O Mágico e os Ladrões de Som escrita por André Tornado


Capítulo 2
Um dia de verão cheio de promessas




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Uma caixa telefónica azul de polícia materializou-se em plena luz do dia. Ninguém que passava pela rua parecia ter reparado nela ou nas duas figuras que saíram lá de dentro. Era como se sempre ali tivesse estado, aquela relíquia de outros tempos.

Ao sair para o exterior, Clara exclamou:

— Que dia de verão fantástico!

O Doutor, contudo, não partilhava do entusiasmo da sua companheira. Olhou muito sério para o céu claro e todo aquele silêncio bucólico parecia, de certo modo, extraordinário.

— Estou tão animada! – Clara dizia, pulando como uma criança no Natal prestes a receber os seus presentes. – É um sonho… quase um sonho tornado realidade. Nunca pensei que fosse possível conseguir os bilhetes para ir assistir a este evento maravilhoso! Dizem que teve lotação esgotada. Vamos fazer parte da História!

O Doutor resmungou, numa disposição oposta. Olhou do céu para ela, carrancudo. Preferia estar noutro lugar e não estava nada agradado com as perspetivas daquele dia. As voluntárias. E as dissimuladas.

— Hum…

— Vamos, Doutor… vais gostar deles. Eu sei que sim.

— Duvido muito.

Ela torceu a boca num esgar. Cruzou os braços.

— Criticas sempre os meus gostos. Quando sou eu que escolho um destino na consola acabo por ter de aturar uma dissertação tua sobre a minha decisão no momento da nossa chegada. Ou é o lugar, ou a pertinência histórica…

— Não é verdade! – contrapôs o Doutor, elevando as sobrancelhas.

— Então, diz uma coisa que eu gosto e que tu aprovas. Vamos, Doutor! Vamos, esclarece-me.

O Doutor olhou-a de baixo para cima, percorrendo-lhe a figura pequena e esbelta. Queria dizer-lhe que gostava das suas minissaias, mas achou melhor não fazer essa confissão. Ela estava a querer iniciar uma discussão e ele não pretendia seguir por esse caminho óbvio.

— Torta de cenoura? – arriscou.

— Eu não gosto de torta de cenoura.

— Oh, isso é novo! Tu sempre gostaste de torta de cenoura.

— Deves estar a confundir-me com um dos meus ecos.

Ele hesitou. Talvez estivesse mesmo a confundi-la com uma das suas várias versões, as Clara que vogavam dispersas pelo tempo e pelo espaço e que ele não conseguira salvar, apesar de todos os seus esforços e vontade. E sentia-se incrivelmente triste por isso.

— Desculpa.

— Sim, é bastante irritante quando fazes isso – disse ela, sem perceber que o Doutor não estava a desculpar-se apenas pelo engano. – Baralhares tudo. Dás a entender que talvez não te preocupas tanto com… com o que está à tua volta.

— Bem, Clara, quando temos várias vidas é normal termos tudo misturado.

Ela estalou a língua e não retrucou. Estava com raiva dele e não era assunto recente. Naqueles últimos dias, o Doutor tinha reparado que Clara não lhe respondia da mesma forma. Julgou que ela poderia estar mal-humorada por causa dos seus problemas terrestres, aquelas questões mesquinhas tipicamente humanas, mas agora percebia que era por causa dele.

— O que queres de mim, Clara? Levo-te sempre aos lugares que pretendes ir, deixo-te operar a consola e tomares a decisão mais importante da navegação, só fico a saber quando alcançamos o destino. E isso não basta?

— Não. Por vezes… ou todas as vezes não basta.

— Oh! Estamos aqui porque tu quiseste vir. Talvez eu deva ir onde eu queira ir.

Clara cruzou os braços e empinou o nariz.

— Vais deixar-me aqui e levar a TARDIS? Para veres esse jogo tão importante para a Humanidade? É um jogo de futebol! Há dezenas de jogos de futebol a acontecer todos os dias, por todo o lado.

— Não preciso de levar a TARDIS – esclareceu ele. – Posso ver o jogo num pub. É uma final. Qualquer barzinho miserável que tenha uma televisão vai transmitir o jogo entre a Alemanha e a Espanha que vai decidir, daqui a poucas horas, o campeão europeu. Preferia estar no estádio, sim. Usar um cachecol de adepto e cantar esses cânticos tribais que costumam entoar nas bancadas. Não é apenas um jogo de futebol, igual às dezenas que acontecem todos os dias – rematou ele, ácido.

— Está bem. Podes ir. Não me importo.

No entanto, o Doutor não moveu um músculo. Era verdade que ele queria ir ao jogo da final do Campeonato Europeu de Futebol, que iria acontecer naquele domingo, dia vinte e nove de junho de 2008, em Viena, capital da Áustria, mas não seria a mesma coisa se fosse sem a Clara. Para quem ele contaria factos interessantes sobre o desporto? Precisava de alguém que admirasse a sua inteligência.

Ele já tinha assistido a várias finais de futebol – até assistira à criação do jogo em si – mas aquela era especial, pois no campo iriam enfrentar-se a Alemanha e a Espanha, num encontro inédito para decidir o campeão da Europa. A Alemanha era a todo-poderosa no futebol, uma seleção aborrecida que tinha o adágio a coroá-la de que “no campo são onze contra onze e no fim ganha a Alemanha”; ou seja, que graça é que isso teria, se a Alemanha vencesse outra vez? Previsível e, portanto, aborrecido… Ele estava a torcer pela Espanha, obviamente, e até tinha bandeirinhas amarelas e vermelhas na TARDIS…

A outra opção ao jogo era o espetáculo que a Clara escolhera ir ver, que acontecia no mesmo dia de junho em Inglaterra, na pacata vila de Milton Keynes, situada a cerca de setenta quilómetros a noroeste de Londres, em Buckinghamshire. Nada havia ali de relevante ou que assinalasse o local no mapa dos grandes eventos mundiais. A não ser festivais de música no recinto chamado National Bowl, um antigo poço de barro onde antigamente se fabricavam tijolos, que foi transformado num anfiteatro rebaixado.

Quando o Doutor reparara na data de chegada no monitor da consola, vinte e nove de junho de 2008, entusiasmara-se. Contara sobre o campeonato europeu, elogiara a decisão da sua companheira, afirmara que era um daqueles jogos que ele sempre gostara de ir assistir ao vivo. E correra a decorar a TARDIS com as cores da seleção espanhola. Mas quando Clara lhe falara que estavam nas pradarias verdejantes da velha Albion e que iriam ver um concerto, em vez de uma partida de futebol, o seu entusiasmo murchou até a um nível quase nulo.

— O que têm de tão especial esses Linkin Park, afinal? – perguntou o Doutor, contrariado. – Parecem-me um bando de miúdos revoltados com o mundo.

— Eles são muito maduros! – defendeu Clara. – Bem… pelo menos a sua música é madura. Passou a ser, depois do seu álbum de 2007, chamado “Minutes to Midnight”. E como estamos em 2008, aqui e agora, vamos assistir a essa viragem na postura da banda. Eh… Sim, no início as suas canções falavam muito sobre angústia adolescente e aqueles problemas de miúdos desajustados, mas as novas canções têm mensagens políticas.

— Ah, mensagens políticas…

— O próprio título do álbum, Doutor – insistiu Clara, impaciente. – “Minutes to Midnight”! Minutos para a meia-noite. Aquele relógio que conta os minutos para o dia do Juízo Final… quanto mais depressa nos aproximamos da meia-noite, mais a Humanidade está próxima da aniquilação… As letras das canções dos Linkin Park são mais profundas do que parecem, à primeira vista. – E concluiu: – Eles são especiais.

— Espero que sejam mesmo, pela dor de cabeça que me estão a dar. Existem outras possibilidades relacionadas com a música que vão acontecer neste dia. Em Glastonbury também está a acontecer um festival e parece-me que será mais famoso do que este. Hoje vai lá cantar o senhor Leonard Cohen.

— Ah, sim? – apontou Clara, aborrecida. – E que mais?

— O Enrique Iglesias também vai cantar no jogo de futebol. – O Doutor olhou casualmente para o céu. – Se regressarmos agora à TARDIS ainda podemos apanhar a apresentação dele no relvado do estádio. E vamos estar em Viena, à noite dançamos uma valsa ao som do violino de Johann Strauss… com o próprio a tocar, numa receção social num salão de baile no século XIX.

— Pensava que podias ver o jogo num pub.

— Mudei de ideias. Afinal, tenho uma nave espacial que é uma máquina do tempo.

— Podemos, então, ver as duas coisas… Porque tu, Doutor, tens uma máquina do tempo.

— Começamos pelo jogo? – experimentou ele com um sorriso sedutor.

— Prefiro começar pelos miúdos revoltados.

O Doutor suspirou, aceitando a sua derrota.

— Vamos!

Clara surpreendeu-se quando ele agarrou na sua mão e a puxou na direção do recinto do espetáculo.


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Notas finais do capítulo

Próximo capítulo:
Entre a multidão.