Bravado escrita por Camélia Bardon


Capítulo 8
Honestidade




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Assim que Alice terminou o que estava fazendo – ou, ao menos, tentando –, afrouxou a mão que segurava minha camisa e me olhou com cuidado. Quanto a mim, o que pude fazer foi incorporar minha melhor expressão de "mas o que diabos a senhorita pensa que está fazendo?".

— Qual é o problema? — Alice indagou, com falsa doçura. — Não gostou do primeiro? Garanto que o segundo será melhor, é tudo uma questão de prática.

Levantei-me de supetão, fazendo com que a mão que ela usava para me segurar contra o banco pendesse logo em direção à madeira. Não me arrependi, entretanto, apesar da expressão de dor que ela emitiu ao massagear a mão dolorida. Também não pude desistir em olhá-la de cima para baixo, de braços cruzados.

— Qual é o seu problema, Alice? Se estiver carente, isto é problema exclusivamente seu. N-não tem o direito de me fazer de marionete, independente de se afeiçoar a Thomas ou não, continua sendo traição de vossa parte.

Alice jogou a bolsa por cima do outro, levantando-se cautelosamente. Dei um passo atrás, engolindo em seco.

— O que os olhos não vêm, o coração não sente...

— Só se for à sua terra. Dê-me licença, sim?

Daí, ela me segurou pelo braço, arquejando em desespero.

— Espere! Não pode contar a Thomas! Estarei arruinada em dois tempos se o fizer e...

— Arruinou a si própria com seus atos, Alice. O que pensou? Que eu saísse convosco para flertar? Estávamos compartilhando leituras, e não atração física! Pelo amor de Deus...

Eu não me lembrava de algum dia ter extrapolado tanto em matéria de sentimentalismo. Meu corpo estranhou igualmente a mudança de estado de espírito, alertando-me através da palpitação acelerada de meu coração que estava exagerando. Não há problema em ficar zangado, querido, lembrei-me de minha mãe ensinando quando era mais novo. O que importa é o jeito que demonstra que está. Sinto muito, mãe, é mais difícil na prática...

— Sinto muito se minha aproximação deu a entender que tinha segundas intenções — suspirei, coçando a nuca. — Entretanto, há também o lado de que a maldade está tão-somente nos olhos de quem vê.

— Eu... Não entendo... — soltando-se de meu braço, Alice abraçou o próprio corpo com cuidado. Seu tom de voz já não era mais agressivo; pelo contrário, dera lugar à curiosidade. — Como pode me rejeitar? Por acaso vosmecê... Não... Afeiçoa-se a mulheres...?

Senti minhas bochechas pegando fogo diante da indagação. As mulheres eram curiosas, a meu ver. Aliás: seres humanos e suas linhas de raciocínio abstratas eram curiosos à parte. Respirando fundo, neguei com a cabeça, fazendo com que ela desviasse o olhar para o chão.

— Não é o único motivo para um não querer beijá-la, Alice. És sim, muito bela e simpática. Mas já há outra pessoa em meu coração e... Não funciona para alguém comprometido ter qualquer tipo de relação que não seja com o parceiro. Não deveria ser eu a dizê-la essas coisas, não concorda?

Engolindo em seco, Alice segurou com firmeza a alça da bolsa, deixando os ombros caírem.

— Eu vou embora, agora. Vosmecê e Thomas devem se resolver quanto a isso, mas não espere que eu não conte.

Ela se deu por vencida, baixando a cabeça e assentindo. Quanto à minha pessoa, o que podia fazer além de girar nos calcanhares e retornar para casa? Senti-me mal por deixá-la sozinha, porém não podia ser parcial com essa situação. Tenho certeza de que, se fosse Thomas em meu lugar, faria o mesmo... Certo?

Subir toda a Rua Ramponeau de volta foi um custo, ainda mais quando parecia que cada uma de minhas pernas pesava vinte quilos. Tia Lilian me cumprimentou com um aceno de piteira – coisa que parece ridículo dito assim, mas a definição era bem melhor vista ao vivo, com o charme quarentão que apenas ela conseguia reter –, olhando para o nada como se visualizasse toda a vida passando diante de si.

— Vai um trago aí, franguinho? Um gole de conhaque? — com toda sua delicadeza inexistente, tia Lilian gritou de onde estava. — Está com uma cara péssima!

— Quem sabe em alguns anos! — devolvi, rindo sozinho. Daí, ela deu de ombros e voltou a se concentrar na tarefa de contemplar o vazio.

Não encontrei Thomas de imediato, isso porque ele não estava nem no jardim e em na biblioteca, como habitual. Nosso quarto também jazia vazio. Só me restava uma opção, e esta era a mais abstrata possível: pedir ajuda ao senhor meu pai, a criatura mais desligada do plano físico possível. Este, sim, encontrava-se na biblioteca, debruçado sobre algumas peças de metal que a mim mais pareciam sucatas do que algo útil. No entanto, era meu pai; se havia algo que Harvey Banks sabia fazer com maestria era enxergar beleza em coisas improváveis.

— É... Pai? — chamei, tirando-o momentaneamente de seu estado contemplativo. Erguendo os olhos marcados pelo pince-nez, pensei que poderia emoldurar essa imagem em minha memória. — Desculpe. Sabe onde está Thomas?

— Eu? Tom? Ele não está aqui? — meu pai olhou ao redor, confuso e com a testa franzida. — Poxa vida, tem só alguns minutos que ele Tom veio aqui... Acho que me perdi nessa coisa toda.

— O que é?

Bem, se eu seguiria uma carreira oposta à dele, ao menos um pouco de reverência seria suficiente para mostrar que eu não a desprezava – apenas não havia me afeiçoado do mesmo modo. Quer dizer, o que meu pai fazia era certamente digno de toda admiração, no entanto julgar que por isso eu seguiria exatamente a mesma trilha... se tratava de um equívoco sem tamanho.

— Isso? Ah, é um telefone intercomunicador. Não é muito potente, mas serve para comunicação entre dois pontos numa mesma casa. Tia Sienna quer aproveitar para instalar um para poder chamar o esposo no escritório quando o novo bebê chegar.

— E para isso, há o senhor.

— Para isso, há a minha pessoa. Precisamente.

Ri com ele das injustiças da vida – um inventor aposentado agora fazia bicos para a família da esposa. Que também era a família dele, por sorte. Dei de ombros, fingindo erguer uma taça de champanhe.

— Às maravilhas das tecnologias e os parentes que sempre agirão da mesma forma para todo sempre.

— Um brinde — devolvendo o gesto, meu pai riu, retirando o pince-nez e o deixando ao lado das peças desconjuntas. — Pensei que não se interessasse por estas matérias, Alexander.

Não me interesso é um termo muito forte. Gosto de observar o funcionamento, principalmente quando não faz sentido à primeira vista.

Desta vez, papai gargalhou, arrumando os fios de cabelo rebeldes – apesar de nós dois sabermos que aquilo era fisicamente impossível. Daí, ele olhou para mim, trocando o foco de atenção.

— E o que quer com Thomas, pode-se saber?

— Como assim, o que quero? Conversar, nada demais... Jogar conversa fora, papear, qualquer outro sinônimo que capte bem a ideia...?

— Sei. Pelo que bem sei os dois senhores não se batem muito bem.

Abanei uma mão na frente do rosto, negando o óbvio.

— É exatamente esta a palavra. Batemo-nos muito bem.

— Alexander Banks, pense duas vezes antes de fazer piadinhas com o seu velho pai.

— Eu? Jamais, foi o senhor quem as ensinou a mim, pensando que nunca as repetiria.

— Ah, e este foi o meu maior erro... — dramatizando de brincadeira, ele colocou as costas da mão na testa. Entretanto, respirou fundo e colocou as palmas das mãos sobre a mesa. — Agora, falando sério. Qual é a desavença que existe entre vocês dois? Quando eram mais novos costumavam ser tão unidos... Mas depois que Evan e Elena nasceram não queria mais papo a não ser o necessário.

Dei de ombros mais uma vez, não sabendo exatamente o que lhe responder que contentasse. Eu mesmo não sabia qual era o problema, uma vez que não tinha absolutamente nada contra Thomas. A não ser...

— Ah... Se for o que estou pensando, sei a pessoa perfeita para dialogar. E não sou eu, porque não tenho propriedade ou experiência para tratar do assunto.

— É? Por quê?

— Porque eu sou filho único... E para problemas com irmãos é necessário encaminhar  o caso para um especialista na área. É assim que se diz na sua profissão, não é?

Sorri com a sua tentativa. Meu pai era um cara muito legal, principalmente no quesito criar cinco filhos com personalidades completamente destoantes umas das outras. Mas, é claro, por trás de tudo isso sempre havia a mamãe para que ele não surtasse de uma vez só.

— Bem... Penso que sim. Quem tem em mente?

— Eu tenho em mente... — fazendo um suspense cômico, meu pai cerrou os olhos. — Sua tia Sienna é a pessoa perfeita para conversar sobre isso. Aproveite que ela ainda está na fase da gravidez que não sente complicações e o humor está impecável.

Nós rimos juntos, com direito a uma respirada funda ao final. Colocando uma mão em meu ombro, ele sorriu gentilmente e ainda deu um leve apertão para garantir que se importava. Pelo menos se não me resolvesse com o problema Thomas-Alice, aquilo bastaria.

— Obrigado, pai. Assim que fazer o que preciso, procurarei a tia. Tudo bem?

— Como quiser, foi só uma sugestão — ele piscou, recolocando os óculos com calma. — Espero que as coisas corram bem. Se por acaso esbarrar com a sua mãe por aí, pode pedir para que ela venha me ajudar com esse trambolho?

Assenti com a cabeça, rindo tanto do uso da frase quanto da dinâmica entre os dois.

— Daria para fazer isso se o telefone já tivesse sido instalado...

— E o senhorzinho seria bem menos insolente sem uma língua, não concorda?

Gargalhei, acenando antes de me retirar do cômodo e partir pela segunda peregrinação por Belleville.

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Finalmente encontrei Thomas após revirar a casa inteira: escorado no sofá da sala, os sapatos aposentados ao lado e as pernas estendidas no estofado confortavelmente. Pelo que entendi, estava esboçando uma flor que não reconheci, cuidadosamente. Engoli em seco, pigarreando para chamar a atenção dele. Ao me notar, Thomas jogou a cabeça para trás e piscou.

— Ah! Oi. Tudo bem aí?

— Eu... Sim, estou. Preciso conversar convosco.

Thomas ergueu uma sobrancelha, ajeitando-se no sofá. Entendi a deixa para me sentar ao seu lado no espaço vago; ao invés do gesto me acalmar, eu senti a pulsação correndo como se não houvesse mais amanhã.

— Precisa de ajuda com alguma coisa?

Esta sempre tem de ser a opção? Thomas, eu preciso de vosmecê?

— Não. Eu vim aqui para informá-lo de algo que ocorreu que o envolve indiretamente.

— Estou ouvindo.

Daí, contei a ele sobre tudo que podia – os passeios pelos sebos ambulantes às margens do Panteão, as idas e vindas pelo Jardin des Plantes e, finalmente, dos eventos que antecederam e sucederam aquele beijo. Deixei de lado o verdadeiro motivo por ter ido atrás de Alice, que continuava sendo seu comportamento estranho de tempos para cá, porém a cada vez que o olhava de relance seu olhar se anuviava mais e mais.

— Então, se bem entendi, vosmecê beijaste minha namorada — Thomas concluiu, após alguns minutos em silêncio.

Ela me beijou — corrigi. — Sequer correspondi, no entanto quis contá-lo logo para...

— Para que ela não o difamasse?

Pigarreei desconfortável.

— De certa forma sim, apesar de não me sentir incomodado em ser difamado numa cidade que sequer é minha, e sabes como a reputação de um homem jamais fica manchada, uma vez que...

— Está mentindo.

Percebi estar tagarelando apenas quando Thomas pronunciou sua sentença final. Pisquei um tanto confuso, me virando para olhá-lo nos olhos. Sua expressão parecia completamente absorta, perdida em pensamentos.

— Me escute, Thomas. Sei que não é fácil de ouvir algo do gênero, contanto que motivo teria para mentir?

— Porque sempre quis estar no meu lugar — ele murmurou, quase como num rosnado. — Quis a atenção que nossos pais me deram por ser o mais velho, minha personalidade... E realmente achou que o melhor jeito era tomando o que era meu de forma literal. Todos nós sabemos que sequer gosta de mulheres e que queres disfarçar do melhor modo, Alex.

Isso só podia ser um pesadelo. Eu acordaria em breve, e não passaria de um sonho.


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Notas finais do capítulo

Não me prolonguei muito nas notas iniciais porque era a continuação, mas quanto às finais... gente, que insistência é essa do pessoal apitar o radar errado pro menino Alex? Tá certo que não é ofensa, mas... na época era, né?
Ai, Thomas, eu confiei em você... *facepalm*



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