Deuses de carne e osso escrita por Luiz Henrique


Capítulo 12
Seis




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Ainda que estivesse em um cômodo fechado, afastada da multidão, que comemorava, do lado de fora da pousada, Yandina conseguia ouvir, com clareza, o som de suas vozes estridentes gargalhando, gritando e debatendo o grande evento que haviam presenciado na rodovia.  

— Já se passaram três dias. Quando tempo mais essa festa vai durar?  — ela resmungou, como se estivesse mentalmente exausta — Desculpe, Kanna, eu sei que você deve estar adorando. Todas essas pessoas, festejando o retorno dos deuses...

O caçula, que permanecia ocupado abotoando a camisa estampada, ergueu o rosto. Yandina percebeu que havia culpa em seus olhos, mas antes que pudesse dizer algo, o rapaz retrucou:

— Não é tão divertido quando a maior parte são desconhecidos. — forçou um sorriso.

A agricultora puxou uma cadeira e indicou para que ele se sentasse, posicionando-a de frente para um pequeno espelho, sobre a cômoda.

— O seu cabelo está uma bagunça.  — ela separou uma mexa dos fios loiros e umedeceu com uma pomada — E parece...que tem alguma coisa te incomodando.

— O que? — Kanna teria desmentido, se a irmã não o tivesse intimidado, com seu olhar fulminante — Eu só...não sei como me aproximar da Lua.

— Bem, isso é compreensível. — Yandina tateou uma gaveta, até encontrar um rolo de linha, que ela utilizou para trançar suas madeixas — Kalik tentou te matar, e nem se deu ao trabalho de pedir desculpas!

— Ele está com outras coisas na cabeça agora. — o tabelião argumentou — O homem que Kalik executou tinha amigos, pessoas que se importavam, de verdade, com ele.

— Ao que tudo indica... — Yandina enfatizou, desconfiada — ...foi legitima defesa.

Niara entrou, empurrando a porta.

— Garota, chega de ficar escondida nesse quarto! — ela caminhou até a agricultora — Vamos nos divertir!

Yandina foi arrastada para longe, contra sua vontade, deixando Kanna, sozinho, com seus pensamentos.

O tabelião estava contemplando a própria imagem, quando um rapaz de cabelos castanhos longos e pele trigueira se aproximou por trás.

— Rizvan!

Kanna abriu um sorriso, de orelha a orelha, e correu para abraçá-lo.

O estudante retribuiu, e embora parecesse igualmente receptivo, sua postura, fitando os pés, denunciava que havia algo o incomodando.

— Então...você é um deus? — ele acariciou uma das mangas do suéter, que estava alinhado sobre os ombros — Eu deveria ter desconfiado, nunca havia visto a minha chefe tão impressionada com alguém!

— Tudo bem, eu mesmo demorei a acreditar! — Kanna torceu o nariz — Você parece ótimo...

— Quer dizer, depois do meu noivo ter me enganado durante quase três anos, só para se aproveitar do meu dinheiro?

O tabelião coçou a garganta, nervoso.

— Não se preocupe, eu conversei com meus pais sobre isso, e eles...disseram que eu poderia encontrar, sozinho, uma forma de lidar com esse problema. — respirou fundo — É por isso que eu estou aqui, para distrair a mente. Pretendo continuar minha residência, em outro momento. Há coisas mais importantes acontecendo no mundo, agora.

— Tem razão. — disse Kanna, mordiscando o lábio — Ainda estou tentando me acostumar com todos esses repórteres, que não param de aparecer...

— Não se preocupe com isso! — Rizvan piscou para o amigo, de maneira, insultuosamente, confiante — Eu cresci rodeado por publicitários, sei como lidar com a mídia!

Ele segurou a mão de Kanna e o guiou, rumo as festividades.

No meio do caminho, encontraram Kalik, deitado no sofá, apontando um controle remoto para a televisão. Sua expressão era tão severa, que o tabelião decidiu interferir.

— Ei. — cumprimentou, endireitando a postura — Não vai comemorar?

O pescador moveu a cabeça, negativamente, evitando olhá-lo nos olhos. 

Minutos depois que se afastaram, um homem parrudo se aproximou de Kalik, com uma pequena bandeja de aperitivos. O rapaz recusou todos eles.

— Aqueles seus amigos hippies foram embora hoje de manhã, eles realmente queriam que você festejasse com eles! — disse Áquila, lançando um olhar de cima.

— Eles não iam querer andar comigo, se soubessem o que eu fiz.

O alfaiate apertou o ombro de Kalik, como havia feito, quando se conheceram.

— Talvez Émile não tenha mesma morrido.  Não acha que, a essa altura, nós já teríamos sabido de algo? Você não estava, plenamente, são naquela tarde, pode ter imaginado o que aconteceu.

O garoto ficou quieto, como se ponderando, o que motivou Áquila a continuar:

— De todo modo, você contou aos seus vizinhos que achava que estava sendo perseguido, tenho certeza de que, agora que você está mais poderoso e podemos provar a existência dos deuses, eles poderiam servir de testemunhas. Além disso, eu e Nayeli...

Kalik se moveu, quando ouviu o nome da sacerdotisa.

—...também vimos quando Émile te atacou e o denunciamos. A polícia pode até mesmo averiguar o estrago que ele fez no chão, em Saritéia.

— Não é isso o que me preocupa. Há essa altura, Aima deve ter chegado a mesma conclusão. — cerrou os punhos sobre o colo — Mas quando eu fecho os olhos, eu vejo Émile, conversando com sua esposa, contando piadas para os outros moradores de Thulen... Talvez fosse mesmo eu, o problema.

— Esse homem é um manipulador. Não temos como saber quais eram suas verdadeiras intenções com essas pessoas.  — Áquila argumentou — Lembre-se que você não está sozinho. Estou aqui, se precisar.

O alfaiate deu um tapinha em suas costas e foi embora, contudo, deixou a bandeja sobre a mesa de centro.

Kalik se levantou e se pôs a observar o exterior, através da janela.

Em meio a uma centena de outras pessoas que o rapaz não conseguia distinguir, Áquila e Nayeli se encontravam conversando com um casal, com duas crianças ao lado. O alfaiate entregou uma fantasia de gato, embrulhado para presente, nas mãos da pequena Suzen, enquanto a esposa sorria para Gizo e Romina, de modo provocativo.

Kanna e Rizvan estavam lado a lado, dialogando com um exército de jornalistas.

E Yandina, apesar do visível constrangimento, estava entretida, dançando com Niara.

— Eu nem tive tempo de trocar de roupa. — Reclamou a agricultora, entre risinhos — Estou ridícula...

Uma voz masculina e familiar penetrou seus ouvidos, fazendo o coração da mulher disparar.

— Você está muito bonita! — disse Simbo.

No momento em que o viu, alisando a cabeça raspada e mirando-a com seus olhos castanhos, Yandina concluiu que o conselheiro espiritual também parecia incrível, a roupa social que estava vestindo, caía muito bem em seu corpo e combinava com os anéis prateados que possuía nos dedos, contudo, preferiu guardar aqueles pensamentos para si.

— Quem é esse? — Niara levantou a sobrancelha.

— Esse é o meu amigo, Simbo. Éramos vizinhos nas ilhas de Sunan...

— Crescemos juntos. Ela sempre gostou de ouvir minhas histórias sobre os deuses, mesmo que não acreditasse muito...

— Ninguém acreditava! — ela se defendeu — Mas você e seus pais eram tão gentis com todo mundo, seria grosseria, simplesmente, ignorá-lo.

— Oh! — Niara se atentou a forma que os dois se encaravam — Acho que...vou buscar uma bebida e deixar vocês conversando.

A garota caminhou até uma bancada distante, onde uma mulher alva, de cabelos pretos bem curtos, vestindo uniforme, estava encarregada de atender os hóspedes.

— A sua bebida mais forte, por favor! — solicitou, se debruçando sobre a mesa.

A atendente apontou com a cabeça, para Yandina e seu acompanhante.

— Está tendo problemas amorosos?

— O que? Você pensou que eu e Yandina...? — Niara gargalhou — Não! Nós somos apenas amigas! Sabe como é, meu pai também está vindo para prestigiar os deuses e eu não quero estar sóbria quando ele começar a falar com espíritos, no meio da festa...

Com um movimento da palma, a mulher fez com que uma garrafa lacrada flutuasse até a mesa.

— Também consegue controlar o vidro? — coçou o queixo — Parece que temos algo em comum...

— Na verdade, eu posso manipular o álcool. — após destampar o recipiente, ela fez com que o líquido preenchesse totalmente um copo vazio, de frente para a cliente — Eu sei o que deve estar se perguntando, como essa habilidade pode ser útil...?

— Está brincando? Esse é o melhor dom que eu já vi!

Seus braços, cruzados próximos, se tocaram.

— Meu nome é Melina.

— Niara.

— Vejo que você é próxima do Deus Sol. Imagino que seja uma grande heroína, defensora da honra e da moral, assim como eles...

— É isso o que as pessoas estão dizendo sobre nós? — Niara levantou as sobrancelhas — Bem, definitivamente, não é essa a minha principal motivação. Decidi partir com Kanna, pois quero me tornar uma versão melhor de mim mesma, entende?

— Entendo, isso é admirável. Mas posso te dar um conselho? Sempre se ponha no lugar das outras pessoas, assim ninguém sairá machucado.

— Soa como experiencia própria. Andou tendo problemas amorosos?

Melina inspecionou o semblante divertido da garota, antes de prosseguir.

— Algumas vezes, sim. Mas não é disso que estou falando. Eu tinha o péssimo costume de roubar lojas, quando era mais jovem. Não é algo que me orgulho, realmente, e lamento que só tenha aprendido a lição, quando fui pega em flagrante. Perdi dois anos da minha vida, por causa de uma burrada...

— Bem...Acho que ninguém é perfeito. Por mais que pareça.

A atendente ruborizou.

— Você é adorável, Niara! O seu drink... É por minha conta.

— Quanta gentileza. Eu adoraria que acompanhasse a mim e os deuses em uma de nossas missões, talvez duas, quem sabe três?

— Eu prefiro evitar situações conflituosas, por enquanto. Ainda estou tentando me redimir. — Niara abaixou o olhar — Mas, se você quiser, podemos trocar correspondências, estou adorando a nossa conversa.

— Já que você insiste...

Melina puxou uma das mãos da garota, delicadamente, e pressionou seus dedos, com os lábios.

— Que tal darmos uma volta quando meu turno terminar?

Yandina e Simbo estavam focados demais na presença um do outro, para notar o que estava acontecendo ao seu redor. Até que Kanna se sentou entre eles.

— Como ela está? — perguntou o rapaz, simplesmente

— O que? — Simbo agitou os cílios — Oh! Sua mãe também ficou sabendo da novidade, mas vocês a conhecem, é orgulhosa demais para vir até vocês e admitir que fizeram a coisa certa. Não foi fácil, mas eu consegui convencê-la de seria melhor para todos, se não déssemos muitos detalhes sobre a sua partida...

A agricultora se sobressaltou.

— O que você fez, exatamente?

— Contei a todos que foram embora para explorar a real natureza dos poderes de Kanna, o que é verdade. Mas achei melhor não mencionar que havia outra divindade, perdida por aí, apenas aguardando que Kanna a encontrasse. Seria arriscado demais envolver outras pessoas nessa história, pois poderia prejudicar a sua jornada!

— Então a mamãe pediu que nos encontrasse? Ela quer saber como nós estamos! — Kanna se voltou para a irmã, esperançoso.

O guia assentiu.

— Você foi incrível, Simbo!

Yandina se aproximou e beijou a bochecha do amigo, o que o deixou sem reação.

Kanna estava prestes a fazer um comentário malicioso, quando notou Kalik se aproximando. Ao lado dele, andava um homem mais velho, escuro como o ébano, trajando uniforme militar completo.

Assim que o encontrou, ele se ajoelhou diante do tabelião, suplicante.

— Meu povo está vivendo momentos de terror! — seus dedos, entrelaçados, estavam trêmulos — Eu imploro ao Sol e a Lua, por favor, intercedam ao nosso favor!

Os dois fixaram o olhar um no outro, completamente alheios a música que continuava martelando em seus ouvidos, entoada por uma banda alegre e animada.


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