Bravado escrita por Camélia Bardon


Capítulo 6
Certas coisas nunca mudam


Notas iniciais do capítulo

Some things never change, like how I'm holding on tight to you ♪ opa, canal errado! xD
Boa leitura ♡



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Após o desastre que foi o jantar em "família", invadido por Alice, eu me esforcei em fazer vista grossa com Thomas. Já que ele não iria dizer qual era o problema com Alice ⎼ melhor dizendo, qual não era o problema com Alice ⎼, eu também me resguardei de comentários. Não podia ser possível que ele não reparasse no olhar ressentido com que Adele o fitava, ultimamente. Até mesmo Gabrielle já havia olhado para mim com uma expressão de quem pede socorro quanto às atitudes da irmã. Portanto, eu resolvi tomar uma medida drástica.

Eu falaria pessoalmente com Alice. Está certo, não poderia ser tão difícil falar com uma garota que não fosse as que estou habituado, não é? Não daria para chegar bom um bloco de anotações, uma bengala e uma boina, mas já era um começo… 

Então, no 30.º dia em contagem regressiva, lá estava eu fingindo segurança ao caminhar pelas ruas de Paris até o Quartier Latin, um punhado de francos nos bolsos e um projeto de sorriso ladino que muito provavelmente parecia dor de dente a quem olhasse.

Segundo Thomas, Alice saía de Sorbonne por volta desse horário, dava uma volta pelo Jardin des Plantes e ia para casa. Foi isso que fiz, mesmo que tenha parado para aproveitar a bela vista do local. Era um longo caminho verde e florido, que mal havia nisso?

Aguardei por cinco, por dez, quinze minutos. Estava desistindo da empreitada, quando escutei ao longe:

― Ei!

Me virei para olhá-la, quase me borrando nas calças. Meu coração ansioso disparou; ela desconfiava de alguma coisa. Sabia que estava ali para arrancar informações dela. Pior: ela queria usurpar o meu irmão e fazer ele de testes farmacológicos na seita de Sorbonne. Ah meu Deus, isso sequer fazia sentido!

― Está perdido por aqui, é? Parece que sim ― Alice riu, se aproximando. ― Veio ver a Universidade? Thomas comentou que vai para Cambridge mês que vem… 

Santo Deus, obrigado.

― Eu… não! Estava tentando lembrar onde ficava um sebo que visitei há pouco… creio ter errado o lado do parque, provavelmente era do lado do Panteão ― ri fraco, envergonhado de precisar mentir para me safar.

― Que bom que lhe encontrei, então. Estou indo para lá agora, posso lhe situar se assim for melhor. O que acha?

Assenti com a cabeça, passando para seu lado direito. Tenho alguma obsessão por caminhar do lado direito das pessoas… não por superstição nem nada, é que o alinhamento para escutar parece ser melhor quando se escuta desse lado. Como quase não abro a boca, é bem conveniente.

― O que está pensando em comprar? ― ela indagou, tentando puxar assunto. De certa forma, Alice me lembrava Thomas nesse aspecto. ― Eu vou comprar um livro para a aula. Quer dizer, se achar, porque os da biblioteca tem um prazo de validade muito pequeno para devolver, e eu odeio ficar indo lá devolver e renovar toda hora… 

― Literatura ― murmurei. ― Os Irmãos Karamazov. É… de um escritor russo.

― Ah, eu já ouvi falar. Para te ser sincera, não gostei muito da proposta, me pareceu muito melancólico no fundo do poço, sabe? Russos geralmente têm esse estilo de escrita, assim como ingleses têm a tendência de serem cruelmente realistas quanto à sociedade.

Não consegui evitar de me sentir intimidado com o comentário de Alice. Para mim, livros eram livros e, por serem livros, eram dignos de serem lidos. Eu não era muito atento a esses detalhes narrativos, principalmente por não ter preconceitos. Mas, se Alice fazia esse tipo de comentários, sabia do que dizia.

E isso era, de longe, um problema. Como eu poderia ser imparcial assim?

Pelo visto, deixei óbvia minha expressão, ao passo que ela riu baixo.

― Mas não é porque eu não gosto que seja ruim, querido. Entendeu?

― Sim, claro. Eu… ― pigarreei. ― Minha mãe diz que, se duas pessoas não discordam em opiniões, não abre espaço para um debate. Daí, todas as relações seriam mornas.

― Sua mãe é uma mulher muito sábia ― Alice sorriu. ― Embora tenha notado que um tanto quieta. Teve a quem puxar, não?

Ah, ela não é quieta, só estava a estudando… vá se enganando com a minha mãe, que quando menos esperar ela lhe dá um bote certeiro.

― Ela é… reservada. E certamente não puxei a meu pai ― ri fraco, coçando a nuca.

― Thomas me contou que cursará Psicologia no próximo mês… acha que essa questão de personalidade pode ser passada de pai para filho? Pode me responder com mais certeza quando retornar.

Ponderei a pergunta por alguns minutos, suficientes para atravessarmos o pátio verde do Panteão para o Quartier Latin. Quando caminhamos em frente ao café onde eu e Adele passamos a tarde, anunciei:

― Creio que não. Imagino que a personalidade seja mais delineada pela influência do meio ambiente, a época, a cultura, a criação individual… ― pauso a narrativa para pensar nas falas seguintes. Se já é difícil articular pensamentos com pessoas com quem estou habituado, com quem não tenho intimidade é um labirinto, cheio de artimanhas pelo caminho. ― Como tenho mais convívio com minha mãe do que com meu pai, então… é natural que eu apresente suas manias e trejeitos. Entende?

Alice assentiu com a cabeça, o que me fez dar alvíssaras mentais por ter enunciado uma frase com sentido total talvez pela primeira vez na vida a uma pessoa com pouco contato.

Estava mesmo ficando bom nisso.

― Um pouco como os genótipos e fenótipos de Mendel, não é?

― Eu… com certeza! Claro, claro. 

E… eu comemorei cedo demais. Certas coisas nunca mudam, não é? Já me senti parte da poeira do chão novamente. Quem era Mendel, meu Deus?

― Faz sentido, até. Quando tiver a resposta real, adorarei ouvi-la ― Alice sorriu uma vez mais. Ela não era tão detestável, afinal. Talvez fosse só o meu estranhamento e empatia por Adele falando mais alto. ― Cá estamos, Quartier Latin. Acha que encontra seu poço de melancolia por aqui?

Ri fraco, brincando com as moedas em meu bolso.

― Espero que sim! Senão, valeu o passeio.

Alice sorriu, com as bochechas coradas, e então desviou o olhar para os livros na pilha atrás de mim. Meu Deus, isso soou como um flerte. Não, não foi um flerte, eu jamais flertaria com uma namorada do meu irmão. Que horror, Alexander… 

― Concordo ― ela comentou, com o nariz enfiado em um livro fino. Dava para ver uma sobrancelha arqueada e o sorriso ladino de onde eu estava. ― Podemos voltar mais vezes, a companhia é agradável.

Oh-oh. Para me estabilizar, pigarreei, procurando o volume que provavelmente se encontrava na pilha identificada como "literatura estrangeira". Ou será que estaria em "clássicos"?

― Então… como você e Thomas se conheceram, mesmo? Eu estava um pouco fora de órbita quando você explicou.

― E Thomas não contou? 

― Ele é reservado. E não costumamos falar desses assuntos.

― Do que costumam falar, então?

Desviando o assunto. Está bem que ela já havia dito, mas pela minha experiência com mulheres, se há algo para ser dito, é dito na hora. Se não é dito, é porque há algo que não estão expondo por completo. E vim aqui apenas para isso. Mas para que ela falasse, eu deveria dançar conforme a música.

― Sobre… livros. Botânica. Faculdade. Assuntos de nosso interesse pessoal e que não necessariamente interferem na vida um do outro, em suma.

― Ah, isso explica ― Alice riu baixo, pegando mais um livro para folhear. ― Bem… como disse no jantar, nos conhecemos em Sorbonne. Thomas foi utilizar a biblioteca particular e nos conhecemos ali. Eu o ajudei com o livro que queria encontrar.

― É mesmo? Uma aluna de Farmácia geralmente sabe onde ficam os livros de Botânica?

Alice mordeu o lábio inferior, pensativa.

― Bem… ambas as áreas estão correlacionadas. A maioria dos remédios farmacológicos vieram de estudos botânicos. E a maioria dos remédios por manipulação vem da junção das descobertas químicas e naturais. Entende?

― É claro. Imagino que óleos de cobra irritem tanto a farmacêuticos quanto botânicos.

Alice gargalhou, quase derrubando a pilha em que eu estava procurando. Seguro-a para ela, encontrando o volume no ato. Se o meu forte era comédia imprevisível, eu deveria começar a regular mais a frequência com que as piadas apareciam.

― Ah, céus, me perdoe ― ela respirou fundo, me auxiliando a organizar a pilha sob o olhar rígido do dono do sebo. ― Mas, sim. Óleos de cobra são uma vergonha. Se eu pudesse, saía pela noite como justiceira para desmascarar todos esses salafrários que os comercializam. 

― Thomas adoraria essa ideia. Convide-o para um encontro mascarado.

― Anotarei a sugestão ― Alice rodopiou por entre os livros, pagando pelos que levaria. Fiz o mesmo com meu volume amarelado e adorável de Dostoiévski. Se ela não estivesse ali, eu já estaria o cheirando compulsivamente. ― E o senhor? Nada radical como desmascarar salafrários no currículo de emprego, Alexander?

Neguei com a cabeça, dando de ombros. Iniciamos nossa caminhada de volta; ela para Sorbonne, e eu para Belleville.

― Felizmente, minha vida tem a emoção de uma mosca. Eu vejo tudo, ninguém me vê, e morro em paz.

Alice gargalhou, cobrindo os lábios com os livros.

― Que horror… 

― Eu… me permite fazer-lhe mais uma pergunta, Alice?

Ela ergueu uma sobrancelha, aparentemente surpresa com a intervenção. Era difícil manter em mente o objetivo de minha "visita ocasional" até ela se não fizesse as perguntas certas. Quem sabe quando eu teria uma chance dessas novamente?

― Thomas e a senhorita engajaram um relacionamento agora… e, no entanto, falta apenas um mês até retornarmos para Londres concluir os estudos. Como se sente com isso? 

Alice brincou com a alça da bolsa pendurada a tiracolo. Seu desconforto era quase palpável; se eu tinha dúvidas se os sentimentos de Thomas eram fortes por ela, com Alice eu podia vê-los estampados em sua expressão facial e corporal. Isso me fazia questionar pela enésima vez o que Thomas tinha de tão magnético que atraía as pessoas a orbitarem tão facilmente em torno de si.

― Eu… ainda não sei. Contudo, conversamos sobre isso e… pretendemos manter correspondência até onde for possível. Até lá, ainda há chão e é nisso que pretendo focar. Gosto de meditar no "amanhã pensarei no amanhã".

― Entendo ― sorri, trocando o peso dos pés. ― É um bom mantra. Obrigado pela sinceridade.

― Tudo bem. É… bem, eu já vou indo. Foi um prazer encontrá-lo, Alexander.

― Ah, por favor, Alex está bom ― sorri, abusando de minha sorte. ― E compartilho da opinião. Espero que nos vejamos com maior frequência. 

Ela assentiu com a cabeça, arrumando as saias para que não arrastasse no chão enquanto andava. Observei enquanto ela partia pelo caminho que fizemos, desaparecendo por entre o verde dos jardins e as colunas enormes do Panteão. Alice sequer olhou para trás, então girei nos calcanhares e tomei rumo para casa.

Quando estava prestes a subir a longa Rue Ramponeau, olhei de relance para a boulangerie dona dos famosos pães doces em que eu era viciado. Fui atraído pelo cheiro e pelas moedas tilintando em meus bolsos, e dei melhor uso a elas comprando dois embrulhos para a Casa Bretonne.

Um eu iria comer, mas acabei dando-o à tia Sienna, que encarava as paredes da casa como se fossem obras de arte. Coisas de gravidez, supus. Já o segundo, deixei pendurado na maçaneta do quarto de Adele, para que ela o recolhesse quando acordasse dos cochilos habituais. Em seguida, tomei o caminho de meu quarto e me esparramei na cama, abrindo o livro e cheirando-o como merecido. Me arrependi amargamente, visto que o cheiro de mofo é bem mais forte do que o previsto. Sem pensar duas vezes, deixei-o aberto na janela para pegar um sol e voltei a me deitar, pensativo.

Aquela história de se esbarrar ocasionalmente para ajudar a encontrar livros perdidos estava muito mal contada…


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Notas finais do capítulo

Será se Alice é tão ruim assim? ~toca a música do Umavezildo, produção~
Cês também acham que tem algo estranho aí ou que é só paranoia dele?
Obrigada como sempre pelo carinho, a gente se vê de novo em breve ♡



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