Portal para outro mundo escrita por ADivas


Capítulo 2
Capítulo 2 - 02/01


Notas iniciais do capítulo

Música tema do capítulo de hoje: https://youtu.be/S6Y1gohk5-A?list=PLLCufZnCiU1G1-JoeuBrO-kUpZyyVIJzu

Purple Rain, do Prince.



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Ian tinha os olhos tão escuros que era difícil distinguir sua pupila de suas íris. O queixo tinha alguns pêlos ralos, que ele fazia questão de não raspar, uma vez que tinha esperança que através deles, uma barba graciosa pudesse tomar o seu rosto. Uma esperança que, no fundo, ele sabia que não era possível. Achava muito atraente quando uma barba tomava o rosto dos homens. Não que ele se atraísse por homens, mas gostaria de se sentir um homem atraente. A autoestima humana grita por essas sensações.

Não era uma pessoa que tinha muito tempo para se fixar em relações. Impossibilitado de ficar muito tempo em uma cidade, seu destino nunca tinha uma moradia fixa. Preocupava-se sempre de ficar nas pousadas mais ralés, tanto pela quantia em menor valor que precisaria pagar, quanto para se misturar com pessoas que teriam as mesmas condições que ele.

Atualmente, naquela cidade, sua estadia era uma pousada com apenas seis quartos disponíveis, sendo que apenas três estavam ocupados devido a má qualidade do serviço. O dono, um senhor de 65 anos, ficava constantemente na recepção, mergulhado nas ondas sonoras do próprio notebook. Músicas da década de 80 ecoavam durante o dia inteiro, atravessando as paredes de acústica deplorável daquele local.

Ian, mentalmente, apostou consigo mesmo qual música estaria perturbando a tranquilidade dos hóspedes naquele momento. Chutou Purple Rain, do Prince. Adão, o dono do estabelecimento, havia confessado que tentara ingressar na carreira musical algumas décadas antes, tendo conseguido uma carreira até que promissora (nas cidades vizinhas, apenas), mas o chamado por uma vida com salário fixo melhor gritou mais alto. Trocou então a música por ser lojista no maior estabelecimento de eletrônicos da cidade. E quando frisa o “maior”, o local não tem nem primeiro andar.

A risada escapou de Ian, recebendo uma bela gofada de ar para dentro de sua garganta. O pensamento de tanta limitação o aterrorizava. Acostumado com tanta liberdade, a mera ideia, seja imaginária ou real, fazia suas pernas tremerem. Um passarinho não precisava de gaiola.

Os pensamentos cortavam seu imaginário, quando, em velocidade sobre a moto, o estrondo aconteceu.

BUM!

Dentro do ginásio onde acontecia o espetáculo, uma chuva púrpura de papéis picados e cintilantes explodiu no céu, expelidos através de um instrumento potente, similar a um cone gigante. Com aquele movimento, o coordenador da apresentação indicava o fim do evento. Corpos levantavam, batendo palmas e enchendo o ginásio com assovios e gritinhos estimuladores.

Monique sentia como se o coração tivesse bebericado um chá quentinho, agora transbordando para o restante do corpo através do sangue. Esse era o poder da cultura e das artes: fazem com que você se sinta aquecido através dos olhos, e a sensação se espalha por todo o sistema.

— Maravilhoso! Simplesmente isso! – Bravejava Bianca, os olhos cintilantes.

Monique, no entanto, não sabia se ela falava da apresentação como um todo, ou do marabalista, cujo olhar da amiga se prendia nele. Os bíceps do homem eram tão definidos que provavelmente rasgariam as mangas da camisa, caso trajasse uma.

As duas amigas moravam em lados opostos da cidade. Após um abraço fraterno, cada uma seguiu seus caminhos. Embora nada fosse longe o suficiente, Monique andaria passos consideráveis até conseguir chegar em casa.

Trabalhava na recepção de uma unidade básica de saúde. O salário era pequeno, mas consegui-lo honestamente era o que mais importava. A vontade de ser independente era forte, assim como de conseguir uma vaga na universidade. Nos sábados, viajava até uma cidade cuja distância era medida em duas horas de estrada, para assistir as aulas de um cursinho preparatório para o ENEM. Julgava ter um pouquinho de sorte em ainda parecer uma adolescente, misturada com verdadeiros. A sala, em sua maioria, era composta por garotos e garotas de 17/18 anos, enquanto ela já tinha 21. Mas o rostinho, juvenil, fazia esse detalhe ser despercebível.  

 BUM!

Esse havia sido o arrastar dos pneus da moto de Ian no chão, enquanto rodopiava de forma vertical, fazendo um cheiro de borracha queimada subir no ar. Apertava o freio com força, tentando impedir a colisão com um carro que cortava a esquina na qual seguia.

O imprudente era ele, claro: Ian. Não chegou a bater no carro, faltando centímetros para isso acontecer. Todavia, o equilibro para se manter sobre a moto não permaneceu intacto. O chão havia sido riscado por uma faixa preta, e o rapaz teve que impulsionar a perna magra no chão, batendo o pé com força para não cair da moto. Os pneus gritaram e atraíram a atenção de qualquer pessoa que estivesse passando na rua. Não que fossem muitas.

Jogou o corpo para o lado, se aprumando sobre a moto novamente. O envelope com o dinheiro já não estava entre seus dedos. O coração pareceu dar um soco no seu estomago, e os olhos escuros desviaram a atenção do carro que voltou a seguir caminho (não sem antes o motorista ter o acusado veementemente de irresponsável, maluco, filho da puta e amaldiçoado) para o chão, procurando-o.

O alívio o tomou quando o avistou em alguns passos em distância. Inclinou a moto mais uma vez e retornou a chão. Só que, como nem tudo são flores, uma ventania forte tomou a localidade, e os olhos de Ian presenciaram o envelope levantar vôo. O próprio Ian se sentiu ser um pouco empurrado com toda aquela intensidade. Estava mesmo meio magricelo.

Sobre a calçada daquela mesma rua, Monique sentiu os cachos negros serem bagunçados com a ventania. Rapidamente engalfinhou os dedos entre eles, fazendo-os (ou tentando) voltar ao normal. Só não contava que algo ainda bateria contra seu rosto e depois em seus pés, calçados em um sapatênis preto e branco.

Um envelope amarelo dourado.

Flexionou os joelhos e ao se endireitar, antes de poder abri-lo para conferir o que gerava todo aquele peso nele, uma voz cortou o ar, imperiosa:

— É meu! – E em um salto, o dono da voz estava em seu lado, a mão erguida para tomar o envelope das mãos negras e delicadas de Monique.

A mulher desviou os olhos para aquela pessoa. Não reconheceu o rosto, e o sotaque denunciou que não era filho da terra. Já ia devolvê-lo o envelope quando um novo som cortou os ouvidos dos ocupantes daquela rua.

O barulho de um tiro preencheu o ar. Um, dois, três tiros. Ian encheu os olhos, correndo para a moto, encontrando dificuldade para girar a chave. Não conseguia dizer ao certo de onde vinha os estrondos, mas também não queria descobrir, uma vez que achava que o alvo podia muito bem ser ele.

Ainda não conseguira sair do canto quando sentiu um peso tomar conta da sua garupa. A garota, que ainda tinha o envelope nas mãos, subiu na moto. Tinha o rosto assustado e se tremia inteira.

— Moço, liga a moto, tira a gente daqui, vai!

— Menina, o que está fazendo?

— Vai, cara, vai!

O medo faz as pessoas tomarem atitudes que não ousariam nem a cogitar em momentos de “sobriedade”. Mas analisando, subir na moto e sair da rua que estava sendo preenchida em tiros, era muito mais seguro do que correr desgovernada por uma rua limpa como aquela. E agora, encontrava-se estapiando as costas de um estranho que parecia ter pouca experiência em ligar motos.

Mas em um estalar sem avisos, a correu no chão firme, fazendo Monique ter que se segurar firme nos ombros do rapaz, tentando não cair enquanto o vento bagunçava os seus cabelos como um especialista. Seu coração parecia estar em uma escola de samba.

Os tiros continuavam ecoando. O retrovisor da moto não demorou a detectar que vinham de um carro Gol branco. Não estavam necessariamente próximos, mas a mira...

— Moço, eu acho que eles querem te roubar!

O grito de Monique era estridente. Em resposta, Ian apenas acelerou mais a moto, os olhos girando sem ter um ponto certo. A garota só teve certeza que aquele era seu fim: se não fosse morrer acertada por um tiro, morreria por excesso de velocidade naquela moto.

— Moço, é melhor parar a moto e entregar do que perder a vida – Ela continua, gritando, achando que talvez ele pudesse não estar ouvindo devido a ventania que a velocidade causava – Reagir a assalto não leva a nada.

— Pula da moto – Ian respondeu – Mas me entrega o envelope antes.

— O quê? Eu não vou pu...

Um disparo duplo voltou a soar. Naquela altura, estava quase fora da cidade, tendo passado por entrada de ruas diversas vezes, muitas delas, com cortadas e apertadas de freios calorosas. Parecia um daqueles eventos que a pessoa torce para ser um pesadelo. Toda a boa sensação que o espetáculo de circo tinha causado em Monique escorreu para uma parte de seu consciente que ela poderia jurar que havia acontecido a dias e não a menos de uma hora.

It's time we all reach out for something new, that means you too

(PT-BR: Está na hora de todos tentarmos algo novo, isso significa você também)

Ian conduziu a moto por um caminho de areia, ao invés da BR, pensando que isso dificultaria a condução do carro. Indiscutivelmente, para caminhos difíceis, a moto é mais amiga do ser humano do que o carro.

A pressão que a estrada fazia na moto era agoniante. Subiam e desciam, sobre as rodas, as nádegas já doloridas. De fato, o barulho do carro já não podia ser ouvido, mas isso não fez Ian diminuir a velocidade ou parar a moto. Esse fato novo preocupou Monique.

— Eu quero descer – Tentou colocar firmeza na voz, mas sabia que foi traído com uma certa afinação de medo.

— Eu vou parar, está bem? Deixa só eu me certificar que eles já não podem nos alcançar.

De todo coração, ele esperava que os caras não tivessem decorado o rosto da garota. Ela não tinha nada a ver com a história, mas subir na moto e ter estado com ele durante todo o caminho, foi uma das escolhas mais doidas que poderia ter. Entrou em conflito se a alertaria sobre o ocorrido, mas decidiu não falar nada. Ela achava ele era uma vítima, e sendo assim, estava meio que alertada que os perseguidores tinham más intenções.

Também não sabia como ela faria pra ir pra casa, mas isso já era uma preocupação que ia além dele. Também precisava voltar para a pousada para pegar sua mochila com roupas, que era seu caminho original antes de todo o ocorrido, mas não precisaria de pressa e sabia ir sem causar tanto movimento.

A estrada de terra ia ficando cada vez menor em termos de passagem. Árvores estranhamente próximas impossibilitariam que um corpo gordo ficasse entre os caules de uma e outra. Eram iluminados apenas pela lua e as estrelinhas parceiras. O chão era bem esburacado e, a moto caiu em buraquinhos desses diversas vezes, sempre fazendo uma pressão desnecessária nos traseiros dos “fugitivos”.

Achavam ter ouvido uma coruja piar, assim como grilinhos cantarem em uma só sinfonia. Mas ninguém comentou nada. Só seguiam.

Seguiam até que, sem qualquer desejo, de repente estavam deitados de bruços no chão constituído por fragmentos de areia e pedrinhas. Houve uma colisão, em que a moto bateu em um pequeno e frágil tronco caído (como diabos não vi isso?, questionou Ian só para si), derrubando a moto e jogando os corpos para frente. Para além de um grande tronco, também deitado de forma horizontal, ocupando toda a estrada, de um lado a outro.

Ao lado de deles, tanto se olhassem para a esquerda quanto para a direita, árvores que pareciam não ter fim em modos de altura, seguiam fileiras únicas e retas. Todas tinham a mesma espécie: finas e aparentemente de frutos minúsculos.

— Tudo bem aí? – Perguntou, limpando as mãos que estavam cheias de terra. Apesar do feio impacto, o cair não foi dolorido. Tinha sido quase como... cair em um colchão. Aquilo definitivamente era estranho, mas não tanto quanto o que ainda ia acontecer.

— Você não viu o tronco? – A mistura na voz de Monique trazia uma mistura de emoções. Era medo, raiva, choque... Ainda não sabia como não tinha se quebrado ao meio com aquela queda.

— E você viu? – Certo que ele era meio imprudente em trânsito, mas um galho como aqueles, principalmente o segundo, não era uma coisa que não pudesse ser visto facilmente.

Ian viu a moto caída em frente ao galho menor. Caminhou em direção ao galho maior, e levantou a perna direta para subir nele. Acreditava que já podiam voltar dali. Definitivamente, não teria como continuar naquela estrada. Era o fim.

Todavia, surpreendentemente, ao erguer a perna, seu joelho encontrou um bloqueio. Em nada. Havia um “nada” bloqueando a passagem. O homem enrugou a testa, desconfiado e confuso, e tentou atravessar aquele “nada” com a outra perna, em substituição. Semelhantemente, foi parado outra vez. Era como se houvesse uma parede. Invisível.

Deu um chute de leve, no tronco, e conseguiu senti-lo. Mas, quando tentava passar pelo espaço que tinha sobre ele, algo sólido também era sentido. Levou a mão em direção a essa barreira de ar, e sentiu a solidez. Deslizou a mão pela parede invisível, e não havia como passar, realmente. Forçou, forçou, mas era duro demais.

— Para quem está dando tchau? – Monique perguntou, desconfiada que aquilo tudo fosse uma emboscada e ele fosse um estuprador. Cruzou os braços contra o peito, as pernas meio trêmulas.

Ian se moveu para um lado e outro de todo tronco, tentando encontrar a explicação para aquilo ou uma parte que pudesse atravessar. Nada. Estava tudo tomado. Pelo nada.

— Tem algo aqui prendendo a gente – Disse por fim, vencido.


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