Rouxinol escrita por Petty Yume Chan


Capítulo 2
Augustus DeLucca


Notas iniciais do capítulo

Continuaçãozinha =3



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Já se fazia um mês e meio que nós estávamos trabalhando incansavelmente naquele projeto, mas a verdade é que o cansaço existia e ele estava presente no rosto de todos, e no animo também.

Nós havíamos marcado mais uma reunião, quando eu cheguei apenas Violette e Lysandre estavam presentes absortos em seus próprios assuntos. Eu os cumprimentei quando entrei, mas não era possível dizer que eles eram o grupo mais comunicativo de todos, eles apenas responderam o cumprimento e nós ficamos naquele silencio enorme enquanto esperávamos o restante do grupo chegar.

Os minutos iam passando cada vez mais e nós não tínhamos sequer um sinal de fumaça dos outros dois. A situação já estava começando a ficar preocupante, pelo menos para mim. Eu estava prestes a perguntar para os outros dois se eles sabiam de alguma coisa quando a porta da sala se abriu e nós vimos à figura de Castiel passar pela porta. Eu não era muito próximo dele, mas mesmo assim eu pude perceber que ele parecia um pouco transtornado, e aparentemente eu não fui o único a perceber.

— Está tudo bem? — Lysandre perguntou.

— A reunião vai ter de ser adiada. Parish desmaiou.

Foi preciso uns três segundos para eu conseguir processar com certeza a informação, e quando o fiz senti a noticia caindo como uma pedra no meu estomago. Eu me levantei de uma vez quase derrubando a cadeira onde estava, mas isso não importava agora, havia coisas mais importantes para pensar. Aparentemente o resto do grupo concordava comigo, pois em um momento todos estavam de pé, bombardeando o ruivo com perguntas sobre o que havia acontecido.

— Calma, CALMA! — A voz dele reverberou pela sala vazia, fazendo com que todos nós congelássemos no lugar. — Eu a encontrei a caminho daqui. Ela já parecia meio pálida, eu disse que se ela não estivesse se sentindo bem deveria ir para casa, e nisso ela desmaiou.

— Onde ela está agora?

— Eu a levei para a enfermaria.

Não pensei duas vezes e apenas sai correndo em direção à enfermaria ignorando as vozes atrás de mim. Nunca antes na minha vida eu tinha atravessado o campus tão rápido, provavelmente foi algum pico de adrenalina que me moveu, pois eu dificilmente conseguiria repetir aquela façanha por vontade própria, inclusive tive que esperar alguns minutos para recuperar o fôlego antes de entrar na enfermaria. Eu abri a porta devagar, meus olhos já vagando pela sala em busca de Parish, mas antes que eu pudesse encontrá-la minha visão foi barrada pela figura do enfermeiro que tinha um olhar interrogativo.

— Eu sou amigo da Parish, queria saber como ela está.

— Ela ainda está um pouco fraca, mas já recobrou a consciência. — Ele apontou para uma das camas escondida atrás de uma cortina. — Você tem dez minutos.

Eu rodeei a cortina para encontrar Parish deitada. Ela estava de olhos fechados parecendo tão pacifica que era quase impossível dizer que ela estava passando por algum tipo de problema. Inconscientemente eu toquei sua mão, ela abriu os olhos um pouco surpresa, mas sorriu em seguida.

— Oi... — A voz saia baixa, como se ela precisasse de esforço para falar. Ainda assim ela se moveu de forma a ficar sentada na cama, embora todos os seus movimentos parecessem um pouco instáveis.

— Devagar, eu já tive sustos demais por um dia. — Ela riu. — Como você está?

— Cansada. Extremamente cansada.

Os olhos verdes já não mais exalavam o brilho de sempre, e ela aparentava estar infinitamente mais pálida. Eu já sabia que ela não vinha muito bem nos últimos dias, mas aquilo era muito pior do que o imaginado. Não sei o que me moveu, mas antes que percebesse eu já havia a envolvido em um abraço, ela ficou meio tensa no começo, mas logo eu senti o seu corpo relaxar.

Não que fosse a primeira vez que nós tivéssemos nos abraçado, mas daquela vez era diferente. Primeiro porque geralmente era ela quem iniciava o gesto, segundo porque dessa vez só parecia mais intimo. Eu podia sentir os tons cítricos do seu perfume, e o calor dos nossos corpos se misturaram de um jeito que eu nem mais sabia diferenciar quem era quem, por um momento o mundo ao nosso redor parou e só nós dois existíamos ali.

Nós nos perdemos no tempo de forma que o abraço só foi quebrado quando o enfermeiro apareceu avisando que o meu horário havia acabado. Nos separamos e por um momento eu pensei ver a minha própria decepção refletida nos olhos dela, mas não durou muito antes de o sorriso tomar lugar.

 — É melhor você ir, não vou te segurar por muito mais tempo. — A mão dela alcançou a minha uma ultima vez, nossos dedos se movendo juntos de forma a acabar entrelaçados. — Obrigada, Armin.

Por um momento eu pensei que talvez quebrar algumas regras não fosse realmente uma má ideia, mas analisando melhor era possível perceber que aquele não era o melhor momento, eu provavelmente arranjaria uma briga com o enfermeiro e no momento Parish precisava de sossego. Com relutância eu soltei a sua mão e sai da enfermaria.

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Nosso projeto já estava bem avançado, então nos precisávamos apresentar um relatório para o professor responsável. Parish já havia arranjado o professor e boa parte do relatório, aparentemente Lysandre a havia ajudado nessa parte, mas todo mundo estava com uma agenda meio apertada para conseguir falar pessoalmente. Porém eu tinha uma lacuna em um dos meus períodos.

Na maior parte do tempo eu gostava de evitar a papelada e a burocracia. Era problema demais para coisa de menos. Mas depois das ultimas semanas em que Parish mal aparecia nas reuniões e quando aparecia era a personificação do cansaço, eu me senti na obrigação de ajudá-la de alguma forma, então não foi difícil de aceitar quando ela me pediu um favor.

Conclusão, eu aproveitei o meu período livre para organizar isso. A maioria dos alunos estava em aula o que tornava a sala de professores e coordenadores bem mais tranquila, algumas poucas pessoas esperavam na fila para serem direcionadas as salas que buscavam. Esperei alguns minutos para a minha vez, pedi para falar com o Sr. Zaidi e a recepcionista me indicou uma sala ao fundo do corredor.

A porta estava entreaberta com um pequeno vão, logo eu deduzi que não havia ninguém e sem pensar muito me aproximei para abri-la, mas minha mão parou na maçaneta no momento em que eu ouvi vozes vindas de dentro da sala.

— Eu entendo a sua situação, mas você também precisa pensar na sua saúde.

— Mas eu consigo conciliar tudo. Eu estive aguentando por todo esse tempo, é só um período conturbado, eu vou superar.

Eu sabia que era errado ficar ali e ouvir a conversa, mas por algum motivo havia algo que me congelou no lugar por um momento e eu simplesmente não conseguia me afastar da porta. A primeira voz eu identifiquei como sendo do Sr. Zaidi, mas a segunda eu não conseguia distinguir, talvez por ela estar embargada como se o dono estivesse prestes a chorar, mas ainda assim eu sentia aquela entonação familiar e era como se a minha mente estivesse muito perto de fazer uma associação, mas ainda assim muito longe.

— Senhor, por favo. Isso é importante para mim, e eu estive cumprindo com todas as condições.

— Eu sei, eu sei. Mas se o diretor perceber que o seu desempenho está sendo prejudicado ele provavelmente vai te forçar uma escolha que você não vai gostar, e nem mesmo o seu pai vai poder te salvar disso. O que estou dizendo é para você considerar as suas prioridades, você não pode carregar o mundo inteiro nas costas.

A sala ficou em um silencio que até eu poderia tabelar como desconfortável. Aquela foi a minha dica para me afastar e esquecer tudo o que tinha acabado de ouvir, aquela historia nada tinha a ver comigo afinal.

Me afastei da porta e me sentei em uma das cadeiras próximas enquanto esperava a conversa acabar, talvez demorasse, mas eu tinha um celular e muito tempo livre. Depois de aproximadamente uns vinte minutos eu vi a porta se mover e da sala saiu o Sr. Zaidi acompanhado por ninguém menos que DeLucca. Ambos não notaram minha presença de imediato, mas eu notei como o semblante de DeLucca parecia bem menos brilhante do que quando ele estava desfilando pelos palcos e corredores da vida.

— Seus ensaios acabaram por hoje?

— Sim, Senhor.

— Então vá para casa e descanse. E pense no que eu falei.

DeLucca se virou pronto para partir, mas nossos olhares se cruzaram por um momento e eu pude ver um olhar que parecia carregar o cansaço de vidas, sem contar que eles também estavam vermelhos e levemente inchados. Claro que eu poderia só estar imaginando coisas, afinal ele rapidamente desviou o olhar saiu às pressas pelo corredor, mas meus olhos não puderam evitar segui-lo até onde a visão permitia.

— Posso ajudar, rapaz?

Minha atenção foi chamada de volta pela voz do Sr. Zaidi, me lembrando do verdadeiro motivo para estar ali antes da figura problemática de DeLucca me perturbar a mente.

— Sim. É sobre o meu projeto da Expo.

— Claro. Por favor, entre. Eu vou dar uma olhada nisso.

Eu segui o homem para dentro da sala tentando me convencer de que eu não havia escutado nada e totalmente disposto a me concentrar nas coisas que realmente importavam. Ainda assim, por algum motivo minha mente insistia em voltar para a conversa que ocorreu mais cedo naquela sala.

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O período de conclusão do projeto estava se aproximando e todo mundo estava correndo para finalizar o maximo de coisas possíveis. Para a minha sorte eu já tinha conseguido finalizar praticamente toda a parte “técnica” da programação e só bastava adicionar e refinar toda a parte artística. O pessoal já havia me repassado boa parte da arte para que eu começasse a juntar as peças, mas o tempo não estava realmente ao nosso favor, pois o fim do semestre também estava se aproximando e as nossas reuniões se tornaram muito mais escassas.

Ainda assim eu montei um “rascunho” do projeto com o que eu tinha para conseguir aproveitar todo o tempo que tivéssemos, mas o projeto não era só meu e eu ainda precisava da aprovação de mais alguém, e como eu não tinha tanta proximidade com o restante do grupo como tinha com Parish, a escolha foi obvia.

Claro que a missão se tornou muito mais complicada do que o previsto quando ela passou um dia inteiro sem sequer receber as minhas mensagens. Busquei uma fonte alternativa e tentei perguntar à Castiel sobre ela, mas tudo que eu recebi foi uma mensagem dizendo “não a perturbe” o que só me deixou mais intrigado. Por fim eu acabei decidindo buscá-la nos prováveis locais que ela estaria esperando ter a sorte de encontrá-la.

Primeiro eu fui à busca da turma do curso dela, uma grade de aulas e uma encenação inocente na coordenação foram o bastante para que eu conseguisse uma sala, mas chegando lá as minhas preocupações só tomaram uma forma mais concreta quando recebi a resposta de que já faziam alguns dias que ela não aparecia nas aulas. Minha segunda opção era o teatro, não queria admitir que também fosse a última, mas se ninguém tivesse informações dela lá eu realmente não saberia o que fazer.

 Assim que cheguei ao lugar havia algumas pessoas para quem eu perguntei, infelizmente elas não sabiam me dizer se Parish ainda estava lá, não sabiam sequer me dizer se ela havia aparecido naquele dia, mas como o teatro não estava em época de espetáculo, e os bastidores estavam praticamente abandonados me deixaram vagar a própria sorte para ver se eu a encontrava.

Minha busca não demoraria muito, os corredores e vestiários estavam claramente vazios e os únicos outros lugares que havia eram os camarins. Fui abrindo as portas uma por uma ficando menos esperançosos a cada sala vazia que encontrava, mas na última havia alguém, não quem eu queria, mas alguém. Era engraçado como, mesmo após eu ter saído da equipe de teatro eu ainda via o rosto de DeLucca com muita frequência, embora nenhuma das vezes tivesse sido como aquela.

Sentado em uma das cadeiras, os braços pendiam ao lado do corpo e os olhos vazios encaravam o teto. Demorou um momento para ele notar a minha presença, mas mesmo quando o fez não houve realmente muita reação, ele apenas virou o rosto em minha direção o que me deu total visão da sua decadência. O rosto parecia mais velho e as olheiras sob os olhos ressaltavam o cansaço, quando eu olhava daquele jeito era quase difícil dizer se ainda existia uma alma dentro daquele corpo. Abri minha boca pensando em perguntar se ele havia visto Parish, mas ficar olhando para aquele projeto de zumbi meio que mudou minha pergunta.

— Você tá bem, cara?

Ele deixou escapar um riso sofrido por entre os lábios, eu diria quase que havia um tom de deboche ali, mas eu não conseguia dizer ao certo se era comigo ou com ele mesmo.

— Pensei que você me odiasse.

— Nada pessoal contra você, é o seu narciso interior que me irrita, mas eu acabei de perceber que ver o narciso com cara de derrotado também me irrita. Então diga qual o problema e melhora essa cara antes que eu decida te socar.

Por um momento ele permaneceu com a mesma cara de morte no rosto, o que me fez questionar se aquele cara sabia ter emoções fora de um palco. Minhas duvidas foram esclarecidas quando ele tentou, inutilmente, abafar a risada em uma das mãos e acabou explodindo em gargalhadas de um modo que eu há muito tempo não via alguém fazer, precisava admitir que a cena até arrancou algumas risadas de mim mesmo. Nós ficamos assim por alguns minutos até ele conseguir se acalmar, secando uma lagrima do canto dos olhos.

— Obrigado, eu precisava disso.

— Não foi nada, era o mínimo que eu podia fazer.

— Não, não era. Você podia me ignorar e ir embora. Por que se importou?

Ele tinha um ponto. Por que exatamente eu havia ficado ali? Imediatamente a conversa que eu ouvi entre ele e o Sr. Zaidi passou pela minha cabeça, a expressão de tristeza daquele dia aparentemente havia ficado marcada no meu subconsciente e a conversa com Parish sobre DeLucca poderia ter me influenciado de certa forma. Ele continuava me encarando com aquela expressão perdida e eu tentei encontrar um escape daquilo, mas talvez no fim das contas o melhor a se fazer era ser sincero.

— Certo, eu já vou começar me desculpando. Mas talvez eu tenha, acidentalmente, escutado uma parte da sua conversa com o Sr. Zaidi.

O clima agradável que havia se formado na sala encolheu e desapareceu em uma fração de segundos. O rosto de DeLucca assumiu uma coloração tão pálida que por um momento eu tive medo de que ele caísse morto ali mesmo.

— O que exatamente você ouviu?

— Algo sobre o diretor te dar uma escolha, e também tinha algo com o seu pai. É por causa dele que você é o queridinho do teatro? Porque se for eu vou verdadeiramente te socar.

Eu quase pude ver o alivio de DeLucca adquirir forma física conforme eu falava. Confesso que não era exatamente a reação que eu esperava, o que eu esperava estava mais próximo de um soco no estomago, mas se ele estava bem assim não era eu quem iria reclamar.

— Meu pai me ajudou com a matricula, acredito que você sabe como a Anteros é disputada, principalmente na área de arte. Mas com relação ao teatro eu fiz tudo sozinho, eu precisei e preciso estar me dedicando diariamente para poder estar aqui. A verdade é que eu acabei passando da linha e talvez não consiga dar conta de tudo.

— Tá, mas onde o diretor entra nisso?

— Você já deve ter ouvido por ai que eu quase não apareço nas aulas. — eu acenei com a cabeça. — O diretor sabe o motivo, mas ele meio que concordou em “me proteger” enquanto eu tivesse um bom desempenho no teatro. Acontece que eu estou perto do meu limite e se ele achar inviável continuar, talvez tenha que escolher entre o teatro e o resto.

Não existia muito que eu pudesse falar, era uma situação complicada onde eu só conhecia o superficial, mas desse superficial eu meio que consegui deduzir que, o maior problema naquela situação era que DeLucca estava sofrendo com a antecipação de coisas que talvez nem acontecessem. E disso eu entendia bem.

— Você quer ficar no teatro?

— Deus, sim! Mas eu também não consigo me imaginar desistindo das demais coisas.

— Então não desista.

— Mas, eu...

— Você mesmo disse que é uma probabilidade, não sofra antes do tempo, continue lutando pelo o que você quer. Você vai encontrar o seu equilíbrio eventualmente.

O olhar surpreso de DeLucca não foi realmente inesperado, até mesmo eu estava um tanto surpreso com o desenrolar da conversa. Eu não era realmente o tipo que ficava dando conselhos por ai, mas eu sabia o que era precisar de ajuda externa para conseguir controlar uma mente perturbada. Talvez eu só tivesse visto uma versão mais jovem de mim ali, e isso meio que me moveu de alguma forma.

— Obrigado, Armin. Você é um cara legal.

Eu apenas sorri em resposta, o meu trabalho ali tinha acabado e eu ainda precisava encontrar Parish. Já estava prestes a sair da sala quando um pequeno detalhe me chamou a atenção, talvez fosse algo banal, mas eu simplesmente não conseguia deixar de lado.

— Eu nunca te disse o meu nome.

O rosto de DeLucca voltou a ganhar suas cores apenas por um momento, pois, aparentemente, o meu comentário devolveu aquele tom pálido de morte as suas feições.

— Bem, sobre isso... Parish me falou sobre você. — ele deu um sorriso amarelo. — E eu acabei de lembrar que eu tenho um compromisso, então, se você me der licença.

Ele se levantou de uma vez, a cadeira fazendo um som alto quando foi empurrada para trás. Entretanto, não foi necessário mais do que três passos para que ele cambaleasse e precisasse se apoiar em uma penteadeira próxima, com a respiração um tanto irregular. Eu me aproximei instintivamente tentando ampará-lo.

— Devagar, cara. Você esta bem? Quer que eu chame alguém?

— Não, tudo bem. Eu só preciso de um minu– 

Eu sequer tive tempo de processar os acontecimentos antes de precisar segurar o corpo de um DeLucca desmaiado, era agora que a situação começava a ficar desesperadora já que eu não tinha a menor ideia do que fazer. Tentei gritar por ajuda, mas ou ninguém conseguia me ouvir ou todo mundo já havia ido embora. Fiquei ali por um momento pensando o que mais eu poderia fazer e, uma vez que o susto inicial havia passado, algo me ocorreu.

Já estava claro para mim que a fama de DeLucca não se dava pela a sua altura e, agora que eu estava servindo de apoio para o seu corpo, eu percebi que ele também não era realmente pesado. Logo, considerando a distancia do local onde estávamos até a enfermaria da universidade, me passou pela cabeça de que talvez eu conseguisse carregá-lo até lá. E, uma vez que eu testei minha tese, eu comprovei de que era totalmente possível.

Foi um pouco desajeitado no começo. Eu lutei um pouco para conseguir ajeita-lo de uma forma que não resultasse em nós dois indo de encontro ao chão, e o fato dele estar totalmente inconsciente não me ajudava, no fim eu encontrei uma resolução não totalmente confortável, mas que daria para o gasto. Antes de sair da sala eu pude ver o nosso reflexo no espelho e precisei de um esforço sobre-humano para não cair nas gargalhadas ali mesmo, nossa posição só acentuava o quanto ele era pequeno. E eu que achava que a situação não podia ficar mais estranha.

O caminho até a enfermaria foi tranquilo uma vez que os horários de aula já haviam se encerrado e o campus estava praticamente vazio. Sorte a nossa, duvido que exista alguém no mundo ao qual tivesse como maior objetivo de vida ver DeLucca sendo carregado em meus braços. Assim que eu cruzei a porta da enfermaria a enfermeira se adiantou em nossa direção fazendo diversas perguntas sobre o ocorrido enquanto me indicava uma cama próxima para eu colocá-lo.

— Eu o encontrei já com um semblante meio fraco, e quando estávamos conversando ele simplesmente desmaiou.

— Ele esta com um pouco de febre, mas eu não posso administrar um remédio sem autorização. Rapaz, eu preciso te pedir um favor. — a enfermeira passou entre diversos papeis e gavetas enquanto falava. — Eu vou conseguir uma autorização com o diretor, caso o seu amigo acorde apenas garanta que ele permaneça deitado. Eu não vou demorar mais do que alguns minutos.

— Nós não somos... — Ela nem sequer ouviu minha resposta, apenas saiu da sala apressada sem olhar para trás. — Amigos...

Deixei escapar um suspiro frustrado. Eu não tinha realmente a obrigação de ficar, mas se eu saísse e alguma coisa acontecesse com o anjo do teatro os problemas provavelmente nunca teriam fim, e depois de tudo eu já tinha chego até ali, poderia suportar mais um pouco. Puxei uma cadeira próxima e me sentei ao lado da cama, finalmente parando para pensar em como aquele era realmente um dia estranho, se em algum momento me dissessem que eu acabaria como babá de DeLucca eu provavelmente riria como nunca ri na vida, mas ainda assim, ali estava eu.

Era realmente surreal, se eu não tivesse vivido na pele todo aquele transtorno eu nunca acreditaria em uma historia dessas, mas mais do que isso, toda aquela situação me fez pensar o quanto DeLucca era, digamos, delicado. Ver ele sempre com aquela postura confiante no palco lhe dava um semblante de super-herói americano, mas a verdade é que ele estava muito mais próximo de ser um protagonista de um anime ou jogo feminino, no geral ele era como um personagem fictício saído direto de um mundo encantado.

Foi nesse momento que eu meio que comecei a entender o fascínio das pessoas por ele, afinal de contas, todos sabem que comparado aos personagens fictícios nós, meros humanos mortais, não temos qualquer chance. Enfim, independente do que ele fosse, agora eu tinha que ficar ali o vigiando. 

Fiquei alguns minutos perdendo tempo no meu celular e torcendo para que a enfermeira voltasse logo, infelizmente ela não voltou antes de uma movimentação agitada se iniciar da parte de DeLucca. Aparentemente o nosso belo adormecido havia acordado, ou estava em algum processo próximo disso. Seus olhos piscaram algumas vezes de maneira vagarosa em um provável vai e vem de consciência até pararem em mim, embora eu não tivesse certeza de que ele estava realmente me vendo.

— Armin...? — A voz saiu em um sussurro quase inaudível, e aparentemente ele estava me vendo.

— Infelizmente sim.

— Onde estamos?

— Enfermaria.

Ele fechou os olhos novamente, trazendo mais alguns minutos de silêncio.

— Eu quero cantar. — E agora ele não estava fazendo sentido nenhum.

— Não acho que seja o lugar mais adequado, mas vá em frente.

— Não posso... Não com essa voz... Não entenderiam...

Se antes havia dúvida agora eu tinha certeza de que o nosso Romeu estava delirando, e por um momento eu fiquei preso em um dilema de moral para saber se era ou não errado eu rir daquilo. Talvez eu tenha deixado escapar um pequeno riso, mas também me dei ao trabalho de checar a sua temperatura, apenas para balancear as coisas, e eu não precisava ser nenhum especialista para saber que ele ainda estava em um estado febril. A respiração carregava um peso de cansaço e os cabelos se grudavam ao rosto por conta do suor que também lhe molhava a gola da camisa.

— Não consigo... Respirar...

Os dedos se enroscaram no primeiro botão da camisa como se quisessem abri-lo, mas aparentemente o derrotado já não mais conseguia distinguir os próprios braços das pernas, o que resultou em uma luta inútil com um botão fechado e um resmungo. Por um momento eu me lembrei de quando eu e Alexy éramos menores e um dos dois ficava doente, a gente sempre ficava por perto querendo se ajudar, o que resultava em ambos doentes e mais trabalho pros nossos pais. Talvez fosse por conta dessas lembranças que antes que eu percebesse já estava ajudando DeLucca a se desvencilhar de alguns botões.

— O que você... Está fazendo?

— Garantindo que você não morra no meu turno. — Eu havia aberto os dois primeiros botões quando DeLucca fez o favor de começar a puxar minhas mãos para me impedir.

— Não... Não pode...

— Também não está sendo a parte mais divertida do meu dia, mas é melhor do que te ouvir choramingar.

Ter que me desvencilhar das mãos e protestos de DeLucca não aumentava a minha vontade de prosseguir naquela missão. Ainda assim eu fui capaz de abrir mais dois botões e ter o rápido vislumbre do que parecia ser ataduras enroladas em grande parte do seu tórax antes que ele surtasse de vez.

— NÃO!

O grito havia sido muito diferente de qualquer coisa que eu um dia sequer imaginei vir de DeLucca, alcançando um tom agudo, quase feminino, que por um momento até me deixou em duvida se realmente só havíamos nós dois na sala. Ele se sentou de supetão, fazendo com que eu recuasse alguns passos e erguesse as mãos em posição de rendição, ele puxava a camisa de volta sobre si, tentando ocultar o que agora eu tinha certeza de que eram ataduras.

— Está tudo bem?

Aparentemente a enfermeira havia acabado de voltar. Eu não tinha certeza de o quanto ela havia visto ou escutado, mas seja lá o que fosse eu não estava no clima para explicar.

— Está sim. — eu respondi ainda um pouco atordoado. — Eu posso ir agora?

— Sim, eu já tenho a autorização, mas agora que ele está acordado será mais fácil. Obrigada, rapaz.

Eu apenas dei um aceno de cabeça como resposta. Meus olhos buscaram DeLucca uma última vez, mas ele estava com a cabeça baixa, fazendo com que os cabelos lhe cobrissem o rosto e os braços cruzados ocultavam a camisa semiaberta. Eu sentia que deveria dizer alguma coisa, mas não havia nada mais que eu pudesse dizer, não era nem para eu estar ali a principio de conversa.

Eu sai da sala disposto a esquecer os últimos acontecimentos do meu dia, mas eu não acreditava que eu realmente fosse capaz de os esquecer tão cedo.

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E como sempre eu estava certo.

Por mais que eu tentasse, as imagens do dia anterior na enfermaria continuavam a voltar na minha cabeça. Eu sei que poderia apenas estar parecendo algum tipo de paranoia, mas quanto mais eu pensava naquela situação mais parecia que alguma coisa estava faltando, meio fora do lugar, mas eu não conseguia definir o que era.

— Você está bem?

Ficar muito tempo no meu quarto só estava fazendo com que as memórias se tornassem mais recorrentes, era por isso que eu havia ido para a sala de casa na esperança de que a movimentação me tirasse de dentro da minha própria cabeça. Aparentemente não havia dado certo, pois eu não fazia a menor ideia de quando Alexy havia chegado ali, e a considerar o copo vazio na mesinha à sua frente já fazia um bom tempo.

— Sim, claro. Por quê?

— Já faz uns quinze minutos que você está com as mãos paradas sobre o teclado enquanto encara o nada, já estava começando a ficar assustador.

— Não é nada demais.

Movi os dedos sobre as teclas do teclado tentando recuperar a minha concentração, mas eu simplesmente não conseguia pressionar as teclas. Eu via o meu cursor de texto piscar sem parar na tela não preenchida com mais do que três linhas de programação. Se eu não fizesse nada a respeito dos meus pensamentos aquele trabalho provavelmente acabaria sem futuro nenhum.

— Alexy, você sabe algo sobre DeLucca?

— Augustus DeLucca, fenômeno do teatro, e também é lindo. — Ele respondeu sem sequer tirar os olhos do próprio celular.

— Algo que vá além do que todo mundo já sabe.

Ele ergueu os olhos na minha direção, um olhar claramente desconfiado, não que eu pudesse culpá-lo, se algum dia ele aparecesse me perguntando sobre jogos e computação eu provavelmente teria a mesma reação.

— Ninguém sabe onde mora, ninguém sabe da família ou do passado, se você perguntar ele vai ser evasivo. Não me surpreenderia se na verdade ele fosse algum tipo de fantasma da ópera que mora no porão da universidade. Mas por que o interesse repentino?

— Não é nada demais.

Dei de ombros e voltei a escrever no meu notebook como se não tivesse sido nada demais. Ainda pude sentir o peso do olhar do Alexy sobre mim por mais alguns minutos, mas no fim ele acabou por deixar o assunto de lado. Acredito que ele percebeu que não era o momento para forçar uma conversa, e eu era grato por isso uma vez que eu realmente não saberia explicar metade das coisas que estavam se passando na minha cabeça naquele momento.

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No fim das contas eu não havia chegado a nenhuma conclusão a respeito do caso DeLucca, mas não que fizesse diferença também, eu tinha outras coisas para me preocupar ao invés de ficar criando teorias da conspiração.

Nós estávamos a duas semanas do dia da apresentação e eu estava sentado na cantina da universidade dando os últimos retoques necessários no nosso projeto. Precisava admitir que eu não estava muito confiante quando nós começamos, mas ver agora o nosso pequeno personagem pulando pelas diversas plataformas enquanto se aventurava por entre os muitos quadros famosos que Parish e Violette recriaram com perfeição, eu me sentia realmente satisfeito.

Mesmo estando concentrado no meu trabalho eu ainda pude ver a imagem de Parish na minha visão periférica, aparentemente nos últimos dias eu sentia que havia um imã que me atraia para ela. Nossos olhares se encontraram e eu acenei para ela que respondeu o aceno e se aproximou de mim, embora não tivesse toda a animação que era normal dela.

— Tudo bem?

— Hum? É... Sim. Só meio cansada.

Estranho. Foi a primeira coisa que passou pela minha cabeça. Estava certo que ela parecia cansada – todos nós estávamos nos últimos dias – mas mais do que isso, ela parecia incomodada com algo, como se estar ali fosse complicado para ela. Claro que também eu poderia estar só imaginando coisas, então eu preferi ignorar aquela sensação e agir como se estivesse tudo bem.

— Olha, já esta quase pronto. Eu estou terminando de verificar alguns bugs, mas acredito que eu consigo a versão final até semana que vem.

— Isso é ótimo, mal posso esperar para ver.

— Se você estiver livre depois das aulas... A gente pode ir na cafeteria aqui perto, beber alguma coisa, e ai eu te mostro como está indo.

Todo mundo sabia que na verdade era um convite para um encontro, não é como se eu tivesse feito muita questão de esconder. Mas a aquela altura o nosso relacionamento já havia alcançado um nível que não era realmente estranho aquele pedido, a gente não tinha bem uma coisa definida entre nós, mas ainda assim a gente meio que estava na mesma pagina. Ou era isso o que eu pensava, mas naquele momento Parish hesitou, ativando o seu tique de mordiscar o lábio.

— Desculpe, eu estou meio ocupada. — Ela se movia inquieta, os olhos evitando os meus enquanto ela olhava ao redor, como se estivesse tentando fugir de alguém.

— Você tem certeza de que está tudo bem?

— S-Sim! — Ela respondeu de uma vez, se engasgando nas palavras. — Eu realmente preciso ir agora. Com licença.

Eu não tive tempo para questionar, apenas a vendo puxar suas coisas e correr em direção à saída. Naquele momento eu senti que um balde de água fria havia sido jogado em mim. Eu rebobinei todos os momentos que passamos em minha mente tentando achar onde a falha havia ocorrido, mas eu não conseguia encontrar nada fora do lugar. Respirei fundo tentando voltar a me concentrar, eu poderia tentar falar com ela sobre isso mais tarde, isso claro, se eu tivesse coragem para perguntar.

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O dia da apresentação havia chegado. Os diversos grupos terminavam de arrumar seus stands com projetos e se preparavam para as suas apresentações. No meu grupo o pessoal era um misto de nervosismo e animação, no entanto eu não conseguia dizer se sentia o último.

Mesmo com toda a situação estranha Parish não tinha realmente parado de responder minhas mensagens e não aparentava estar tentando fugir de mim, mas eu ainda podia sentir aquela distancia desconfortável entre nós, e isso drenava totalmente o meu humor, principalmente porque eu não conseguia trazer o assunto à tona.

— Você está bem?

Foi uma surpresa para mim quando Violette foi aquela a puxar assunto. Naqueles três meses em que nós estivemos trabalhando juntos eu poderia contar nos dedos quantas foram às vezes em que nos falamos. E quando eu digo “falar” eu quero dizer que eu perguntava algo relacionado ao trabalho e ela respondia.

— Sim, tudo bem. Por quê?

— Eu percebi que você e Parish andam meio afastados. Aconteceu alguma coisa? — Eu fiquei um momento sem saber o que responder. Uma coisa era eu sentir um afastamento estranho, outra era as pessoas ao redor perceberem, mas aparentemente Violette era muito perceptiva, e me aliviava um pouco saber que eu não estava completamente paranoico com aquilo. — Desculpa, eu não queria ser invasiva.

— Está tudo bem. Não aconteceu nada demais. — Era nisso que eu queria acreditar, mas a verdade era que nem mesmo eu sabia o que havia acontecido, e isso era o que mais me preocupava. — Mas obrigado por perguntar, Violette.

— Não foi nada. Vocês são meus amigos, então eu só...

Aquilo foi o bastante para o rosto dela já começar a ficar vermelho igual um pimentão, as mãos se enrolavam nervosamente e ela tentava a todo custo evitar o meu olhar. Não havia duvidas de que Violette era o ser humano mais precioso do planeta, ela podia ter aquelas dificuldades de demonstrar o que sentia, mas estava claro que ela sentia demais. Não pensei duas vezes e a puxei para um abraço, o que lhe arrancou um gritinho de surpresa.

— Você é tão fofa!

— Ei vocês dois, não é hora de ficar grudados. As apresentações já vão começar.

Parish apareceu de repente, mas era diferente do seu habitual. Não que na posição em que estávamos eu conseguia mais distinguir o que era o seu habitual ou não, mas mesmo quando nos afastamos eu ainda conseguia ver como ela brilhava perto dos outros. Mas naquele dia tudo parecia diferente, talvez por conta do nervosismo, mas ainda parecia algo mais, mais irritadiço, poderia quase dizer melancólico.

— Seu desejo é uma ordem.

Eu esperava que ela entrasse na brincadeira como sempre foi, mas isso já não mais existia entre nós. Seu olhar se prendeu no meu por no maximo alguns segundos, mas ela logo o desviou e voltou para perto do grupo. Ali eu senti o pouco de humor que ainda existia em mim se desvanecer completamente, não importava o quanto eu pensasse eu não conseguia encontrar o momento em que as coisas deram errado. Talvez o nosso tempo só tivesse acabado, éramos apenas parceiros de projeto afinal de contas. Ainda assim eu senti que seria especialmente difícil manter o meu sorriso durante aquele dia.

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— Vai time!

O tintilar dos copos se batendo soou de uma vez nos ouvidos de todos. Nós passamos boa parte da nossa tarde respondendo perguntas e apresentando demonstrações do nosso projeto, no fim do dia estava todo mundo claramente cansado, mas ainda assim absolutamente satisfeito com o resultado. Nosso trabalho não chegou a receber nenhuma premiação oficial, mas até onde eu tinha visto, todos receberam alguma proposta em especial.

— Eu queria dizer que estou muito orgulhosa de todos nós.

— Alguém a pare antes que ela comece um discurso sentimental.

— Você é tão estraga prazeres, Castiel.

Ela se sentou irritada, mas a verdade é que ninguém acreditava que ela estava realmente irritada, e o nosso ponto só foi provado quando a mesma desatou a rir sem qualquer motivo aparente, ainda assim foi um riso contagiante que acabou arrastando todos nós em um riso sem sentido.

Nós ficamos ali mais um tempo relembrando os momentos loucos que tivemos durante a produção do trabalho e se perguntando como fomos realmente capazes de chegar até ali. As horas passaram depressa de modo que só percebemos quando já começava a anoitecer, já estávamos do lado de fora da lanchonete quando Parish gritou.

— Abraço em grupo!

Em meio a risadas e alguns protestos Parish puxou a todos nós para um enorme abraço em grupo. Era engraçado como nós só tínhamos passado três meses como uma equipe, mas foi o bastante para ainda nos conhecermos um pouco e para que eu provavelmente sentisse um pouco a falta deles.

Nos despedimos ali e cada um seguiu o seu caminho. O sol já havia praticamente sumido no horizonte e as ruas começavam a ser iluminadas pelos postes, mas ainda assim havia milhões de pessoas correndo para lá e para cá. Cheguei na parada do ônibus e me deixei cair em um dos bancos, sentindo o cansaço pelo o meu corpo enquanto eu esperava. Fechei meus olhos por um momento, apenas relaxando junto com a brisa, mas o momento foi quebrado pelo vibrar do meu celular no bolso.

“Hey, eu sei que a gente já se despediu.”

“Mas você pode me encontrar nos bastidores do teatro?”

Meu estomago revirou quando eu vi a mensagem de Parish, e por um instante eu fiquei na duvida do que fazer. Talvez aquele fosse o momento para entender o que havia acontecido entre nós, mas ao mesmo tempo eu não sabia se estava pronto para aquela conversa. Respirei fundo uma ultima vez, a universidade não estava tão longe, e talvez fosse realmente hora de dar um fim naquilo. Olhei a tela brilhante do celular e digitei a resposta.

“Chego em dez minutos.”

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Como esperado o teatro estava completamente vazio, eu sequer sabia se era realmente permitido eu estar ali àquela hora. Mas agora que eu estava lá eu percebi que, definitivamente precisava de respostas. Logo eu me encontrei mais uma vez procurando Parish pelos bastidores do teatro, ao menos dessa vez ela respondia as minhas mensagens.

“Estou aqui.”

“Camarim três”

Todo aquele ar de mistério definitivamente não fazia bem para o meu coração. Eu cheguei no camarim indicado, o meu coração martelava nos meus ouvidos enquanto eu me preparava para abrir a porta, talvez ali fosse o fim das minhas angustias. Mas obviamente não seria tão simples, afinal quando eu abri a porta encontrei nada mais do que uma sala vazia. Confirmei uma ultima vez para ter certeza de que estava no lugar correto, e estava, então eu puxei meu celular, pronto para mandar mais uma mensagem quando eu ouvi a porta abrindo.

Eu me virei na direção do som, me preparando para ver aqueles olhos verdes que há muito tempo eu já não via muito bem. Mas não foram olhos verdes que eu vi, o que eu vi era castanho, muito próximo do vermelho. Era ele de novo. DeLucca.

— Isso já está ficando ridículo.

— É eu sei. Mas se você me deixar explicar...

— Olha, cara. Eu tenho um assunto urgente com outra pessoa, se você puder deixar pra uma próxima.

— Com Parish, não é? Isso tem a ver com ela também.

Não pude deixar de sentir um desconforto absurdo naquele momento, eu estava falando com Parish fazia poucos minutos, ela com certeza estaria ali a qualquer momento. Mas agora eu falava com DeLucca, e por que ele estava ali?  Quanto mais eu pensava menos as coisas faziam sentido.

— O que aconteceu?

— Calma. Senta e se acalma. Eu vou explicar tudo.

Mesmo um pouco relutante eu me sentei em uma das cadeiras próximas as penteadeiras do camarim. DeLucca me acompanhou se sentando na cadeira em frente a minha, estranhamente ele parecia tão nervoso quanto eu. Ficamos um momento em silencio, aparentemente nenhum dos dois sabia o que fazer naquela situação, até que ele começou.

— Eu sou Augustus DeLucca.

— Obrigado, eu sabia dessa parte.

— Me deixa terminar!

Ele deu um suspiro cansado, as mãos esfregando o rosto como se ele estivesse tentando colocar os pensamentos no lugar. Os olhos rubros nunca encontravam os meus, aparentemente ele estava fazendo de tudo para evitar me encarar diretamente, começando então a vasculhar algumas coisas na penteadeira próxima de si.

— Eu sempre gostei de cantar, desde que eu era criança. Eu me lembro de acompanhar a minha mãe enquanto ela tocava o piano. Mas, conforme eu fui crescendo, a minha voz foi mudando. — Nesse meio tempo ele havia encontrado algum lenço com a qual ele limpava o rosto. Eu meio que já estava ciente de que DeLucca era adepto do uso de cosméticos, mas vendo ele tirar tudo aquilo agora parecia um pouco exagerado. — Claro que a mudança de voz é natural, mas a minha acabou com um tom inesperado.

Nesse momento ele já estava com o rosto praticamente limpo, e eu precisava admitir estar totalmente surpreso com o fato de que ele parecia quase outra pessoa sem tudo aquilo. A situação ainda era muito estranha e eu não sabia direito o que estava acontecendo, mas quanto mais eu ficava ali mais eu sentia que precisava saber.

— Mas, tecnicamente, a minha voz só era inesperada por causa da minha aparência. Então eu pensei que tudo se resolveria se eu mudasse um pouquinho. Talvez se eu conseguisse achar o equilíbrio entre os dois as pessoas não estranhassem tanto.

 O mundo praticamente virou de ponta cabeça quando eu o vi retirar dos olhos as lentes de contato vermelhas, revelando as íris verdes por debaixo. Eu sentia que milhões de alarmes se acionavam na minha mente, não tinha como aquilo ser real.

 — A minha primeira mudança foi um corte de cabelo. Não teve realmente o resultado esperado, embora eu acabei aderindo o corte. Mas então eu percebi que a minha mudança tinha de ir muito além, eu teria que virar outra pessoa.

O golpe final veio quando ele puxou os longos cabelos negros, que por fim nada mais eram do que uma peruca. Os fios castanhos levemente bagunçados surgiram e a realidade me atingiu como um soco no estomago, estava diante dos meus olhos, mas minha mente ainda não era capaz de realmente processar que ele, na verdade, era ela.

— Meu nome é Parish Julien Clair, e eu sou Augustus DeLucca.

A voz voltou a ter o tom mais suave que eu normalmente estava acostumado a ouvir e ela colocou os óculos assumindo a imagem completa de Parish. A essa altura meu estomago já havia dado um nó completo e eu sentia que o meu mundo estava de ponta cabeça e sem gravidade ao mesmo tempo. Ela ficou só me encarando por um tempo, aparentemente ela havia acabado de falar e estava esperando por mim, mas o que eu poderia dizer? A minha boca se abria varias vezes tentando formar qualquer frase plausível.

— Como isso aconteceu?

— Não importava o meu talento, eu ainda seria vista apenas como uma atração de circo, então eu criei DeLucca para conseguir me esconder, e se as coisas dessem errado eu apenas tiraria a peruca e fingiria que nunca aconteceu.

— Mais alguém sabe?

— Algumas pessoas, o diretor é o mais importante. Meu pai é escritor e já escreveu alguns roteiros para o teatro daqui, por conta disso ele conseguiu convencer o diretor a me dar uma chance. No começo ele estava meio incrédulo, mas depois que DeLucca começou a chamar atenção para a universidade ele agora faz todo o possível para me proteger.

Nós caímos em silencio mais uma vez. Os dedos dela brincavam e se enrolavam com os fios negros da peruca e era como se eu pudesse ver um lado dela nunca antes visto, tinha um ar mais solitário. No fim das contas ela aparentava ser a que mais sofria com aquela situação.

— Você está bravo?

Era uma boa pergunta. A verdade é que eu não sabia dizer o que eu estava sentindo, eu nem sabia se estava realmente sentido alguma coisa. Ela me olhava com aqueles olhos verdes, cheios de expectativa, aqueles olhos verdes que me cativaram desde o primeiro momento. Inconscientemente eu apertei os braços da cadeira onde eu estava, tentando forçar as palavras por entre a minha boca seca.

— É só muito para processar.

— Imagino que sim.

— Mas sabe, isso explica muita coisa. Os desmaios, os sumiços, o sutiã...

— A gente não pode esquecer essa ultima parte?

— Admita que foi engraçado.

O rosto dela se tornou vermelho quase que instantaneamente, embora eu ainda estivesse perdido naquele dilema de personalidades eu não conseguia me sentir irritado. As memórias se revezavam em minha mente mudando entre Parish e DeLucca e cada vez mais eu percebia pequenos detalhes que apontavam para as semelhanças. Não importava o que, a Parish em minha frente era claramente real, e era a garota por quem eu havia me apaixonado.

— Mas por que você me contou tudo isso?

Ela desviou o olhar depois de muito tempo de conversa, se movendo inquieta na cadeira como se fosse extremamente desconfortável estar ali.

— Bem... Você já estava muito perto... Eu imaginei que em breve você descobriria. Depois de tudo, foi culpa sua mesmo!

— Minha culpa?

— Sim. — Ela me encarou novamente, com o olhar mais determinado que eu já havia visto. — Você apareceu de repente com esse sorriso de galã fazendo eu me apaixonar por você, então todos esses meus sentimentos ficaram misturados e eu já não conseguia me concentrar direito. Então eu pensei que se eu contasse esses sentimentos diminuiriam.

Mesmo que me pedissem eu não conseguiria segurar o sorriso que se formou em meu rosto naquele momento. Aquele definitivamente era o dia das noticias que testariam o meu coração, embora eu não pudesse dizer que a segunda tenha sido tão ruim assim, afinal eu secretamente desejava ouvi-la algum dia.

— Seus sentimentos por mim te atrapalham?

Ela soltou um pequeno som de surpresa, quase como um engasgo em meio a sua resposta. O tom vermelho já subia desde o pescoço até as orelhas enquanto ela tentava de todo modo evitar o contato visual comigo.

— S..Sim. E agora que você sabe eu espero que você pense em algum jeito de recompensar todo esse transtorno afin–

Eu não a dei tempo de terminar, eu já havia ouvido tudo o que precisava para ter aquele impulso de loucura. Um toque de nossos lábios. Foi rápido e suave, mas foi o bastante para que as certezas se instalassem na minha mente. Nos separamos com um suspiro, embora ainda estivéssemos perto o bastante para que nossas testas se tocassem, eu podia sentir o calor que emanava de seu rosto e eu pude perceber o verde de seus olhos parecerem mais vivos enquanto me encaravam.

— Isso paga a minha divida?

— É um bom começo. — Ela abriu um sorriso travesso. — Mas você me deve bem mais do que isso.

Eu retribui o sorriso. Não sabia exatamente quem se moveu primeiro, mas nossos lábios se tocaram mais de uma vez naquela noite.

༺═──────────────═༻

— Quem diria que Augustus DeLucca ficaria a ponto de abrir um buraco no chão antes de cada apresentação.

Já se fazia quatro meses que eu e Parish estávamos juntos. Ela ainda vivia uma vida dupla como DeLucca, mas agora ela se policiava um pouco mais para não acabar se sobrecarregando como antes, e eu fazia o possível para conseguir ajuda-la nisso, tomando cuidado é claro para que o segredo não viesse à tona.

Por conta disso eu acabei voltando para a equipe de teatro depois que o nosso projeto acabou. Ainda não era a minha atividade favorita, mas foi o jeito que eu encontrei para poder aparecer nos bastidores sem parecer suspeito. E na realidade foi realmente bom eu ter decidido aquilo, afinal a garota ficava uma pilha de nervos, andando para lá e para cá sem parar antes do inicio das apresentações.

— Ei, venha aqui.

Eu a segurei pelos braços, impedindo que ela repetisse o seu vai e vem mais uma vez pela sala. Ela voltou sua atenção para mim, me encarando com aqueles brilhantes olhos rubros. Era engraçado como, agora que eu sabia a verdade, eu conseguia ver Parish nitidamente mesmo por debaixo de todo aquele disfarce extravagante.

— Agora não, Armin. Eu preciso me concentrar.

— Eu sei, e é isso que eu estou fazendo. Agora olhe para mim e me diga: quem é você?

— Parish Julien Clair?

Eu a segurei pelos ombros virando-a em direção ao espelho do camarim, de forma que ambos os nossos reflexos apareciam.

— Não. Quem é você agora?

— Augustus DeLucca. — Ela respondeu em um sussurro quase inaudível.

— Não escutei.

— Augustus DeLucca! — Ela anunciou um pouco contrariada.

— Exatamente! E o que Augustus DeLucca é?

— Um narcisista irritante?

— Também. Mas mais do que isso, ele é o fenômeno do teatro. E o que os fenômenos são?

— Incríveis?

— Sim! Eles são incríveis, e você é incrível. Então agora você vai colocar um sorriso no rosto, subir naquele palco e ser incrível como você sempre é.

Os olhos se desviaram do espelho e se voltaram para mim, por um momento tudo o que eu recebi foi uma expressão incrivelmente plana, mas, como o esperado, não demorou muito para que ela desatasse em uma gargalhada.

— Você é muito besta, sabia?

— Você gosta de mim assim.

A apresentação estava prestes a começar, e por esse motivo grande parte do elenco já estava em suas posições próximas do palco, o que na maioria das vezes nos dava a privacidade de um camarim vazio. Era nesses momentos que eu aproveitava para lhe roubar um rápido selinho, também porque era sempre fofo ver os seus protestos.

— Já disse para não me beijar quando eu sou DeLucca!

— Você é paranoica demais.

— Se surgir um boato de que você está me traindo comigo mesma eu não vou fazer a menor questão de te defender.

— Sim, chefe.

O sinal tocou anunciando os quinze minutos para o inicio da peça, era a hora da nossa despedida. Eu precisava voltar para os meus botões e Parish tinha de encarnar o personagem por cima do personagem, embora eu já pudesse perceber ela ficando nervosa de novo.

— Ei, vai ficar tudo bem. Nós não vamos estar literalmente juntos, mas eu vou estar lá com você, ok?

Ela acenou com a cabeça, e eu aproveitei para lhe roubar um ultimo beijo antes de correr pela porta enquanto ouvia os seus protestos atrás de mim. Me esgueirei por entre os corredores e as pessoas o mais rápido que pude, chegando ao meu posto com poucos minutos de antecedência. Acenei para o meu parceiro de trabalho que só retribuiu o gesto, mesmo depois de todos aqueles meses ele ainda era o mesmo, acredito que desde o começo ele esteve lá por gosto. Talvez eu devesse tentar puxar assunto com ele sobre isso em uma próxima vez.

As luzes se apagaram e os anuncio de prevenção e segurança foram dados, logo o palco já estava sendo iluminado e os atores iniciavam suas cenas. Não demorou muito até que o verdadeiro motivo de eu estar ali também fez a sua entrada, era verdade que o teatro ainda não era o meu passatempo favorito, mas por ela eu fazia um esforço, e precisava admitir que até comecei a pegar um pouco de gosto.

Depois de tudo, eu nunca pararia de me surpreender com o quanto ela era capaz de simplesmente se transformar o quanto quisesse. Ela desfilava pelo palco com toda a confiança do mundo como se nunca antes tivesse duvidado de sua capacidade, e era engraçado pensar que toda a multidão ali acreditava fielmente em sua representação. No fim das contas ela era isso, ela era aquela que queria espalhar a arte no mundo, ao mesmo tempo em que ela era a representação da arte por si só. Ela cantaria e anunciaria a sua arte para o mundo, ainda que corresse e se escondesse quando alguém tentasse chegar muito perto, exatamente como o rouxinol marcado em seu corpo.

Porque era isso que ela era.

Um pequeno rouxinol.


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Notas finais do capítulo

E foi isso minha gente, acho que essa foi a primeira comedia romântica que eu escrevi, espero ter acertado kk'
Kissus da Yume
Ainda o link do grupo mais lindo desse facebook kk"
Fanfics Amor Doce/Eldarya
https://www.facebook.com/groups/366656323740414/



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