Nos teus olhos enxerguei o infinito escrita por Sebastian


Capítulo 4
Judas


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!



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Glover

“O salário do pecado é a morte”,  o versículo passa pela cabeça de Glover como se fosse um aviso de sua consciência, embora não tivesse o costume de usá-la. Ele saiu cedo naquele dia, o grande dia, um evento pelo qual todos daquele ducado sujo esperavam: o casamento dos porcos de Hillton. Porcos e sujos, o subterfúgio que o faz ficar dentro de si e esquecer que aquele pequeno lugar está longe de ser como um chiqueiro. Acontece que Hillton nasceu para ser diferente, ninguém sabe de onde saiu esse sonho, talvez da cabeça utópica do duque ou um lugar de conforto da rainha. De onde ele veio, homens como ele jamais poderiam sonhar. Glover foi criado para ser o que é: uma farsa, até seu nome não existe, o que há é um mero personagem, depois mais um; mais outro e a vida segue como se suas máscaras nunca tivessem existido. Um homem nasce, outro morre. 

Ele segura a bíblia enquanto encara a paisagem, está começando a se arrepender do álibi, disse ao Padre Edmund que ficaria em retiro por uma semana, mas silêncio é o que menos precisa agora, só daria mais espaço para uma conversa com sua consciência. Ele está sentado embaixo de uma árvore, em uma trilha escondida, seis meses foram o suficiente para mapear toda a floresta que cerca a igreja e a mansão Hillton. Ninguém o encontraria ali. Quarenta minutos até chegar ao local mais estratégico — uma visão limpa da porta da igreja, não tão distante e não tão perto — mais alguns minutos para preparar a artilharia — coisa fina e profissional. Então, para a coisa dar certo, teria de começar a caminhada assim que ouvisse os sinos festivos da igreja tocar. Nunca esteve tão nervoso, seu coração nunca pesou tanto. Glover olha para o livro sagrado mais uma vez, Deus está o julgando. 

Mais uma hora de silêncio, ele encosta a cabeça na árvore para tentar cochilar, um pensamento sombrio e mais uma briga com sua consciência — engraçado, lembra-se do velho homem que passou todo este tempo o catequizando sem saber, sempre diz que os anjos falam através dela — bobagem, não poderia acreditar nisso agora. Daqui um tempo, estará bem longe deste lugar, terá uma outra vida e uma nova identidade. Não será mais Glover, o dócil e paciente seminarista. Terá, provavelmente, um novo trabalho, mais uma vida inocente tirada em troca de dinheiro. Embora não fosse o mais experiente do seu grupo de mercenários, sempre foi julgado como o mais esperto. Não é à toa que está aqui, seu rosto casto nunca levantaria suspeitas de ser um lobo vestido em pele de cordeiro. 

— Termine o trabalho, depois veja o que vai fazer — diz para si mesmo. 

Fugir não é uma opção ruim, continuar como um homem de Deus também não. Talvez, rejeitar a ideia de matar Helena salve sua alma, mas não seu corpo. Ainda há tempo. Poderia sumir dali, partir para o novo mundo como um clandestino, Hillton é uma região portuária e exportadora, seria fácil. No entanto, de qualquer jeito, seria um covarde. O homem que pagou pelo seu serviço tem um propósito em mente e por certo é muito poderoso, não que tenha medo, porém dever para ele seria um erro. Se não cumprisse o acordo, não haveria lugar no mundo que o escondesse, ele o encontraria. 

Os sinos da igreja tocaram, o casamento começou. O rapaz suspirou de maneira preguiçosa. Ele se levanta, ajeitando o peso da bolsa nas costas e dá início à caminhada. Glover segue a pequena trilha acompanhado pelo canto dos pássaros e por pensamentos infelizes. Após um tempo andando, finalmente consegue ver feixes da luz, está cada vez mais próximo. Nunca sentiu seu coração palpitar tanto, tudo o que precisa é de concentração, nada pode dar errado. Será algo rápido, um minuto de distração e perderá a oportunidade perfeita. 

Ele está a quase três metros de distância, camuflado entre as árvores, mas com uma vista perfeita para a porta da igreja. Assiste os últimos convidados entrarem na capela, seus olhos captam o duque conversando com alguém na porta e ele parece tão… feliz. Glover ri da própria tolice. Não deve escolher um lado, tanto o homem que o pagou pelo serviço quanto o admirável duque  são iguais, isso não passa de uma luta por poder, um jogo político. A porta da igreja está vazia, em breve a noiva chegará. 

Glover se mantém calmo, retira a arma da bolsa, preparando-a para uso e coloca um óculos para enxergar com precisão — é algo parecido com um binóculo de ópera, preso por uma fita de couro atrás da cabeça. Ele está pronto, agora é só aguardar com paciência como um caçador, a noiva sempre atrasa. Por fim, após longos minutos de espera, a carruagem triunfante chega. Helena desce da carruagem, está deslumbrante, o duque com certeza é um homem de sorte. Os anjos continuam a falar através de sua consciência, enquanto admira cada detalhe do rosto dela, o sorriso quase imaculado e a felicidade, essa sim o contagiou de longe. Reflete um pouco, sobre piedade — o último momento dos dois juntos, o ápice da alegria será hoje, então o duque não irá lamentar tanto. Eles irão trocar suas últimas palavras e o último beijo, no fim, um ato de bondade. 

A cerimônia vai durar algum tempo, ele enrijece os ombros e adia mais uma conversa com seu anjo da guarda. Ainda terá de ficar alguns dias com Padre Edmund e ainda vai assistir de perto o luto do duque, isso não o deveria afetar, não é profissional. Essa sequência de ponderações todas erradas. O que há com ele? Por que está tão arrependido? Não sabe a resposta. Possivelmente agir como um homem de Deus se entranhou na sua alma, será que se rendeu a todas as baboseiras do Padre? Será que acreditou, por um momento, ser Glover — o garoto rico de vocação Franciscana, aquele que abdicou de sua herança para se dedicar ao celibato e aos mais pobres? Foi uma história tão boa que convenceu a ele mesmo. Idiota. Hora de esquecer isso. 

— Profissional, seja o que foi pago para ser. 

A hora chegou. Ali está Helena ao lado do seu marido. Os dois saem da igreja com chuva de pétalas e aplausos, ela está com o braço direito atrelado ao dele. Eles param por um segundo, parecem muito felizes. Glover se prepara. Agora, nem um segundo a mais ou a menos. A posição perfeita e ensaiada. 

"Tem certeza?”, um arrepio percorre sua nuca. 

“Não tenho escolha, é a minha vida ou a dela”. 

Ele mira em Helena, aproveita os últimos segundos para contemplar aquela imagem — Bem aventurados os puros de coração, porque terão a vida eterna. Helena Hall Johnson, a bondosa e amada recém duquesa de Hillton, irá cantar com os anjos. 

Glover aperta o gatilho, sem hesitar.

O projétil corta o ar em alta velocidade, enquanto o barulho insuportável surge dentre as árvores. O caminho é executado com perfeição. Atinge a mulher em cheio como se fosse parti-la ao meio. Helena caiu nos braços do marido.

Tudo aconteceu de maneira muito rápida, questão de segundos. Agora, ele precisa aproveitar o momento do choque e partir. Não foi nada discreto, logo iriam atrás dele. Glover segue uma trilha oposta da qual veio, em passos rápidos, antes que consigam rastreá-lo. Obviamente, mais cedo ou mais tarde, rastreadores iriam estar no encalço do assassino, mas até lá quem iria desconfiar dele?

Não há tempo para ver as lamentações e os choros. Ele corre com agilidade pelo caminho que havia programado há muito tempo, porém, seu coração está pesado e sua mente enevoada. O fantasma de Helena já o perseguia. Como poderia ter roubado a vida de uma pessoa tão inocente? Ele já matou antes, mas não como agora. Está arrependido. Glover para em uma clareira e se esconde embaixo de uma gruta, terá de passar o dia lá, até que a poeira abaixe. Sentou-se encostado à parede gelada, agora teria que lidar com seus demônios. 

É fim de tarde, não há sinal de pessoas à sua procura ainda. O céu está escuro e o vento se torna mais refrescante, a chuva começou cair de maneira tímida até se transformar em  uma tempestade. Ele tentou dormir, mas não conseguiu — todos os seus pensamentos se voltavam para Helena, o que não lhe permitia sonhar. Um dos maiores inimigos dos homens são os pesadelos e eles sempre trazem o medo. 

Quando o dia amanheceu, após uma longa noite fastidiosa, Glover se levantou, colocando a cabeça para fora da gruta e deixou o cheiro de terra molhada invadir seus pulmões. Voltou para dentro, mais a fundo, encarou a escuridão, teria de deixar a arma camuflada por ali e depois voltar para pegá-la. Ele a enrolou com cuidado em um pano e a guardou embaixo de uma cavidade de pedras. Andou para fora, o tempo parece estar calmo agora, precisa encontrar a trilha principal novamente para voltar à igreja. 

Ele retira uma maçã da bolsa e inicia a caminhada, deve estar a duas horas de distância. Glover acha que é melhor seguir pela via de carruagens, talvez encontre alguém a quem pedir carona. Enquanto anda, pensa em como vai ser daqui para frente — qual será sua próxima missão, se deve ficar ou partir para um outro continente, começar de novo não é uma má ideia. Encontra a trilha principal, seguindo na direção sul, mas logo algo chama sua atenção: seu cavalo deitado à sombra de um teixo.

O rapaz se aproxima da grande árvore e se depara com o duque, dormindo embaixo das copas, o que ele faz ali? Está vestido em suas roupas simples, o cabelo desgrenhado, por Deus parece que está ali há séculos. Aproxima-se dele e toca seu ombro. 

— Senhor — diz com a voz mansa. — Senhor Johnson.

O homem abre os olhos devagar, a luminosidade invade sua retina de maneira ofensiva, permanecendo em silêncio. 

— O que faz aqui? — o seminarista pergunta como quem não quer nada. 

— Eu a perdi — A voz de Adam sai como um sussurro seco. 

— Quem? — Glover se senta, o cenho fechado. — O senhor não deveria estar aqui. 

— Eu perdi Helena — finalmente fala em alto e bom tom. 

— Como? — Ele parece inquieto. 

— Mataram ela. — O duque pronuncia com raiva. — Foi tão rápido e fatal. 

— Sinto muito, sr. Johnson. 

— Estava tentando ir atrás do assassino. 

Glover ficou surpreso, agora está curioso. 

— Sabe quem fez isso?

— Sou um tolo, Glover. — Ele diz, após um instante de silêncio. — Como provaria que ele fez isso, aquele crápula deve ter planejado muito bem. 

— Acho melhor te levar para mansão, sr. Johnson. — O seminarista se levanta, estendendo a mão para o duque. 

— Me deixe aqui, não vou suportar. 

— Bem aventurados os puros de coração porque terão a vida eterna — o pronuncia sem pensar, como se a frase estivesse guardada e gravada para aquele momento. — Ela não está em um lugar ruim, acredite nisso. — Adam o encara com as sobrancelhas arqueadas, perturbado com aquelas palavras. Glover encosta as costas da mão na testa de Adam, ele está febril. — Deve estar há muito tempo aqui, não é? Quanta chuva o senhor pegou? 

— Muita. 

— Venha, tenha forças em Deus, vou te ajudar a chegar em casa. 

— Não. — Seus olhos já estavam vermelhos, enquanto lágrimas escorriam sem parar. — Eu não sou corajoso.

— Não precisa de coragem… Acho que seu amor basta, é a última coisa que pode fazer por ela. — Doeu um pouco dizer aquilo, Glover desejou não ser o responsável pela tragédia. 

Ele conseguiu convencer o duque e o ajudou a levantar, mesmo estando um pouco fraco, o homem permanece ereto no cavalo. O seminarista guia o cavalo de maneira razoavelmente rápida até a mansão Hillton, levando em conta que Deus o condenou à olhar para consequência de seu crime, pela primeira vez. Eles chegam por volta das 11h00 à residência que está cercada por carruagens e oficiais da rainha, com certeza já colocaram rastreadores na floresta. Glover deixou o duque aos cuidados da senhorita Winston, tia dele, e fez o caminho de volta para igreja, hora de especular.  

↞⧫↠

A capela está lotada de familiares e amigos, os mesmos que estavam no casamento, infeliz ironia. Glover entra no lugar de maneira silenciosa, Padre Edmund está realizando uma homília, enquanto o caixão está no centro do espaço. Uma nuvem de tristeza permeia o lugar e apesar do dia estar ensolarado, dentro de cada um deles está nublado. Ele conseguiu localizar o duque, sentado em um dos primeiros bancos com a cabeça baixa, seu coração pesou de novo. Talvez aquele tempo como seminarista o tenha ensinado a rezar, vislumbrou a cruz na parede central do altar e pronunciou uma prece para Helena em seu coração, um pouco de perdão a Deus e conforto ao coração de Adam. Não entende por qual razão se sente assim, a culpa não é do seu feitio. 

Não deveria estar ali, mas Padre Edmund insistiu para que fosse com ele para ajudar nos preparativos e mais, observar, pois dali um tempo também poderia executar uma cerimônia como aquela. No entanto, seu pecado o corrói como um verme, não poderia olhar para cada uma daquelas pessoas e dizer palavras de conforto quando foi transgressor da tragédia. Não pode olhar o duque de Hillton nos olhos, as pequenas irmãs de Helena e a mãe que nunca parou de chorar. Ele se sente como Judas ao beijar o Messias no rosto e logo depois o traiu por moedas de prata, daqui a pouco, estaria pegando a metade do dinheiro que lhe deviam por aquele trabalho sujo. 

Existe algo em Hillton que é diferente, as pessoas acham seu lugar no mundo, dizem que está no vento, na terra e na luz que o sol emite. Não é um lugar para porcos como ele, irá partir em breve, porém, Adam Hall Johnson ganhará uma resposta por toda sua dor. 

“Mas o dom gratuito do Senhor é a vida eterna”, Glover não sabe se um dia será digno de conquistar a vida eterna, mas hoje, de alguma forma, tentará uma entrada no purgatório. A cerimônia acabou, porém, Adam continuou no cemitério, o Padre lhe disse que ficaria ali para se despedir, ninguém sabe por quanto tempo. Então o velho sacerdote e ele partiram de volta para a casa paroquial, ambos em silêncio, no entanto, alguma coisa está pairando no ar como uma névoa pesada. 

Quando chegaram, Edmund partiu para as orações noturnas e Glover iniciou sua busca por perdão, começando a arrumar seus poucos pertences e por fim, escrevendo uma carta com toda sua confissão. 

— Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus — murmura, enquanto escreve a carta. 

Ele não sabe se está pronto, todavia algo o impulsiona até a sacristia, lá está  Padre. Dizem que deve rasgar o coração e é isso que está disposto a fazer. Ele se aproxima de Edmund. 

— Padre. — A voz quase não sai. 

— Sim, filho. — O sacerdote se levanta, encarando-o com ternura. 

— O senhor tem tempo para uma confissão? 


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