Querida insônia escrita por Ume


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Encontrei esse textinho perdido em meio aos meus arquivos antigos numa limpa profunda que fiz no meu HD, e finalmente resolvi partilhá-lo com algumas pessoas. Serve também para apaziguar o sentimento de frustração em ter querido ser escritora um dia e ver que é bem mais difícil que imaginava.
Enjoy!



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13 de setembro, quarta-feira, 2017.

2:30 AM

 

As abas da janela aberta do quarto escuro chacoalharam levemente com o soprar do vento, este que passeava por entre seus pequenos feixes horizontais. Notavelmente o outono estava chegando. Calmo e discreto, numa serenidade invejável. A cortina azul dançava em igual sintonia pendurada acima do fiel companheiro inanimado. Objetos isentos de quaisquer sentimentos. Sem vida. Vazio.

A pouca luminosidade da noite adentrando o cômodo provinham da espetacular lua cheia, jazida presa no céu acompanhada das estrelas. O teto do quarto, repleto de imitações fajutas e toscas das pedras reluzentes lá fora, brilhavam num tom verde florescente trazendo um pouco daquele véu negro para dentro da casa mesmo através da artificialidade.

“Quarenta e dois, quarenta e três, quarenta e quatro…E pensar que colar essas merdas me ajudariam a dormir, tsc!” – Mentalizou interrompendo a contagem dos pontinhos esverdeados, tendo a total certeza de ter adicionado novamente a soma as mesmas estrelas artificiais já contadas antes. Elas riam das olheiras adornando seus olhos, podia sentir isso. – “Estão cuspindo na minha cara” – Concluiu num suspiro profundo.

Os móveis eram as únicas testemunhas da insônia infernal enfrentada durante estes últimos meses. A cama pedia um pouco de descanso através de rangidos mudos de tanto mexe-mexe e revira-revira; o lençol remexido e embolado no começo do colchão suplicava por um pouco de quietude por parte dos pés nervosos.

“Inferno!” – Talvez fosse verdade sobre os pensamentos serem como gritos em alto-falantes durante a noite para os atormentados, e que também não eram facilmente ignoráveis. Seu cérebro não dava o merecido sossego e paz tão almejados.

O pior era que todo restante do corpo pagava o preço pela rotina notívaga adquirida nos últimos tempos, ou melhor, nos últimos três meses. Céus, como aquilo atrapalhava, e muito, o dia a dia corriqueiro e estressante de qualquer universitário. Principalmente àqueles que estavam na reta final desse longo e cansativo percurso. E tinham emprego. E instabilidade emocional, para fechar o pacote com chave de ouro.

Poderia até prever como seria no dia seguinte: acordaria com aquelas malditas olheiras cada vez mais escuras, levantaria clemenciando por uma morte rápida e indolor enquanto tentava se arrumar na velocidade da luz; sentiria dores terríveis – fruto da noite mal dormida – rumo a odiada faculdade, almoçaria o prato do dia do cardápio de sempre, e, por fim, iria para o trabalho desprezível e nojento no qual era uma mera subordinada.

Um pequeno lembrete a fez levantar esperançosa. Algo que rondava sua mente vez ou outra, como uma sugestão de solução precisa e direta. No banheiro se encontrava a resposta para esse irritante problema. Correção: no banheiro e no fundo da gaveta do guarda-roupas no canto. Talvez finalmente poderia dormir com essa intervenção brusca.

Com passos lentos, chegou até a porta bem polida de mogno cansada – friso que tal adjetivo servia tanto para ela quanto para a porta. A maçaneta dourada detalhada foi girada com uma cautela cirúrgica. O motivo? Nem ela sabia, mas provavelmente era porque todo barulho durante a noite tem uma sonoridade muito maior se comparado com o dia. Sabe como é né? Um passo em falso e os seus vizinhos no quarto da frente a escutariam; e ainda por cima um deles tinham um sono leve como uma pluma… Hunf, fazer o quê, não é mesmo?!

A rota foi certeira. Quando a maçaneta permitiu o acesso, dirigiu-se rápido para o armário branco com espelho embutido e abriu a portinha fisgando o seu objetivo com louvor. O mobiliário branquíssimo lembrava as salas almofadas de algum hospício saído diretamente de algum filme tosco, ou de alguma clínica do gênero. Brincadeirinha, sabemos que hospitais voltados para a psique não são mais assim, ou, pelo menos, esperamos que não sejam mais. Chegava a ser de certa forma estonteante, num mau sentido. O único deslocado da turminha dos branquelos era a banheira ovalada de aço cinza e alguns utensílios de higiene pessoal coloridos acomodados num suporte na parede.

Entre os dedos da mão direita segurava firmemente um pequeno cilindro feito de plástico numa cor indecisa entre laranja e vermelho claro. A embalagem do remédio estava com o peso muito menor que tinha no começo do mês passado. Sinceramente completamente estava vazio; era de se esperar o consumo dele de forma controlada, mas não algo parecido com a situação que chegara. Levando em consideração que se encontrava numa quarta-feira da segunda semana de setembro e o conteúdo completo da droga eram de 120 comprimidos, a média revelava uma verdade assustadora.

— Uns 3 comprimidos por dia, creio eu. Belo número. Posso me encaixar como uma viciada, possivelmente? Deveria me preocupar? — Pautou baixinho com um sorriso irônico nos lábios. Uma das expressões mais comuns em seu rosto era aquela: o puro deboche— Esse remédio é indicado para transtornos de ansiedade, transtornos de humor e emprego em síndromes psicóticas… indicado isoladamente ou como adjuvante no tratamento de crises blá blá blá.— Murmurou enquanto lia a bula sentada na privada de porcelana branca. Lera aquele papel pela enésima vez no mês. De alguma maneira, aquele texto quase interminável de letras tão miudinhas e com palavras vez ou outra difíceis prendiam a atenção mais que gostaria. Talvez devesse ter escolhido cursar farmácia ou química no lugar daquela droga que chama de curso. Decisões tomadas sob pressão normalmente resultam em arrependimentos. Pelo menos no meu caso, ou dela. Nosso.

Parando pra pensar agora, incrível como tinha uma dificuldade imensa de falar abertamente com as pessoas, mas para falar sozinha, seja mentalmente ou não, era proporcionalmente o inverso. Engraçado.

Ok, voltando para os problemas emergenciais aqui.

A questão principal não era seu vício, porém a forma como o efeito do calmante não funcionava com a mesma intensidade de antes. Seu organismo tornara-se adaptado e exigente. Os agentes químicos perderam o vigor do início. Se levasse em consideração que já os usara em outro momento da vida não muito distante deste no momento, talvez a resposta de que sua tolerância tenha aumentado e muito não seja tão surpreendente

Não existia mais uma média de consumo, mas sim uma constante oscilante. O uso está ali, fazendo seu papel todos os dias. Já a quantidade oscilava. As vezes hostil, as vezes afável. Não eram três comprimidos diariamente, eram dois em um dia, um em outro ou até cinco ao longo de uma jornada inteira dependendo do estresse. Uma verdadeira bagunça.

Quando iniciou esse tratamento clandestino mais ou menos um mês atrás — aqueles comprimidos eram presentes de um amigo íntimo farto das reclamações dela, visto que não era vendido sem uma prescrição médica legível; não pergunte sobre a confiabilidade deles, funcionavam e pronto —, durante a leitura da mesma bula de letras miúdas, uma parte sempre chamara atenção.

 

“[…] O uso concomitante deste agente com álcool e/ou depressores do SNC (sistema nervoso central) deve ser evitado. Essa utilização concomitante tem potencial para aumentar os efeitos clínicos, incluindo possivelmente sedação grave, depressão cardiovascular e/ou respiratória clinicamente relevantes. […]”

“Está esperando o que pra enfim cair no sono, hein? Precisa de companhia pra dormir agora?!” – Seus pensamentos estavam certos, não havia o porquê esperar mais. Seu corpo clamava por repouso.

Levantou-se do confortável assento níveo; numa despedida lenta desligou a luz do recinto dando um tchau rápido para os azulejos pequenininhos preenchendo as paredes.

Um sentimento de euforia a fizera aumentar a velocidade dos passos. A ideia de uma boa noite de sono parecia extremamente atraente no momento.

O guarda-roupas marrom conhaque possuía exatas quatro gavetas idênticas e quatro portas também com as mesmas características entre si, todos com alças pretas minimalistas. Duas portas grandes e duas medianas tendo embaixo destas as gavetas lustrosas citadas acima.

Você se lembra da ideia de não fazer barulho durante a noite para não perturbar o sono alheio por causa da possibilidade do eco ou qualquer outra coisa ridícula assim? Então, ela foi para o brejo no instante seguinte.

A última gaveta da coluna, puxada com uma força excessiva, gemeu alto.

Quem disse que ela estava ligando para aquilo agora? O sono em seu formato sintético a aguardava.

“Dormir, dormir, dormir, eu preciso dormir…” – Repetia rápido consigo como um mantra. No fundo, escondido, encontrava-se uma garrafa de uísque coberto sob uma camada de camisetas dobradas à perfeição. – “Vem pra mamãe, meu querido bebê.”

Com os componentes do plano em mãos faltava apenas executá-lo. Remédios pra dormir + álcool = soneca divina! Como não havia feito aquela combinação logo depois daquela insônia persistente nascer? Em vez de ficar sofrendo por semanas inteiras esperando não ficar apenas um pouco – pouco mesmo— tonta com o uso dos comprimidos sozinhos. Os efeitos rebote já eram sabido de cor e salteado e insônia era um deles, porém a esperança e teimosia de não precisar recorrer a essa combinação sempre estivera ali.

Encontrou algum problema insolúvel na vida? Requer uma escolha difícil equivalente a morrer na cruz ou queimado? Simples, regue tudo com algum destilado de boa qualidade e logo logo a situação vai se resolver por si só.

Aí você me pergunta: mas e se tiver consequências avassaladoras desta burra decisão tomada enquanto estava bêbado?

E eu te respondo: Simples! Regue tudo novamente com álcool. Repita o ciclo até tudo se acomodar ao seu favor. Se ainda não chegou a esse resultado, então significa que você não embebedou-se direito. Ou morreu no meio do processo.

Ah, nada que um pouco de uma boa bebida não resolva. Afinal, não é assim que os verdadeiros adultos fazem?

Voltemos a trama.

Desroscou a tampa da bebida âmbar do frasco.

Dois goles diretos do gargalo, dois comprimidos.

Outra pequena dose, mais um comprimido.

Mais uma dose, solitária desta vez.

A ansiedade pela embriaguez e sonolência obrigou-a a remover o esmalte cinza das unhas dos dedos indicador, mínimo e polegar com os próprios dentes.

Só o tempo restava.

 

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.

 

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— Puta que pariu!— Exclamou baixo quando sentiu o rosto arder levantando desajeitadamente.

“Maldito sol, vai nascer em outro lugar.”

As costas reclamaram de dor com a movimentação. Havia dormido estirada no chão perto da janela observando as estrelas – as naturais desta vez – na noite anterior na espera pelo sono.

Um momento…

Nascer do sol...?!

Uma rápida olhada no relógio em cima do criado-mudo injetou-lhe pânico o suficiente para espantar qualquer traço de preguiça e incômodo. Não o suficiente para interromper suas velhas amigas chamadas dor de cabeça e dor nas costas.

“Como assim são 8:50 da manhã?! Só pode ser brincadeira com a minha cara. Por que a porra do celular não despertou?” – Lembrava-se de ter deixado o celular para despertar ao lado dela um pouco antes de capotar.

E de fato ele havia despertado.

“O alarme tocou cinco vezes por falta de uma” – Constatou ao olhar na tela luminosa a barrinha de notificações, cheia de ícones em formato de despertador. – “Nota mental: nunca mais beber e tomar ansiolíticos juntos ou simplesmente não esquecer de colocar o celular ao lado do ouvido da próxima vez. Ou dentro dele.”

Um deslize daqueles não era permitido naquele semestre decisivo da faculdade. Uma falta num dos últimos três meses do semestre significa um possível trabalho com nota pesada, uma prova surpresa ou até uma tarefa simples com valor minúsculo que faria uma grande diferença no final.

A derrota define. Não havia como recuperar o tempo perdido, estava 1:50 h atrasada. Mesmo se arrumando, o professor não a deixaria sequer respirar próximo a dois metros de distância da sala de aula, quanto mais entrar no meio da aula. Ele prezava muito pela pontualidade; seu calcanhar de Aquiles, a quesito de informação. Além disso, as últimas três aulas nem eram tão importantes assim. A matéria relevante, o professor mais carrasco em outras palavras, estava nas três primeiras aulas que perdera, não nas finais.

O máximo que podia fazer era ficar em casa e não faltar ao trabalho pelo menos.

“Acho que vou ter que ficar por aqui. Pelo menos no restante da manhã estou livre” – Suspirou.

Os minutos demoraram severamente para passar. Tanto ela quanto o tempo se recusavam a se mover. O máximo que fizera foi se afastar dos raios solares o suficiente para não tocar mais a pele e voltar a ficar esticada no chão, desta vez em uma posição de braços e pernas abertas parecido com um anjo de neve.

 

9:22 h AM

 

O odor de café pronto no andar debaixo persistentemente infestou a casa inteira há cerca de 5 minutos. Suas narinas sorveram do aroma agradável e sedutor do ouro negro líquido. Preferia tomar chás pois não era fã da infusão, mas o cheiro trazia um prazer sensorial inexplicável.

Hora de levantar com certeza.

Com os músculos finalmente descansados – um pouco doloridos ainda, mas descansados – caminhou receosa ao seu manicômio particular que tinha como apelido banheiro.

O espelho fora com que dera de cara assim que a porta se abriu. Ele, seu arqui-inimigo fiel, exibiu grosseira e honestamente tudo o que evitava olhar. Cabelos desgrenhados e sujos, bolsas acinzentadas abaixo dos olhos, lábio superior com uma pequena ferida, pele ressecada. Parecia um verdadeiro corpo desovado num deserto… Só que pior.

Para onde foi a cor? A vivacidade?

— Você está um caco. – Chiou para a pessoa com aparência cansada refletida. A faculdade estava comendo-a viva.

As mãos instintivamente acariciaram a ponta dos cabelos compridos; estavam na altura dos seios e requeriam um tempo de cuidado que nunca tinha; era hora de cortá-los.

A vaidade nunca fora umas das suas companheiras favoritas.

Despiu-se da camisola mediana de mangas curtas de forma lenta e pesarosa. O tecido leve escorreu pelo tronco magro quando as alças nos ombros foram empurradas em direção contrária ao centro do corpo.

Entrou na banheira e sentou-se no frio aço esmaltado mirando diretamente sua imagem distorcida refletida pela superfície aplana. Tinha suas dúvidas se poderia ficar mais acabada que já estava. Quiça um dia o reflexo possa contrariá-la.

A torneira dourada da esquerda jorrava litros d'água fria cristalina fazendo-a subir cada vez mais o nível. Abraçou gentilmente os joelhos trazendo-os para perto na tentativa de impedir que o líquido levasse seu calor embora. A baixa temperatura ajudava a se preparar para o interminável dia que ainda teria pela frente.

Aos poucos submergiu no meio aquoso. Deitada no fundo, soltou algumas bolhas de ar gordas que saiam da boca e subiam até chegar na superfície onde desmanchavam seu formato. Esse era um pequeno passatempo que adquirira com o passar dos anos. Era divertido vê-las ascender de maneira desengonçada até desaparecer no ar, assim como o som estranho que fazia quando eram formadas: blub blub blub.

“Ok, acabou a brincadeira” – Ditou mentalmente depois de terminar o devido banho.

Abandonou a banheira gelada e vestiu os trajes deixados em cima da privada. Nem lembrava que os havia pego antes do banho. Chegando no quarto, o desgosto – ou preguiça, como queira – não poderia ser maior: roupas por todo lado, garrafa de uísque completamente seca, cama desarrumada, quarto fedendo a álcool.

“Definitivamente hoje é um dia perfeito para se fazer um cosplay de maid”

Tudo ocorria tranquilamente até o momento. O trabalho estava quase concluído, exceto pelo cheiro forte delatando o ocorrido da noite anterior. Nada que umas borrifadas de um bom perfume não resolvesse.

“Uma anestesia diretamente no cérebro e na espinha cairiam bem agora”.

Quem sabe o médico que morava no fundo da mochila pudesse ajudar com as dores de cabeça e lombar.

Mais um belo dia para se estar viva!


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Notas finais do capítulo

Sinta-se livre para dedicar um pouquinho do seu tempo para dar sua crítica construtiva!



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