Deuses de carne e osso escrita por Luiz Henrique


Capítulo 3
DOIS - Kalik




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Nayeli e Áquila decidiram levar o rapaz para dormir em sua casa naquela noite, deram-no roupas novas apropriadas para o clima tropical de Tinensia e trataram seus ferimentos com algodão, água corrente e curativos.

Eles contataram a polícia para confrontar os perseguidores de Kalik, mas não receberam nenhum retorno. Os três tomaram café da manhã juntos na manhã seguinte e discutiram os acontecimentos.

— Eu deveria ter previsto. — resmungou o garoto, alisando os músculos do braço direito, expostos pela camisa branca — Émile é sorrateiro e sabe como esconder seus rastros. Ele conquistou muito dinheiro e admiradores, com seu livros sobre arqueologia. Ninguém nunca suspeitaria que alguém como ele, seria capaz disso. 

— Você disse que estava fugindo de Émile, porque esse homem acredita que você...Quero dizer, a Lua, é uma entidade maligna. — Áquila recapitulou, bebericando um gole de chá — Isso tudo parece tão surreal. Porque você estava procurando por Nayeli? Como pode conhecê-la?

— Eu não estava buscando por sua esposa, especificamente. — Kalik rebateu, com uma raiva contida — Imaginei que qualquer sacerdotisa, que cultuasse o deus sol, poderia me oferecer alguma ajuda. Ele também quer que nós dois nos encontremos, eu posso sentir.

— Então é essa a missão dele. Quero dizer, a missão de vocês. — Nayeli estava tão absorta em pensamentos que o pedaço de bolo, que havia acabado de assar, já havia perdido o calor em seus dedos — Na nossa religião, o Sol e a Lua são divindades complementares...

Ela levantou o olhar.

— De todo modo, vocês dois têm algo pendente que precisam resolver, e nós... — ela se virou para Áquila e depois sorriu, de maneira entusiasmada, para o inquilino — prometemos ajudá-lo em tudo o que precisar!

O alfaiate arregalou os olhos.

— Nayeli, podemos conversar, a sós, durante um minuto?

Ele agarrou o braço da companheira e a arrastou para dentro do quarto.

— Você perdeu o juízo? — fechou a porta — Nós não sabemos nada sobre esse garoto! O que te dá tanta certeza de que ele não é um farsante ou um bandido tentando nos envolver em algum esquema criminoso?

— Bom, eu garanto. — ela se aproximou de seu rosto, desafiadora — Meus poderes me ajudam a perceber quando alguém está tentando me enganar, assim como me ajudaram a encontrar o deus naquela praia, há algumas horas, não se lembra?

— Querida, seja razoável. Você disse que gostaria que eu fosse com você para recebê-lo e eu fui, pois não queria vê-la magoada. Mas agora estamos falando de algo que pode durar meses, até anos. E nós dois já estamos velhos, acha que temos condições de viajar pelo mundo e lutar contra todas as ameaças que poderão surgir no caminho?

— Acho!

Áquila abafou um suspiro com as mãos.

— Eu tenho uma vida inteira aqui, Nayeli. Amigos, parentes, clientes, uma casa! — ele abriu os braços, indicando o espaço a sua volta.

A sacerdotisa apertou os lábios.

— Então você não vai comigo?

O homem virou o rosto e caminhou para fora do cômodo.

Através do espaço entre as persianas, Kalik o observou entrar no carro e bater a porta do veículo, antes de partir pela estrada, sem parar sequer um segundo para olhar para trás. Ele dirigiu por pouco mais de meia hora, com o sangue pulsando nos ouvidos, até chegar a um condomínio.

— Áquila! Há quanto tempo! Vou avisar o seu primo que veio vê-lo! — a secretária, uma mulher magrinha com cabelo encaracolado, discou um número no telefone e pediu para que subisse as escadas.

Antes que tivesse tempo de refletir sobre o que estava prestes a encarar, um senhor bem-vestido, com a pele morena, cabelos tingidos de preto e a barba bem aparada surgiu a sua frente e o recebeu com um sorriso amistoso.

— Á que devo a honra de ter o melhor alfaiate da cidade em minha casa?

— As coisas estão complicadas, Gizo.

O homem assentiu, como se tivesse compreendido, imediatamente, o que aquela frase poderia significar. Ele indicou para que o familiar entrasse no apartamento e se sentasse em uma das duas poltronas da sala de estar.

— Da última vez que você esteve aqui, estava tendo problemas com a esposa.

— Nayeli pretende ir embora de Tinensia e quer que eu vá com ela.

— O que? Mas por quê?

Áquila massageou as têmporas.

— Tem um rapaz lá em casa...

— Não me diga que ela te traiu!

— Não! Claro que não! — ele jogou a cabeça para trás — Mas Nayeli acha...ela tem certeza de que ele é um deus e que devemos largar tudo o que temos para ajudá-lo a procurar alguém que parece ser muito importante.

Gizo conteve uma risada.

— Ela ainda acredita nessas coisas?

Ele chamou pela companheira, uma jovem loira, usando um vestido de bolinhas, e contou a ela tudo o que havia acabado de ouvir. Assim que acabou de digerir toda a informação, Romina tocou o braço de Áquila, compreensiva.

— Que tal passar um tempo conosco? Tenho certeza de que ela logo mudará de ideia.

Para o almoço, Gizo utilizou seu talento com os alimentos para preparar um guisado de carne e os acompanhamentos tradicionais. Ele moveu os dedos e uma porção levitou até cada um dos cinco pratos dispostos na mesa, pertencentes a ele, Romina, Áquila e as duas crianças.

 — É claro que sonhar é muito importante. — disse o patriarca — Eu mesmo não teria me tornado o dono de uma rede de restaurantes se tivesse decidido permanecer na comodidade. Mas também é importante saber manter os pés no chão.

— Sua mulher ainda trabalha? — perguntou Romina, levando o garfo a boca.

— Somos aposentados. — a expressão da ouvinte denunciava que não estava satisfeita com a resposta — Mas ela costumava cobrar por suas adivinhações quando a conheci, e de vez em quando, eu produzo algumas roupas para complementar a renda...

— Entendo. Deve ser difícil pra ela, não ter um emprego formal. Eu sou professora de canto em uma academia aqui perto, minha voz é meu maior dom...  

— Está vendo essas janelas? — Gizo apontou para o vidro atrás dele — São novas. Tive que comprar depois que eu e Romina tivemos uma discussão.

A esposa fuzilou o empresário com o olhar, o que o fez gargalhar.

— Falando sério, você deveria nos visitar mais, Áquila. Nós dois vivíamos grudados quando éramos crianças, mas aí você praticamente sumiu!

— Papai, ela pegou minhas batatas! — berrou o garotinho, que tinha os cabelos amarelados como os de Romina.

— Não peguei! — gritou a irmã, com a boca cheia de batatas. Ela se parecia mais com Gizo.

 — Rangel! Suzen! Comportem-se! — a mãe repreendeu — Sinto muito, eles não costumam ser tão agitados.

Áquila nunca cogitou dizer em voz alta, mas havia um motivo para que ele tivesse optado por se afastar do primo, à medida que os anos foram chegando. O alfaiate invejava a sua felicidade e seu estilo de vida.

Quando eram jovens, ele e Nayeli tinham prazer em anunciar, para todos os cantos, que eram contra as convenções sociais, inclusive àquelas impostas pela ideia de matrimonio. A mulher manteve aquela visão mesmo idosa, mas Áquila, às vezes, se pegava pensando sobre o quanto as coisas poderiam ter sido mais fáceis se tivesse tomado outras decisões.

— Vamos assistir a uma peça hoje à noite. Você quer vir?

Ele ponderou.

— Parece ótimo!

Quando chegaram lá, o auditório estava lotado. Havia muitos casais de adultos e um número ainda maior de crianças aguardando em suas cadeiras para prestigiar o espetáculo que estava por vir. Era um show para toda a família, com músicas e artistas fantasiados de animais.

— Gizo preferia que fossemos assistir a um filme, mas eu disse a ele que não há nada no mundo melhor no mundo do que uma boa música ao vivo! — disse Romina, enquanto se sentava — A acústica desse lugar é inacreditável!

— Da próxima vez, eu é quem vou escolher o lugar! — o homem rebateu, se acomodando ao seu lado.

Apesar da expressão contrariada, Áquila flagrou um sorriso discreto surgindo nos lábios do amigo, cada vez que os atores replicavam alguma piada previsível, que fazia os filhos se curvarem nos assentos com as mãos no estômago. A professora não poupava elogios quando se deparava com uma melodia bem executada, o que gerava olhares incomodados dos espectadores concentrados a sua volta.

— Você pode fazer uma roupa de gato igual a dela pra mim, por favor? — pediu a pequena Suzen, o que fez o coração de Áquila derreter no peito.

— Mas é claro!

O elenco integrante da encenação foi aplaudido de pé, assim que encerraram a apresentação. Seguindo o caminho de casa, o alfaiate ficou mais afastado, conversando com as crianças, que seguravam suas mãos como se já fossem íntimos. Gizo e Romina andavam abraçados, mais adiante, com as testas coladas.

— E então, Áquila? Vamos marcar algo para amanhã? — perguntou o empresário, cheio de expectativa.

— Eu... — ele respirou fundo — Vou encontrar Nayeli. Nós já passamos por muita coisa, mas isso porque prometemos ficar juntos até o fim de nossas vidas. Vocês dois também tem suas diferenças, mas sempre é possível chegar a um acordo, certo?

Os cônjuges trocaram um olhar compreensivo.

— Tente manter contato dessa vez!

Áquila se despediu de todos e percorreu o quarteirão á passos rápidos, até alcançar seu veículo, que estava estacionado ao lado da residência dos anfitriões. Depois de seguir por um trajeto que pareceu mais longo do que realmente era, ele encontrou Nayeli e Kalik do lado de fora de sua casa, parados lado a lado.

— Você voltou. — a sacerdotisa não parecia surpresa, mas sim aliviada.

— Eu decidi acompanhá-los, porque se eu não acreditasse em você, Nayeli, ninguém iria. — Se a companheira havia ficado ofendida com a afirmação, não deixou transparecer — Nós podemos alugar a nossa casa enquanto viajamos e pedir o pagamento em depósitos para ajudar com as despesas, meus amigos podem me ajudar a supervisionar. Eu também estava pensando se nós, ahm, poderíamos adotar uma criança...?

Ela empalideceu.

— Uma criança? Nós não temos mais idade para isso! Veja, Kalik, quantos anos têm seus pais?

O pescador tocou os cotovelos, como se criando uma barreira entre ele e o casal.

— Eu nunca cheguei a conhecê-los.

Áquila inclinou a cabeça e em seguida apertou o ombro de Kalik, um gesto carregado de significado que fez o rapaz recuar.

— Nós deveríamos começar a nos preparar. — Sugeriu, rapidamente — Temos uma longa busca pela frente!


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