Virgínia e os Saltamundos escrita por PatrickTulher


Capítulo 1
Capítulo I


Notas iniciais do capítulo

Não ligue caso as histórias paralelas pareçam confusas. O tempo há de unir as pontas das cordas.



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O vento era breve na terra. Mergulhava-se nas matas das mais diversas cores e espécies, envolvia enfim toda a extensão dos acres florestais até as camarções mais distantes, num frescor petricor e silvestre.
     Quando encontrava este um monte para escalar, o fazia; recortava os penhascos mais íngremes, flamulava as árvores mais longíquas e os olivais mais caprichosos.          Por vezes ia ao mar e às lagoas, espalhando pelos litorais íntimas e úmidas nebulosas de maresia, cuja delicadeza inebriava os que pela insolação sofriam, estando às margens destas extensões aquáticas.
       Era enfim, uma tamanha força desta natureza que tudo nos dá. Era o próprio vigor e poderio; e dispondo destas características, poderia inclusive alcançar o topo magnânimo da mais pontuda e alta das montanhas, alta o bastante para alcançar o lume obscuro dos cosmos superiores e dar ao indivíduo que alcançá-lo o vislumbre pleno das estrelas e constelações.
         O vento; era ele breve na terra, e ainda que breve, subiu seixo por seixo, pé por pé, até o topo continental, como um carrossel zéfiro e lírico a flamular delicadamente a túnica de um alguém que lá jazia recostado num resto de meteorito, a meditar consciente sobre o que havia, sobre o que houve, e sobre o que há de haver.
       Pensava sozinho, de olhos entreabertos, respirando num arfar estatelado e apático. Os pelos de seus braços se eriçavam nas rajadas de calor e luz de certos lençóis boreais que no firmamento se esboçavam; e ele meneava a face, de modo a seguir seus percursos luminosos até que desaparecessem.
        A ponta de seu nariz se ruborizava quando alguma previsão surgia. E ele calmamente, pela experiência de ser o que era, o apertava com a ponta dos dedos, deixando o rubor esmaecer e o conteúdo da previsão alcançar a mente. Suas pupilas enegreciam-se deveras, e no rosto um sorriso de satisfação aparecia.
     Consciente do que lhe ocorrera, terminava a cerimônia coçando seu lânguido par de pés, pronto para a jornada da volta. Sorvia com as costas das mãos algum suor da testa, e ia, fresta por fresta de pedregulho, descendo a colossal montanha de onde obtivera a revelação de algo absolutamente maravilhoso.
       O vento era breve na terra, como já sabes tu. O tal sujeito, quando próximo da mata, saltava com os braços esticados, como a usar sua túnica nos moldes de uma asa. A brisa ascendente sustia o peso de sua magreza assim como faz com a folha do sicômoro; e ele então conseguia chegar ao solo de forma rápida, porém desajeitada.
     À noite, após longa jornada, chegava à casa. Uma choupana de bambus, argila cozida e ramos diversos retirados da mata. Unia um fardo de lenha seca no centro do casebre, faiscando um par de jaspes até que pequenos resquícios de fogo aparecessem.
     Recolhia um frasco de água da cerração, e nela somava pares de sementes e pequenos frutos, temperando-a de doces sabores campestres; espremia sobre o caldeirão uma ou duas frutas semelhantes a laranjas, tornando a água turva como um vinho espesso.
       O rútilo da bebida envernizou-se ao ponto de se tornar marrom, que então, pelo borbulhar da fervura, foi se esclarecendo até se transformar enfim numa espécie de ocre desvairado. Remexeu na mistura com um galho qualquer, colhendo um pouco dela com uma espécie de cuia volumosa.
           Nesta última, lançou o que pareciam ser punhados de alguma erva esquisita; e de repente, um tufo de fumaça borbotou, unido a um estalo estridente. O caldo ou seja lá o que for aquilo, estava pronto.
         O gosto não deveria ser dos melhores. Mas o sujeito parecia apreciá-lo muito pois, ingeriu-o muito depressa e de forma atrapalhada, deixando escapar-lhe dos olhos lágrimas de mormaço. Depois disso, deixou-se cair no assoalho da choupana, como que a descansar da severa viagem que fizera.
        Horas se passaram até que seus olhos se abrissem. Levantou-se, asseou seus finos e esparsos fios de cabelo, vestiu sua mais valiosa túnica e palitou os dentes.                 Organizou a mobília da casa, que se compunha apenas de um criado-mudo, duas cadeiras, um par de caldeirões de cobre e uma prateleira de utensílios.                                  Caminhou à porta da casa, abriu-a, e prostrou o olhar num pequeno lago cristalino que vibrava a alguns metros da entrada.
       Respirou profundamente, muito profundamente. E imerso nessa meditação, pôde conceber a conclusão do que havia previsto. Estava tudo correto, bastava apenas esperar.
        Esperar muito, destaco.
                                        ...

        A alguns milhares de quilômetros dali, descansava na sombra de uma palmeira um quarteto de viajantes. Um deles, o mais robusto, se embebia d'água doce de um coco enquanto espreguiçava os pés doloridos. O outro mais franzino mirava pacientemente o horizonte como que a buscar alguma coisa.
         A moça que os acompanhava afiava uma adaga com um pedrisco e parecia mascar um tipo de casca escura. Despendia sua total atenção à tarefa proposta; nem sequer notava o que o último do grupo estava fazendo.
         Sobre uma rocha, este último lia e relia uma espécie de pergaminho extenso. Não compreendia certos pontos, então volvia atrás na leitura; avançava mais alguns parágrafos, e retornava novamente, num ciclo de desentendimento.
         — Onde fica essa tal de "Itália"? — Disse ele aos demais.
         — No oceano. Temos que arranjar uma barca. — Respondeu a moça, enquanto avaliava a lâmina que esculpira.
         — Odeio saltar no meio do oceano. Sempre caímos na água na hora de voltar, a barca não para quieta. — Resmungou o robusto.
         — É por isso que inventaram as âncoras. — Ironizou o franzino, emendando... — Acho que consigo enxergar o farol.
          Seguiram caminho até o litoral, esperando que houvesse algum pescador ingênuo pelas praias ou ao menos alguma embarcação abandonada. Nada encontraram, apenas uma velha âncora repleta de ferrugem e restos de alga.
         — Pelo menos a barca permanecerá estável. — Disse o robusto.
         — Qual barca? — Perguntou o franzino.
         — Aquela. — Disse a moça.
         No horizonte marítimo despontava da curvatura o que parecia ser um par de velas vermelhas. Pouco a pouco elas subiam, até que toda a embarcação fosse visível. A moça ia já rearmando-se da adaga, escondendo-se entre as moitas que pela areia cinzenta da praia se espargia.
         O barco parou a alguns metros da margem. As velas abaixaram, e ruídos soaram do estibordo. O todo do quarteto se preparou para um possível combate; cada qual com sua arma e escudo. Num ranger abriu-se no casco uma portinhola, de onde dezenas de rostos curiosos e rugosos apareceram.
         Temendo a inferioridade numérica, mantiveram-se a postos. Assim que começou a anoitecer, a tripulação do tal barco se apeou à praia, apegada a longos cabos e armadilheiras. Compunham umas três dezenas de homens e algumas poucas mulheres que lideravam, a usar uma respeitosa espécie de elmo, dourado e repleto de penugens coloridas. Se afastaram, enquanto discutiam num dialeto distante.
         Assim que a escuridão e o silêncio volveu à praia, o quarteto pôde embarcar, vasculhando de início todos os cantos, dispondo de toda a paciência e silêncio que podiam. As velas foram hasteadas novamente, e a ventania noturna era capaz de empurrar a barca para onde quisessem.
          — Enfim. Qual a direção? — Disse o franzino, que manejava o timão.
          — "Siga a constelação triangular... se atenha às andorinhas e tome cuidado com os grifos marinhos..." — Respondeu a moça, que lia o pergaminho.
          — Lá vamos nós... à Itália! — Bradou o robusto — seja lá onde for isto!
          E o navio tomou seu rumo.
                                        ...

O tédio era tão pungente, que a jovem Virgínia não conseguia sequer ler uma revista sem que algo a incomodasse. Uma mosca zumbindo, um ruído do vizinho, um carro barulhento ou algo do tipo. Qualquer estímulo rompia a paz de seu espírito e a distraía.
    Pela janela do quarto ela se virava a olhar o movimento da rua, esperando que algo realmente interessante acontecesse. Mas não; nada acontecia. A vida parecia em si a própria essência do desinteresse.
     Levantou-se da cama e partiu à cozinha, bocejando um resto de sono da manhã e ajeitando o moletom desajustado que vestia. Tomou um copo d'água sem perceber que seu fundo estava sujo de leite, e acabou estranhando o sabor.
      — Filha, vá estudar para os exames da semana! — Ordenou sua mãe, que se aproximava.
        — Já estudei. O cateto da hipotenusa, função, e tudo mais. — Respondeu, analisando o fundo do copo.
     — Você não me engana, Virgínia. Não venha com essas palavras complicadas pra cima de mim que você sabe que eu não entendo!
        — Você lavou esse copo..?
        — Não mude de assunto!
        — É que...
        — Já para o quarto!
        Ela não tinha lavado o copo. Mas tudo bem.
De volta ao quarto, retornou à fracassada leitura. Passou para a matemática, álgebra, biologia, tentou resgatar o que sabia de geografia, sempre dispondo de uma atenção efêmera e de uma quase inexistente vontade de saber.            Reolhava a rua com os olhos de quem gostaria de enxergar algo empolgante mesmo nas coisas simples do mundo, mas que não conseguia.
      Anoiteceu, e o vento chiava serenamente alguns pares de árvores que verdejavam as calçadas. A luz do poste permitiu que Virgínia pudesse enxergar as gotas de chuvisco que caíam, e que pareciam acompanhá-la numa noite de insônia.
         Há muito se sentia assim. Não era solidão, pois uma das poucas coisas que apreciava era a própria e suficiente presença. Não era tristeza, pois não se sentia aborrecida ou algo assim. Simplesmente não sentia. Nada.
         Tudo bem. As vezes ela sentia raiva, ódio e outras coisas semelhantes. Mas a felicidade; a euforia de ser e estar, o júbilo da juventude e o vigor da criatividade; são estas essências que pareciam estar mortas dentro de sua consciência.
       O que ainda a mantinha calma e tranquila era o desfrute do tédio e da resignação. Aproveitava ao máximo o ócio para esquecer qualquer problema e defeito. Sabia que, se obtivesse o vislumbre de tudo que estava acontecendo em sua vida, enlouqueceria.
        Próximo das seis horas foi se arrumar para o colégio. Prendeu o cabelo despretensiosamente, vestiu a segunda coisa que encontrou no guarda-roupa, tomou o café da manhã com a atenção dobrada nos copos e partiu, despedindo-se dos pais com um arrastado e arranhado bom dia.
       No colégio encontrou as amigas, que exalavam alegria. Trocou palavras com alguns amigos, até o papo cair em estatísticas esportivas. Resmungou ao diretor, que lhe desviou um olhar que dizia "Resmungue novamente que eu te coloco na detenção!".
           Para onde olhava, enxergava inimigos. Oponentes. Todos eram incrivelmente chatos e monótonos. Raivosa, se resguardava num canto da sala se comportando com indiferença. Depois dessa ira, passava ao arrependimento; sentia-se como se ela fosse a tal chata e monótona, e incapaz de compreender os demais humanos.
        Na hora de ir embora, se distanciava de todos, e tomava por foco as paisagens que via pela janela do ônibus. Se olvidava da raiva, do arrependimento, e assim passava o dia como se tudo o que vivera fosse um enorme vazio.
           Um enorme vazio.
    Seu pai se preocupava e tentava animá-la, inutilmente. Lhe trazia chocolates, filmes e discos novos. Abraçava-a com ternura, que acabava sendo traduzida como caretice.             No fim da conversa, ela sempre concluía:
        — Não adianta, pai. Não nasci para a vida em sociedade.
       E pelo resto da noite, ouvia-a dançar no quarto alguma música esquisita.
        Dormia tarde, e pouco. Pela manhã, desejava comer o tempo com alguma tarefa produtiva. Mas, não se esqueça, leitor, que seu tédio era tão pungente, que a jovem não conseguia sequer ler uma revista, sem que algo a incomodasse.
          Mas isso estava por mudar.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenha gostado. Em breve publicarei o segundo capítulo, mas paciência; as vezes eu simplesmente desapareço.



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