.

            Caminhou pelas sombras, evitando as aglomerações de pessoas. Seu estômago roncou e ela pensou onde poderia conseguir comida. Poderia ir no cais, mas era onde qualquer criança desguarnecida iria em primeiro lugar para buscar comida. Perigoso. Pensou no lixão, mas o problema era o mesmo. O ideal era bater algumas carteiras, conseguir uns créditos digitais e comprar comida.

            Roubar não era um problema: Sophia tinha as mãos rápidas e dedos leves. Logo, estava com o cartão de algum infeliz que sequer percebera e comprara muita comida numa loja pequena e que não pediam digitais e afins na passagem do crédito. Depois, descartou o cartão no lixo e foi comer em cima de um terraço de outro prédio abandonado.

            De onde estava, dava para ver o Mediterrâneo. O mar avançara muito desde o desgelo das calotas polares e haviam diques que protegiam a cidade. Ao fundo, o Pathernon. Franziu o cenho ao ver muito movimento naquela direção e então lembrou-se: era tempo das Panateneias.

            As Panateneias, conhecida popularmente como Festa da Deusa, era uma comemoração em homenagem à deusa Athena, guardiã da cidade. Desde que o mundo quase acabara por causa das religiões monoteístas, que travaram inúmeras guerras entre si, muitas pessoas se voltaram para as religiões antigas. Athenas era o epicentro da maior delas: batizada em homenagem à antiga deusa da sabedoria, a cidade virou reduto dos neopagãos e as Panateneias voltaram à moda. Sophia sorriu vendo a roda gigante sendo montada. Talvez devesse dar uma passadinha na festa, no dia seguinte.

            “Não, é perigoso.”, disse uma voz dentro de sua cabeça.

            A festa estaria cheia de caçadores de crianças, esperando qualquer uma que se desgarrasse dos pais. E ela não teria pais para protegê-las. Mas também era uma oportunidade de conseguir muitos créditos. E, com muitos alvos em potenciais, os caçadores poderiam deixá-la em paz.

            Colocou o último pedaço de comida na boca e decidiu: iria à festa.

            Sem saber porque, aquela decisão lhe deu o maior alívio que já tivera na sua curta vida.

**********************

            O veículo era o mais moderno já lançado, ou, pelo menos, era o que Lucius ouvira falar. E deveria ser mesmo, pois dificilmente Galahad permitiria que Athena usasse menos que o melhor transporte que o dinheiro pudesse comprar. Ele e sua irmã poderiam viajar longas distâncias a pé rapidamente, mas a deusa não. Athena ainda era uma criança humana e tinha as limitações físicas de uma criança humana. Logo, necessitava de um veículo para locomoção.

            O carro estava pousado no chão do deserto, que ia ficando cada vez menos seco, à medida que o oásis se expandia. Mesmo que não lembrasse nada os carros do século 19, quando estes surgiram, ainda era chamado de ‘carro’ pelas pessoas. Era quadrado, mas tinhas as bordas arredondadas. À primeira vista parecia todo espelhado, mas era recoberto por painéis que usava a luz solar como combustível. Quando se aproximaram, Lilian encostou a mão no carro, cuja porta deslizou para o lado e uma pequena rampa deslizou para o chão. Athena entrou alegremente no veículo, sendo seguida por seus acompanhantes.

            - Lucius! - a menina levantou o dedo cortado e mostrou o ferimento a ele.

            Imediatamente Lucius puxou vários band-aid do bolso e mostrou-os à menina.

            - Quer qual? - perguntou sorrindo.

            Athena analisou-os por um momento.

            - O cor-de-rosa com bichinhos!

            Rindo, ele pegou o curativo e o pôs no dedo da menina, antes de acomodá-la no banco de trás do veículo, pôr seu cinto de segurança e se sentar ao lado da irmã, que ocupava a cadeira do motorista.

            Após se acomodaram, Lilian colocou a mão sobre um painel e o carro decolou. Lucius se segurou em seu banco, com a testa franzida. Detestava voar. Vendo o incômodo no rosto do irmão, Lilian aumentou a velocidade do veículo e Lucius enterrou as unhas na poltrona. Detestava a sensação de não ter o chão aos seus pés, pois era como se perdesse um pouco do controle sobre sua vida.

            - Todos confortáveis? - perguntou Lilian, animada.

            - Sim! - respondeu Athena animada.

            - Você poderia ir mais devagar. - falou ele – O Santuário não vai fugir.

            Lilian deu uma risada.

            - Para que tanto medo, irmão? Você é um cavaleiro de ouro! Não morreria num acidente aéreo!

            - Mas me estressaria em ter que explicar para o Gal porque deixei você destruir outro carro. E, da última vez, o Mestre quase nos proíbe de acompanhar Athena. Talvez nos substitua por Aldebaran e Lorenzo.

            Há muito tempo, a regra no santuário que as amazonas eram obrigadas a usar a máscara havia caído. Por isso, Lucius pode ver Lilian franzir a testa antes de reduzir a velocidade relutantemente. Lucius relaxou um pouco.

            - E por falar em Lorenzo… - Lucius virou-se e encarou Athena – Está com fome? Ele te mandou um lanche.

            - Sim, sim! - exclamou a menina – Estou faminta!

            Lucius apertou um botão e sua poltrona virou-se para a de Athena. Uma mesinha surgiu entre eles e o cavaleiro abriu o compartimento frio, onde estava a comida que Lorenzo, o cavaleiro de Câncer, fizera especialmente para aquela viagem. Como sempre, ele exagerara na quantidade e Athena não comeria nem um terço daquilo. Ainda bem que ele e a irmã tinha apetite suficiente para acabar com tudo.

            Quando começaram a sobrevoar o Atlântico, Lilian colocou o carro no piloto automático e foi comer com eles. Lucius detestou ainda mais: mal confiava na irmã para pilotar, imagine numa máquina. Mas, se falasse algo, ela ia começar a encher seu saco.

            - Lilian, - chamou Athena – você pode me ensinar a pilotar?

            - Claro! - respondeu a amazona animadamente.

            - Oba! Quando? - quis saber a menina.

— Assim que terminarmos de comer.

            Havia momentos em que Lucius tinha vontade de matar a irmã e aquele era um desses.

            - Lilian, ela não tem idade para isso. - avisou.

            - Bobagem, na idade dela eu já tinha dirigido muitos carros.

            - Destruído muitos carros, você quer dizer. - Retrucou ele.

            Lilian não falou nada, mas quando Athena estava distraída, ela mostrou o dedo do meio ao irmão, discretamente.

            E pouco tempo depois, Lucius fora movido para a parte de trás do carro, enquanto Lilian ocupava seu lugar e Athena sentava no banco do motorista. Lucius sabia que ela aprenderia a dirigir naquela viagem melhor que ele dirigiria toda sua vida, afinal, ela era a deusa da sabedoria. Athena aprendia tudo que lhe ensinassem em pouquíssimo tempo. O Mestre do Santuário, certa vez, lhe dissera que tinha uma teoria: o conhecimento, diferente das memórias, era passada de uma encarnação para a outra de Athena e que ela precisava apenas de um pouco de treino para lembrar. Talvez a última Athena tivesse aprendido a dirigir os carros do século 20.

            Depois de algum tempo de voo, a menina ficou sonolenta, passou novamente para o banco de trás e cochilou enquanto passavam pelo arquipélago de Cabo Verde. Já era noite quando começaram a sobrevoar a Grécia, na direção do Santuário.

            - Olhe! - falou Lilian quando passavam pela cidade de Athenas – As Panateneias já começaram!

            A cidade estava toda iluminada e o Parthenon era destacado por holofotes voadores. Lilian subiu um pouco mais para evitar os motoristas bêbados que circulava pela cidade; a amazona não precisava do aviso do irmão para saber que ali era melhor ser cuidadosa.

            - Essa festa é realmente em minha homenagem? - falou Athena de repente.

            Nenhum dos dois cavaleiros perceberam que a menina acordara e agora olhava encantada para as luzes da cidade.

            - Sim, é. - respondeu Lilian com um sorriso.

            Em vez de ficar feliz, Athena suspirou, a expressão de tristeza tomando conta do rosto infantil.

            - Aquela ali é a roda gigante? - perguntou apontando vários pontos luminosos girando na escuridão abaixo.

            - Sim. - respondeu Lucius.

            A menina suspirou novamente, entristecida, e Lilian e Lucius se entreolharam, preocupados.

            - Eu queria ver a festa de perto. - murmurou tocando no vidro – Parece ser tão legal…

            - É perigoso, Athena. - falou Lucius – O Mestre não permitiria tanta exposição.

            - Eu sei… - a expressão dela era de quem entendia, mas não se conformava.

            A tristeza de Athena era devastadora para os dois irmãos, mas foi Lilian quem decidiu que deveria fazer algo.   

            - Poderíamos falar com o mestre. – sugeriu ela – Se nós dois formos com você, talvez ele não se oponha.

            Lucius olhou para a irmã com os olhos arregalados, pronto para chamá-la de louca, contudo, Athena deu um gritinho de alegria e, com os olhos brilhando, perguntou:

            - Sério? Vocês fariam isso por mim?

            Uma festa mundana, cheia de pessoas potencialmente perigosas e Athena no meio deles? De jeito nenhum, pensou Lucius. Porém, jamais seria capaz de apagar o brilho de alegria que surgira no rosto da menina, por isso, falou:

            - Nós faríamos qualquer coisa por você, Athena.

            - Então está decidido! - exclamou Lilian – Falaremos com o Mestre assim que chegarmos!

            Dando-se por vencido, Lucius suspirou e lançou um olhar exasperado para a irmã. Lilian sorriu, mas não era um sorriso debochado, mas um satisfeito, por poder proporcionar aquela alegria a Athena. E por mais que estivesse preocupado, Lucius não podia negar que seu coração se aquecia ao ver a satisfação da sua pequena deusa. Faria de tudo para que aquele sorriso nunca se acabasse.

***********************

            A noite limpa e sem nuvens permitia uma visão ímpar das constelações celestes. Do topo do observatório, no templo de Athena, o Mestre olhava fixamente para o céu, seu rosto coberto por uma máscara, como todos seus antecessores.

            - Tem certeza? – perguntou ele.

            - Sim, mestre. – confirmou Klaus, o cavaleiro de Sextante – As estrelas estão se movendo. Mudanças estão a caminho.

            Mesmo que não pudesse ver o rosto do mestre, Klaus sentiu sua preocupação.

            - Athena está às vésperas de completar dez anos. – continuou o cavaleiro de Sextante – É uma data auspiciosa.

            - Para o bem ou para o mal. – completou o Mestre – Podemos esperar qualquer coisa.

            - Sim, Mestre.

            Aquilo o preocupava mais que qualquer outra coisa. Na verdade, desde a chegada de Athena, ele se preocupava com seu destino. Até então, a menina havia sido criada como nenhuma outra encarnação antes dela: quando a estrela a trouxe, a depositou nos braços dele, como um presente divino. Ele era seu pai, seu professor, seu guardião. Amada e protegida por todos no Santuário, Athena não teve praticamente nenhum contato com o mundo exterior, com exceção de suas saídas para curar o planeta. E, até então, nenhum mal, exceto aquele feito pelos seres humanos a eles mesmos, rondava a humanidade. Nenhum deus se levantara contra Athena. Estaria essa paz com os dias contados? O que aconteceria nas próximas semanas? Algum inimigo surgiria?

            - Continue a leitura. – ordenou – Quero ser informado a cada novo movimento do céu. Não podemos ser pegos de surpresa. Athena deve ser protegida.

            - Sim, mestre. – respondeu Sextante.

Assim que deixou a torre de observação e chegou ao grande salão, uma das servas se aproximou.

            - Athena retornou, Mestre. – informou se curvando respeitosamente.

            O alívio trazido pela notícia o fez sorrir, ainda que o sorriso não fosse visível por causa da máscara. E logo após o anúncio, Athena adentrou o grande salão, escoltada pelos cavaleiros de Ouro Lucius de Escorpião e Lilian de Aquário. Os dois irmãos, vestidos em suas respectivas armaduras, se ajoelharam lado a lado, enquanto Athena correu até o Mestre, que se ajoelhou para receber o abraço apertado da menina.

            - Shun! – exclamou o abraçando forte – Eu já estava com saudades!

            - Eu também, Athena. – disse Shun carinhosamente, retribuindo o abraço.

            A menina o soltou, mas continuou segurando sua mão enquanto falava animadamente, seus olhos brilhando de alegria:

            - Começou a recuperação da Amazônia! – anunciou animada – Em alguns anos ela será floresta de novo!

            - E tudo graças a você. – falou Shun carinhosamente.

            Ela sorriu, as bochechas ficando vermelhas.

            - Agora, onde está a adaga? – perguntou ele.

            Lucius se levantou, a capa ondulando enquanto se aproximava, ajoelhou-se novamente e estendeu a adaga para o Mestre, que a pegou. Depois, retornou para o lado da irmã.

            - Eu não posso ficar com ela? – perguntou Athena – É tão bonita…

            - Não, minha pequena criança. - respondeu Shun – Poucas coisas podem machucá-la e essa é uma delas. Não podemos deixá-la tão próxima a você.

            - Mas vocês me protegem. – argumentou a menina.

            - Segurança nunca é demais.

            Athena não disse nada e viu a adaga sumir dentro das vestes de Shun. “Poucas coisas podem machucá-la”, ele dissera. Lembrou então das luzes da festa e da roda gigante que vira. Aquele era o momento ideal para pedir.

            - Shun, - começou ela – coisas humanas podem me machucar?

            - Acredito que não, Athena.

            - Então eu quero ir às Panateneias. Quero ver as pessoas celebrando meu nome.

            Mesmo sem poder ver o rosto do Grande Mestre, seu espanto foi perceptível. Lilian e Lucius se entreolharam, apreensivos. Mesmo a otimista amazona de Aquário agora se perguntava se havia sido uma boa ideia incentivar Athena a fazer o pedido. Mas nunca admitiria aquilo, pois a primeira coisa que Lucius falaria seria um “eu avisei”.

            Surpreso, Shun teve o impulso de negar o pedido. Contudo, segurou as duas mãos de Athena, tão pequenas e frágeis, e viu, em um dos dedos, o band-aid rosa com bichinhos que Lucius colocara.

            - Qual o motivo do pedido, Athena? – quis saber.

            - Eu tenho sempre ajudado a humanidade, mas só a conheço por livros. – explicou a menina, com um tom sério que não combinava com sua pouca idade – Nunca vi ninguém que não fosse cavaleiro, amazona, saintia ou aspirante. Quero ver o mundo lá fora. O mundo de verdade, não só desertos. – seus olhos brilharam – Quero ver pessoas. Quero ver aquilo que vim proteger.

            Foi impossível para Shun não compará-la a Saori. A outra Athena, a que fora sua amiga, aquela que lhe concedera o poder para ainda está ali, duzentos anos depois, fora criada no mundo e nunca sentiu aquela necessidade. Esta Athena, sua filha Athena, fora mantida guardada e segura. Achara que ela também não quereria sair do Santuário, tal como Saori, quando fez dele seu lar definitivo. Mas eram pessoas diferentes, tinha que lembrar. A menina à sua frente era Athena, mas não era Saori.

            Antes de responder ao pedido, Shun se levantou e encarou os dois cavaleiros de Ouro ajoelhados. Fez um sinal para que eles se levantassem e se aproximassem. Quando estes estavam à sua frente, perguntou:

            - Qual a opinião de vocês?

            Lilian foi a primeira a falar:

            - Acho que Athena deve ter seu pedido atendido, por dois motivos: o primeiro, como ela mesma mencionou, é conhecer o mundo que ela protege. O segundo é que, mesmo sendo uma deusa, ela é uma criança. Precisa de divertir.

            Athena sorriu, agradecida.

            - Eu concordo com minha irmã em partes. – disse Lucius cauteloso – Sim, Athena deveria sair e conhecer as pessoas, mas não acho que as Panateneias seja o momento apropriado. Muita gente, muito movimento… Temos que prezar pela segurança dela.

            - Paranoico. – resmungou Lilian.

            - Desleixada. – retrucou Lucius.

            - Não briguem! – pediu Athena aflita.

            - Não estamos brigando. – disseram os irmãos em uníssono.

            Shun pensou um pouco. Athena o encarava, ansiosa. Lembrou do que Klaus de Sextante lhe dissera. Algo aconteceria em breve. Depois de dois séculos de vida, ele sabia que o destino se cumpria, não importando o quanto tentasse evitá-lo. Poderia trancar a menina o resto da vida no Santuário, mas isso não significava sua segurança. Saori sofrera mais de um atentado à sua vida dentro do Santuário. Se algo ameaçasse Athena, o faria em qualquer lugar. E, deixando-a sair, os cavaleiros ficariam mais atentos à segurança dela, mais cuidadosos, muito mais que se estivessem dentro do Santuário.

                - Tudo bem, Athena. – disse – Você poderá ir à festa amanhã.

            A menina abriu um grande sorriso e o abraçou novamente.

            - Obrigada, Shun, obrigada!

            - Porém. – ele disse e ela o soltou e o olhou atentamente – Mandarei quatro cavaleiros de Ouro com você. Você deve ouvi-los e obedecê-los como uma criança humana faria com seus pais.

            - Certo! – concordou.

            - E deverá estar no Santuário antes da noite cair. – continuou.

            - Sim, sim! – e olhando para Lucius e Lilian e pediu – Eles podem ir comigo amanhã?

            - Claro. – concordou o mestre – Eu escolherei os outros dois, certo?

            - Tudo bem!

            - E agora, – o Mestre fez um gesto e uma serva se aproximou – você deve tomar banho, jantar e ir para cama.

            - Você vai me contar histórias da minha outra ‘eu’ quando for dormir?

            - Claro. Me aguarde.

            A menina deu outro abraço nele, acenou para Lucius e Lilian e saiu de mãos dadas com a serva. Shun fez um gesto para Lucius e Lilian acompanhá-lo e os dois seguiram o Grande Mestre até uma sala imensa. Lá, Shun usou seu cosmo para abrir uma parede, onde havia um grande cofre. Ele colocou a adaga dentro do cofre e o fechou, fechando a parede em seguida. Depois, virou-se para os dois e disse:

            - Preciso de Galahad aqui depois que colocar Athena na cama. Precisamos de uma estratégia para sua proteção amanhã. Quero a festa cheia de cavaleiros e amazonas de Bronze e Prata em meio as pessoas. Discretamente. Como se fossem pessoas normais.

            - Sim, Mestre. – disse os dois.

            - E Lilian?

            Lilian gelou quando o Mestre disse seu nome.

            - Sim, Mestre?

            - Não dê mais ideias como essa a Athena.

            Apesar da crítica, não havia raiva na voz de Shun. Na verdade, havia até um certo divertimento.

            - Sim, Mestre. – disse a amazona curvando-se.

            - Podem ir.

            Assim que saíram do templo e adentraram a noite, Lilian suspirou e tirou o elmo da armadura. Era óbvio que o Mestre perceberia sua interferência, pensou. Afinal, ela sempre fora a amazona que todos consideravam excêntrica e desbocada. Passou os dedos pelos cabelos curtos e escuros e olhou de esguelha para o irmão:

            - Você adorou a bronca que levei, não foi?

            Lucius deu uma risada e tirou seu elmo também. Os cabelos dele era pretos como o da irmã, porém, eram longos.

            - Mas é claro. - confirmou – E saiba que tudo que acontecer amanhã será culpa sua.

            - Não vai acontecer nada! Eu não deixarei! – e apontando o dedo para ele, completou – Nem que seja para não te dar a satisfação de dizer “eu avise”.

            - Certo, certo. – Lucius apontou para a escadaria que levava às Doze Casas – Devemos ir até a casa de Capricórnio e avisar ao Gal do chamado do Mestre.

            - E depois, que tal uns drinks? – sugeriu Lilian – A Taverna dos Doze trouxe bebida nova para a vila. Por minha conta! Você pode chamar sua namoradinha. – e piscou o olho, maliciosa.

            Lucius deu uma risada, suas bochechas corando levemente.

            - Não perderia a oportunidade por nada. – e começou a descida.

            - Acho que vou chamar Lorenzo e Aldebaran também. – pensou Lilian o acompanhando na descida – Preciso me gabar por ter sido escolhida por Athena para acompanhá-la amanhã. Lorenzo vai morrer de inveja.

            - Você sabe que há a chance de eles irem também, não é? Podem ser escolhidos pelo Mestre.

            - Sim, mas terão sido escolhidos pelo Mestre e não por Athena. – disse cheia de si.

            - Tudo bem, vamos chamá-los para os drinks, mas eu duvido você tirar Lorenzo da casa de Câncer a essa hora. Ele detesta sair à noite.

            - Eu consigo!

            - Se você conseguir, eu pago as bebidas hoje. - desafiou.

            Lilian deu uma risada e passou o braço no ombro do irmão, puxando-o para perto.

            - Com esse incentivo, eu tiro aquele siri da casca nem que seja a força!

            Riram juntos e continuaram a descer as escadarias. Apesar de todos os atritos, eram irmãos e se amavam. Podiam discordar, mas nunca se odiar. Estavam felizes por dividirem, além dos laços de sangue, a devoção e lealdade a Athena.


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