(Re) Nascer escrita por EsterNW


Capítulo 14
Tentativas


Notas iniciais do capítulo

Música do capítulo: Canção Pra Não Voltar de A Banda Mais Bonita da Cidade.



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— Quer mais um pedacinho de bolo? — dona Gleice ofereceu para Lysandre, quase colocando um pedaço sobre o prato do rapaz. 

O fazendeiro negou com a cabeça e a senhora deixou o pedaço sobre o prato vazio de Chico, que agradeceu, ainda atento à conversa com Marina.

— A dona Cida andou falando de arrecadar dinheiro da comunidade pra reformar a escola — ela contou, com a conversa permeando por assuntos aleatórios da vila, que preencheu a interação naqueles três quartos de hora em que os cinco estavam na cozinha.

O trabalho da pintura da casa ocupara praticamente a tarde inteira e, não querendo deixar Lysandre e Chico irem embora de barriga vazia, dona Gleice convidou-os para um café tardio. A mesa redonda da cozinha estava cheia, com apenas uma cadeira sobrando. Era um cômodo encantador e delicado, com cortinas de renda branca na janela e puxadores de crochê na porta da geladeira e dos armários. Lysandre tinha vontade de ficar ali o quanto fosse possível, apenas ouvindo a conversa em companhia daquelas pessoas.

— Clari, faz um favor pra sua vó? —dona Gleice pediu para a neta, sentada na cadeira ao lado da dela. — Põe aqueles restos de comida pros porcos pra mim? — Apontou com a cabeça para um balde de alumínio debaixo da pia.

A veterinária levantou-se sem cerimônia, pegou o objeto e se retirou da cozinha, dirigindo-se para a saída na porta da frente. 

— Seu Juca falou que parte do que arrecadarem com a quermesse vai pra reforma da escola — Chico contou, continuando no assunto que Marina iniciara.

— Tão falando muito bem dessa quermesse, né? — dona Gleice meteu-se de volta no assunto. — Fiquei só ouvindo a Clarice contando como foi quando ela foi no sábado passado. Vocês se divertiram bastante, não foi? — ela voltou-se para Lysandre, que estava a uma cadeira de distância, tendo apenas a cadeira que fora de Clarice os separando.

— Sim, foram bons momentos juntos — ele afirmou, terminando de tomar o café. — Acredito que tenha sido uma das melhores edições que fui — concluiu, levantando-se e recolhendo as louças usadas.

— Eu e a Marina vamos com a Clarice na última semana agora, vamos ver se vai dar… — Dona Gleice virou o rosto, vendo o fazendeiro se aproximar da pia para colocar dentro dela o que carregava. — Deixa isso aí, menino! Vocês são convidados, não vão lavar a minha louça, não — reclamou, deixando a mesa e indo para perto dele.

Lysandre afastou-se e viu Marina rindo da atitude da mãe. Apesar de séria e sisuda a maior parte do tempo, a caçula de dona Gleice ainda tinha seus momentos. Percebendo que ela estava mais absorta na conversa com Chico, Lysandre disse que ia conversar com Clarice do lado de fora. 

Saindo pela porta da frente, sentiu o vento gelado que estivera presente o dia inteiro, sendo obrigado a retirar a camisa fina que estava amarrada na cintura e colocá-la de volta sobre a camiseta cinza manchada de tinta.

— Essa noite vai fazer um frio — Clarice afirmou, aproximando-se dele e arrumando o coque que usou para prender os fios castanhos durante a tarde. 

A moça se sentou em um dos degraus da escada da varanda e Lysandre fez o mesmo. Ainda podia se lembrar das tantas vezes que fizeram isso quando mais novos. Depois de um bolo com achocolatado preparado por dona Gleice, perdiam-se em conversas e risadas no fim da tarde. 

O céu começava a se pintar de azul escuro e as estrelas e a lua minguante pontilhavam a escuridão da noite. Diferente da cidade, ali no interior eram incontáveis. Essa era uma das vantagens de se viver longe da cidade grande e mais perto da natureza. Porém, era apenas um dos poucos positivos na troca.

As cigarras e os grilos compunham a sinfonia da noite, com seus cantos e cricrilar de sempre. O vento carregava o som para longe, espalhando-o pelos campos da fazenda Guimarães. Os demais animais da propriedade estavam ao longe, prontos para começar a adormecer na rotina natural. A única coisa a incomodar-lhes era o cheiro de tinta bem perto de seus narizes. 

— Você sabia que é mentira aquilo que contavam pra gente da cigarra cantar até explodir? — Clarice puxou o assunto de repente, deitando a cabeça sobre o começo da escada e olhando de lado para o amigo.

— Quando crianças, jurávamos que era verdade — Lysandre pontuou. — Achamos pedaços de uma em uma árvore, certa vez.

— Só que não era bem um pedaço de uma cigarra explodida, sabia? Só fui saber isso uns anos atrás — Clarice continuou. — As cigarras machos que costumam cantar pra atrair as fêmeas ou quando estão sob ameaça de algum predador — finalizou, fazendo com que o fazendeiro erguesse a sobrancelha. 

— Aprendeu isso na faculdade? — questionou e recebeu um aceno positivo de cabeça.

— A gente aprende umas coisas na faculdade que não sabe nem pra que vai usar — a veterinária comentou rindo.

— Talvez possa usar como assunto para iniciar conversas — o fazendeiro incentivou, apoiando o cotovelo no corrimão da escadinha e voltando os olhos diretamente para a amiga, esquecendo a noite que tomava forma à frente.

— Até porque é muito minha cara falar coisas aleatórias assim. — Os dois compartilharam uma risada, que foi morrendo aos poucos e decaindo para o silêncio. As cigarras ainda cantavam. — E você? Tem alguma informação aleatória assim? — ela incentivou, recebendo uma negação com a cabeça como resposta.

Os dois ficaram em silêncio e os grilos decidiram voltas a preenchê-lo, cricrilando por perto.

— Como foi essa semana pra você? — a veterinária puxou o assunto de repente.

— Boa — Lysandre deu uma resposta automática. — Consegui trabalhar, apesar da gripe… — Por fim, Lysandre acabou contando um pouco sobre a fazenda, porém, não quis delongar-se muito, supondo ser algo desinteressante.

O que teria de empolgante para contar sobre os últimos tempos? Tirando o mais do mesmo, poderia contar nos dedos. 

Clarice apenas assentiu, mordendo o lábio e desviando os olhos do amigo para a noite em frente.

— Queria dizer algo? — Lysandre questionou, sabendo ler as expressões da amiga como ninguém. Convivência fazia isso. A amizade de anos com alguém fazia isso, permitindo conhecer cada detalhe e peculiaridade da outra pessoa.

— Eu só… — Ela limpou a garganta, sentindo a voz baixa demais. — Andei pensando nas coisas que você me contou semana passada, sabe? — ela voltou os olhos para o amigo, vendo o rosto lívido e percebendo que o pegara de surpresa com o assunto. — Eu… — A voz da moça quase morreu, procurando as palavras certas para dizer. Não que ela pisasse em ovos daquela vez. Apenas queria ter todo o cuidado quando se tratava dos sentimentos do amigo. — Queria achar um jeito de te ajudar.

— Eu não preciso de ajuda, Clarice. — Ele tocou uma das mãos da moça, suavizando a voz para que a resposta não soasse ríspida demais. — Estou bem do jeito que estou — disse, sabendo exatamente no que a moça estava pensando. 

Era por isso que evitava falar do que o afligia. Agora tinha mais uma pessoa preocupada para a conta. Não que se incomodasse com isso, pelo contrário, queria que eles não se incomodassem com ele. Não queria ser um peso para ninguém. Mesmo que isso significasse sentir o aperto no peito por mais um dia. Sabia que era apenas reflexo da angústia não sentida, entretanto, nada queria fazer quanto a isso. 

— Todo mundo precisa de ajuda um dia, Lys. — Ela voltou os olhos castanhos diretamente para os coloridos dele, não tendo medo de sustentar seu olhar. — Ninguém deveria lidar com tudo isso sozinho. — Ela afagou a mão com a qual Lysandre segurava a dela, não querendo soltá-lo. — Você não está sozinho pra lidar com tudo isso.

Lysandre balançou a cabeça, retirando a mão do contato com os dedos de Clarice. O frio começava a tornar gélidos os seus dígitos, que preferiu colocar nos bolsos da calça jeans.

— E o Leigh? 

— Vem me visitar nessa quinta feira — respondeu sucinto, referindo ao feriado que teriam nos próximos dias. 

Clarice percebeu o ar soturno que o fazendeiro adquiriu e perguntou-se se tivera uma abordagem errada para o assunto. Mas, não podia deixar aquilo de lado.

— Essa fazenda é tanto dele quanto sua, sabe — ela disse de repente, fazendo com que Lysandre volvesse o olhar para ela. — Eu sei que você resolveu morar aqui porque não queria que ela fosse alugada, porque não confiava nas outras pessoas e tudo mais — adicionou, referindo-se à conversa que tiveram na cozinha de Lysandre, onde ele abriu o coração e o baú de memórias para ela. — Mas você não precisa lidar com tudo isso sozinho, Lys — ela insistiu, no que o fazendeiro pareceu recuar no seu canto.

— Eu te expliquei porque devo ficar aqui — ele insistiu, relembrando das exatas palavras que usara naquela noite, quando recordava da conversa que tivera com Leigh na sala.

— Eu sei, eu sei que você precisa ficar aqui — ela suavizou a voz, tomando todo o cuidado com o assunto. — Mas isso não significa que você precisa se enterrar aqui, entende? Vivendo todos os dias uma vida que você nunca quis. — Lysandre prontificou-se para responder, porém, Clarice o interrompeu, tocando o joelho do fazendeiro com a ponta dos dedos. — Você poderia, sei lá… — Ela mexeu os ombros, voltando os olhos para o céu e tentando pensar longe. — Fazer um EAD. Assim não precisaria sair da cidade e poderia fazer algo que você queria, só que de uma forma diferente. De uma forma adaptada à sua nova vida.

— Eu não teria como pagar isso. O dinheiro que conseguimos com as vendas dos vegetais e do queijo apenas serve para manter a fazenda e o Chico — Lysandre rebateu como desculpa, apoiando os cotovelos sobre os joelhos e abaixando-se para olhar mais de perto para Clarice.

Ele lia a preocupação em seus olhos, o cuidado em seus gestos e a preocupação nas palavras que não dizia.

— Está tudo bem assim, Clarice. — Ele afagou a mão da veterinária, na tentativa de reassegurá-la. — Às vezes não podemos ter tudo o que queremos na vida — soltou ligeiramente melancólico e levantou-se do degrau da varanda, pronto para voltar para dentro da casa.

— Lys — Clarice chamou, fazendo o amigo parar e voltar o rosto para ela. A veterinária segurou a respiração, incerta do que dizer. Não queria estragar tudo com aquela conversa, não era a hora certa de insistir no assunto. — Não esquece que eu tô aqui, tá? Qualquer coisa… Procura ajuda. 

Os dois se encararam à meia luz que vinha do lado de dentro e o fazendeiro assentiu, evadindo-se daquela conversa e voltando para dentro da casa.

Clarice apoiou o rosto sobre a mão e suspirou. Esquecera como Lysandre poderia ser teimoso quando queria.

A questão principal a preocupá-la não era a teimosia do amigo, mas o que ele guardava por dentro. Talvez, apenas ele pudesse acessar os sentimentos que escondera dentro de si.  


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Notas finais do capítulo

Canção Pra Não Voltar, A Banda Mais Bonita da Cidade: https://youtu.be/kTS64qgHuIo
Acharam que a Clarice não ia lembrar daquela conversa com o Lys? Ela joga as coisas na cara sem dó xD
Até mais, povo o/



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