As Lendas dos Retalhadores de Áries escrita por Haru


Capítulo 3
— O eterno Dia Lilás




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 O eterno Dia Lilás

 Os ponteiros do relógio marcavam seis horas da manhã em ponto quando Kin acordou. Vestindo o mesmo pijama branco de seda com mangas e calças compridas que ganhou aos dez anos, com os cabelos loiros encaracolados espalhados pelo rosto e os olhos semiabertos, levantou-se sonolenta e forrou devidamente a cama de madeira que em seu quarto só não ficava sozinha por causa do armário marrom poucos metros atrás dela. Após guardar seu travesseiro dentro dele, dirigiu-se à porta e deu um tapa na parede rosa de seu quarto para desligar o despertador preso pouco acima da maçaneta. 

Após jogar uma água na cara, escovar os dentes e vestir suas roupas de serviço, desceu as escadas para a sala de estar da casa ajeitando sua camisa branca ao corpo e se deparou com Mari sentada perto de seu sofá. Estranhou de início, mas logo lembrou de que no dia anterior pediu à morena para vir tomar conta de seu irmão porque provavelmente iria ter que deixar o reino numa missão dada pelo Hayate. 

 — Desculpa por ter feito você acordar tão cedo, é que nenhuma das outras babás aceitou vir essa hora... — Se justificou, terminando de fechar o cinto preto de couro às calças cinzas que escolheu para usar naquele dia, a mais confortável para combates e única limpa que encontrou. 

 Mari e o pequeno Haru brincavam sentados no tapete de barbante vermelho em frente ao sofá bege. Ela espalhou os brinquedos do menino pela mesa de madeira preta diante deles e se divertia bagunçando tudo depois de ele arrumar, só para depois vê-lo organizar tudo novamente e poder bagunçar de novo, deixando-o muito enfezado. 

 — Que isso, eu já disse que pode me chamar sempre que precisar de ajuda com ele. — Retrucou, escondendo nas costas o carrinho verde da criança. 

Kin botou o pé na mesa para acabar de ajeitar as sandálias. 

 — "Dizer"? Você praticamente me ameaçou de morte se eu não pedisse sua ajuda! — Se divertia lembrando da cara que Mari fez ao exigir que a ligasse quando quisesse. A morena teve a vida salva várias vezes pela mãe deles e se sentia em débito com ela, por isso estava sempre disponível para os dois. Kin não dizia, mas sabia que era sortuda por tê-la por perto. 

— É, eu faço isso bastante. — Perdeu as contas de quantas vezes ameaçou alguém naquela semana. De repente, lembrou de uma coisa. Olhou para o calendário na parede e removeu da frente da janela a cortina branca amarelada que a tapava inteiramente. O céu estava roxo. — Se cuida, em. 

 O "Dia do Céu Lilás", como era chamado no Reino de Órion, era particularmente perigoso para os seres de essência, pois neste dia seus poderes imprevisivelmente falhavam pelo menos duas vezes. Claro que isso não acontecia com todos, mas ninguém nunca sabia com quem ocorreria e muito menos quando. 

Kin pôs as mãos na cintura e suspirou preocupada. Sempre, nas duas vezes, era vítima disso. Até hoje, por outro lado, isso nunca pôs sua vida em risco. 

— Pode deixar. Vou estar de volta até as vinte horas. — Foi sua previsão. Ouviu de Mari um "não se preocupe com isso", dirigiu-se apressada à porta e saiu. 

Seu ponto de encontro com Hayate e Arashi ficava a poucas quadras de sua casa, então não demorava muito mais do que vinte minutos para chegar lá andando devagar. Reunia-se com eles no meio de uma grande ponte laranja de madeira. Chegou no local marcado e, pela primeira vez, avistou Hayate sozinho. Arashi sempre chegava antes deles dois. 

Andou pacientemente até ele, seu chefe, que distraidamente contemplava a lua. O brilho lilás do céu coloria o rosto dele e as águas cristalinas do rio que passava por baixo da ponte. 

Com apenas atualmente catorze anos Kin liderava a equipe dos Retalhadores de Elite, encabeçada por Hayate, o segundo ministro da Terra de Áries. Ele presidia também o Reino de Órion e não era só chefe dela e de Arashi, mas um amigo pessoal de muito tempo, um irmão mais velho para os dois. Seu terno, camisa branca sem gravata, calça e sapatos sociais pretos eram suas típicas vestes de trabalho. 

Enquanto quem faltava não chegava, os dois dialogavam sobre os riscos daquele dia e compartilhavam estratégias para driblá-los. Kin insistiu muitas vezes para saber pra onde ele os mandaria, mas Hayate bateu o pé e disse que só revelaria quando Arashi aparecesse. 

Mais meia hora passou e nem sinal dele. Kin detestava esperar. Cruzou os braços, foi pra lá, veio pra cá, andou de uma ponta a outra e nada

 Foi então que teve uma ideia. Uma ideia que fez Hayate lembrar que, embora fosse muito forte e inteligente, no fundo ela era uma criança. Tinha só quatorze anos, afinal. 

Ela sugeriu:

— Vamos dar um susto nele! Se esconde, eu vou boiar no rio pra ele pensar que me afoguei, corre!

Mas Arashi, dois anos mais novo que ela, estava sempre um passo a frente, chegou de surpresa e sussurrou:

— Boa ideia! Mas na próxima vê se fala mais baixo pra ele não escutar!

Logo após saltar de susto, Kin gritou: 

— Então você estava por perto esse tempo todo!

— Não o tempo todo, só nos últimos cinco minutos. É que eu tinha que ter certeza de que ninguém seguiu nenhum de nós. — Foi a desculpa que deu. — Eu me atrasei mesmo porque dormi demais hoje, foi mal mesmo. 

— E isso lá é justificativa?! — Ela, que quase dormiu em pé em vários momentos, não gostou de saber disso. Outro grande culpado pelo seu atraso de hoje deve ter sido o tempo que ele perdeu passando as roupas da equipe, a camisa branca de mangas curtas com o logo ariano nas costas e as calças que estava vestindo, pois o próprio admitia que deixava isso para última hora. 

 Hayate sempre achava engraçadas as discussões deles, mas não tinham tempo a perder ali.

— Tudo bem, não faz mal, o importante é que você está aqui. — Interviu. Continuou: — O que eu quero pedir pra vocês hoje é o seguinte. Preciso que se infiltrem no navio dos pesquisadores e os investiguem. Quero saber o que eles realmente descobriram sobre o Dia do Céu Lilás. 

Aquilo fez Arashi recordar-se de algo:

— O senhor também está desconfiado deles. 

— O que quer dizer com "também"? — Hayate o indagou. 

— A senhorita Yume achava que eles estavam escondendo informações sobre isso, mas se distraiu com os assuntos da guerra e esqueceu de pedir a alguém para investigar. — Revelou, surpreendendo-os. 

— Vou dizer a eles que vocês serão seus guarda-costas mas, em segredo, quero que os investiguem. É imprescindível que não sejam descobertos, ou todos teremos problemas. — Afirmou, mais sério do que nunca. 

Kin e Arashi, sem pestanejar, aceitaram seu pedido. Após saber que sua mãe não confiava cem por cento naqueles homens, o interesse de Kin no caso aumentou. A chance de trabalhar nele, de solucioná-lo, a fazia quase sentir como se a tivesse consigo de novo, como se Yume estivesse ali, ao seu lado. Tinha uma nova oportunidade de, de certa forma, lutar ao lado dela. Pela última vez. Por isso, faria o seu melhor.

Quando pensou que sua negligência sobre o assunto ao longo dos anos pode ter causado problemas para o reino, resolver tudo virou algo pessoal para Arashi. Não podia ser que ele, confidente da falecida primeira ministra da Terra de Áries, tivesse esquecido disso. Seu orgulho só se veria restaurado quando sanasse todas as desconfianças do segundo ministro acerca daqueles homens. Estava tão determinado quanto Kin. 

 Hayate em pessoa os levou para o navio, apresentando-os como guarda-costas ao capitão, aos organizadores e aos líderes da expedição. A embarcação era imensa, quase que inteiramente feita de madeira e estava em ótimo estado, parecia nova em folha. Sua bandeira era grande, branca, ficava exposta no centro do deck e ostentava o símbolo clássico da Terra de Áries: o rosto de um grande carneiro negro. 

Seu lado profissional tinha certeza de que fez a escolha certa ao incumbir aquela tarefa aos dois, que não existia outra dupla no reino mais qualificada do que eles para ela. Seu lado pessoal, emocional, nos quais imperavam a amizade e o amor fraterno que nutria por Kin e Arashi, estava arrependido de tê-los mandado pra lá e muito, muito preocupado. Ficou no cais acompanhando a partida do navio e, vários minutos após presenciar o seu sumiço no horizonte, continuou parado no mesmo lugar pensando se fez o certo.

O cientista mais inteligente do navio deixou o porão em que trabalhava para subir ao deck e cumprimentar os novos tripulantes. Seu nome era Fuyuki, ele era um sujeito simples, de pele clara, baixa estatura, perto dos cinquenta anos, de cabelos e barba completamente grisalhos e pança saliente — esta sempre coberta pelo jaleco branco do qual ele não se desfazia. Seus esbugalhados olhos azuis só não eram mais desproporcionais ao restante do rosto do que seu grande e redondo nariz. 

A primeira vista um homenzinho simpático. Kin e Arashi apertaram sua mão, conversaram com ele sobre o Dia do Céu Lilás, ouviram algumas piadas sobre o nome pouco criativo e se despediram, desceram para suas instalações guiados por uma jovem pesquisadora, provavelmente estagiária, pois ela não parecia ter chegado nem aos vinte anos. 

Kin e a estagiária ruiva teriam que passar o dia no mesmo quarto. Do outro lado do corredor ficava o de Arashi que, para o bem da investigação secreta a propósito da qual estava ali, estaria a sós. Logo que chegou bateu a porta. 

Examinou a cama, passou a mão bem de leve sobre o lençol azul claro perfeitamente esticado que a forrava. Analisou o piso, todo feito de madeira, e o teto, composto do mesmo material. Observou algumas fissuras entre as tábuas, através das quais, se não fossem tão finas, poderia ver outros quartos. Se não podia ver, ao menos conseguiria ouvir. Sua audição era muito mais apurada do que a das outras pessoas. 

Deitou a orelha na fissura do chão. Só ouvia passos. Surgiu então o som de uma rolha voando. Uma... garrafa de champanhe, deduziu. Será que estão comemorando alguma coisa? O que será?

 Alguém, sem avisar e sem bater, abriu a porta do quarto em que Arashi estava. O susto o fez se levantar em um só salto. 

— Droga, Kin! — Murmurou, com a mão no peito. Seu coração estava a mil.  

— Desculpa! Eu vim pra te falar das fissuras do piso lá do outro quarto, mas tô vendo que aqui também tem algumas. — Falou, em tom de sussurro, fechando a porta devagar. — Ouviu alguma coisa? 

— Nada suspeito. A estagiária te falou alguma coisa sobre uma festa ou algo do tipo?

— Não. — Kin pensou melhor, tentou puxar na memória para ter certeza mas sua resposta foi a mesma: — Não mesmo. Por quê? 

Arashi se agachou e colocou a orelha no piso de novo.

— Parece que estão comemorando alguma coisa no andar de baixo. — Respondeu a pergunta dela, mas se sentou desanimado na cama. — Isso é ridículo. — Disse. Se deu conta de que naquele ritmo não conseguiriam descobrir nada de relevante. — Precisamos de uma distração, de algo que faça todos irem lá pra cima e os mantenha lá por um tempo. 

É óbvio, exclamou em pensamentos. Estavam em alto mar, a temperatura das águas estava muito abaixo de zero. Tudo do jeito que ele gostava, era praticamente um deus, ali. Era o seu território. 

Kin subiu correndo pro deck quando o moreno pediu. Lá, debruçou-se sobre a borda, ficou alguns segundos quieta observando o movimento do mar, esperou uns minutos e então começou a gritar sobre a "nova espécie" de orcas que estava saltando das águas. Não demorou nem cinco minutos pro deck ficar cheio de curiosos e toda a área inferior do navio se esvaziar.

A suposta nova espécie de orcas era feita de gelo, obra das mãos de Arashi, que atravessava os corredores sem acreditar que haviam conseguido ludibriar tantas pessoas inteligentes numa tacada só. Como não tinha certeza de que todos caíram na distração, prosseguiu devagar e cautelosamente. 

Via dentro das salas através dos vidros postos nas portas. Até o momento todas estavam vazias, portanto foi fácil vasculhar todas. O difícil era achar algo contra os tripulantes, algum papel importante que provasse qualquer coisa; se eles estavam ou não escondendo algo. Chacoalhou mesas, gavetas, procurou atrás de estantes, abaixo delas e não achou nada suspeito.

Foi de quarto em quarto e em dado momento parou, se deu conta de que estava entrando em salas que já havia ido antes, andando em círculos. A única coisa que encontrou, por fim, foi a sensação de que aquilo era uma completa perda de tempo. Esmurrou a parede.

Talvez, assim como Kin, se agarrou à esperança de desmascarar aqueles homens só para poder fazer de conta de que estava trabalhando com Yume de novo. Sentia tanto sua falta. A dor da morte dela foi a mesma de perder a mãe pela segunda vez.

Voltou para o quarto convencido de que havia feito papel de palhaço. Sentou-se na cama como um derrotado. Só aguardou a chegada de Kin para dar a notícia.

De repente a loira abriu a porta empolgada.

— E aí...? Encontrou alguma coisa? 

Arashi melhorou a cara para passar segurança, sabia que Kin havia se envolvido sentimentalmente naquilo muito mais até do que ele, precisava pelo menos servir de suporte para ela. 

— Nada. Desculpa, loira. — Cruzou os braços se fazendo de forte mas quase desmoronou quando viu o entusiasmo desaparecer da face dela. — Sei o quanto isso era importante pra você. 

— Tem certeza? — Ela entrou em negação. No fundo sabia que ele não diria aquilo daquela forma se não tivesse certeza. — Você olhou mesmo em todas as salas? Procurou debaixo de tudo?

— Eu revirei tudo. Se tivesse alguma coisa, eu teria achado. — Afirmou.

Sem saber exatamente porquê, Kin começou a chorar. Arashi não disse nada, não gesticulou: foi em sua direção sem avisar e a abraçou o mais forte que pôde. Naquele instante, ela só precisava daquilo e de mais nada. E vindo dele, especialmente. Porque ele, melhor do que qualquer um, entendia a sua dor. 

Horas mais tarde, por volta do meio-dia, Arashi dormia despreocupadamente em sua cama quando algo aconteceu: o navio sofreu um bombardeamento brutal, um ataque lateral tão violento que o arremessou, da cama, contra a parede, e fez o meio de transporte marítimo guinar bruscamente para a esquerda. As águas do oceano invadiram a embarcação numa velocidade absurda. 

Mas as tentativas de destruí-los não pararam naquele primeiro tiro: mais três bombas de canhão, uma seguida da outra, arrombaram completamente o barco gigante. A nau estava em pedaços. Mesmo misteriosamente sem forças, os dois únicos retalhadores a bordo saíram de seus quartos e se uniram no corredor para ajudar os tripulantes em apuros, mas estranhamente eram os únicos a bordo também. 

Não tiveram nem tempo para suspeitar da situação, a água gelada os atingiu em cheio e atrapalhou seu raciocínio. Tudo estava tremendo. As lâmpadas estouravam. O teto desceu tanto que a qualquer instante os esmagaria se continuassem parados. Eles se entreolharam.

 Mesmo com a altura das águas inibindo seus movimentos, correram até as escadas no fim do corredor, tendo que escalá-las com as mãos. Kin tinha a preferência, Arashi sempre permitia que ela se salvasse primeiro. Era movido pelo medo de perdê-la. 

Eles alcançaram o deck juntos, em seguida engatinharam para a proa — ou para o que restou dela. 

Ao chegar lá, procuraram destroços para se agarrar e manter-se acima do mar mas, devido a demora, não acharam nenhum. Kin tentou invocar suas asas para escapar daquela voando com ele, mas de fato estava sem seus poderes.

Arashi tentou confeccionar asas de gelo nas costas para fazer o que sua parceira pretendia, mas descobriu que também perdeu suas habilidades especiais. O medo tentava dominá-los.

— Vamos ter que nadar! — Ele foi forçado a gritar por causa dos ruídos dos destroços virando e afundando. A proa estava a pouco menos de dois metros da água.

— Nessa temperatura? Sem nossos poderes nós não vamos aguentar! — Ela contra-argumentou. 

— Que escolha temos? Reze para a nossa força voltar a tempo! — Disse, em seguida pulou primeiro para encorajá-la.

Ela o imitou. A medida que se afastavam dos restos do navio seus corpos foram recuperando as forças, então não sofreram nada grave e não ficaram com sequela alguma. Arashi criou com seus poderes uma superfície de gelo sobre a qual deixou Kin pisar primeiro, para em seguida ela o pegar pela mão e voar com ele para bem longe das gélidas águas daquele mar. 

Fora de perigo, tranquila, a dupla de elite começou a recapitular em suas mentes os eventos recentemente passados, precisavam digeri-los antes de dizer um ao outro o que pensavam. Kin ainda estava tremendo. Jamais sentiu tanto a sua mortalidade quanto quando estava na proa e sua única alternativa era encarar aquelas águas. 

Arashi realmente achou que morreria, mas não sentiu medo por si mesmo em minuto algum. Sua prioridade, a cada segundo que passou lá dentro, era salvar Kin. Pela primeira vez em muito tempo experimentou o desespero. Por isso foi o primeiro a se jogar na água e se pôr a nadar: se ela morresse, partiria primeiro e não teria que assistir. O sentimento de culpa e de falha que carregou consigo foi indescritível. A humilhação de ser um covarde.

Foram ridicularizados. Naturalmente, estavam furiosos. Sabiam que nada daquilo tinha acontecido por acaso. Óbvio que não foi coincidência todos os pesquisadores estarem fora quando o navio estava sendo atacado daquela maneira, eles devem ter descoberto pelo que Kin e Arashi estavam ali e armaram aquilo. Tudo estava tão claro que os dois nem precisaram contar a descoberta um ao outro.

— Isso não vai ficar assim! — Bradou a garota, aumentando sua velocidade de voo. Arashi segurou-lhe o pulso com mais força. 

— Só temos que descobrir de onde veio o ataque para achá-los. — Disse o garoto, olhando tudo em volta a procura de uma pista enquanto era carregado. 

Por um lado estavam felizes. Tudo aquilo significava que Yume estava correta ao desconfiar daqueles caras e que de fato ganharam a oportunidade de trabalhar com ela pela última vez. Pegariam os culpados e os jogariam atrás das grades mesmo que em nome disso tivessem que abdicar de suas próprias vidas.

Por sorte os criminosos não estavam tão longe quanto se poderia pensar. Por azar, estavam bem escondidos. Desconfiaram das intenções de Hayate no segundo que ele disse que mandaria novos seguranças para acompanhá-los, tiveram certeza de que o segundo ministro estava armando alguma quando descobriram que ele havia convocado Arashi, conselheiro pessoal de Yume, para exercer essa tarefa. Aí concordaram em mudar de rota.

Contactaram um grupo de aliados para serem resgatados de navio e em seguida destruir a embarcação que deixaram para trás com os dois retalhadores de elite dentro, os quais foram postos para dormir com um poderoso sonífero em gás que foi espalhado para os quartos deles através das fissuras. Para garantir que a dupla não sobrevivesse ao naufrágio, usaram sua grande invenção.

 Por fim, fugiram para uma base submarina instalada seiscentos metros abaixo da superfície. Lá nas profundezas do oceano comemoravam mais um feito: o assassinato dos dois mais poderosos retalhadores da equipe de elite de Órion.

Fuyuki, o responsável por toda a trama, estava sentado sozinho a uma mesa de ferro em frente ao painel criado para indicar alguma ameaça próxima. Até hoje o painel não serviu para nada, pois nenhuma ameaça em potencial sabia algo sobre seu esquema. Até hoje. Era um homem esperto e precavido, achou fácil demais a forma que se livraram de dois tão famosos retalhadores e por isso tinha um plano para o caso de voltarem a vê-los. 

Seus olhos passeavam pelo teclado de ferro conectado ao painel, que agora não passava de uma grande tela verde com algumas linhas pretas. O piso, o teto, as cadeiras, tudo ali era feito de metal — um metal muito mais poderoso do que os comuns, apesar de na sua aparência não diferir em nada deles, sendo opaco e frio. 

 Sua mente estava em um certo momento de seu passado, visitando eventos que explicavam seu ódio aos retalhadores. Há cinquenta anos morava em um pequeno vilarejo escondido dos olhos da mídia, um lugarzinho humilde mas pacato.

Claro que lá não era perfeito, mas a coisa foi do "até que é bom" ao péssimo quando uma equipe de seres de essência fincou a bandeira no local e decidiu explorar seus residentes. A criminalidade acabou em menos de uma semana, mas a tirania só estava começando. Viu os seus trabalharem e apanharem até a morte sem poder fazer nada, afinal o inimigo era muito superior. Nenhuma arma feita por mãos humanas podia feri-los. Antes dele. 

Foi literalmente o criador do "Dia do Céu Lilás", o que aconteceu foi que certa feita disparou contra a atmosfera um tiro de sua nova arma, o único problema foi que ele só abrangeu o Reino de Órion. Desde então ficou mais ambicioso, começou a trabalhar em algo que atingisse o planeta inteiro. Enfim conseguiu, estava decidido a reinar sobre os retalhadores e não permitiria que ninguém ficasse em seu caminho. 

— Ei, Fuyuki — Um rapaz alto, loiro e na casa dos trinta anos chamava por ele. Ergueu a taça e continuou a tentar atrair sua atenção: — Venha comemorar com a gente!

Fuyuki continuou imerso em seus próprios pensamentos e preocupações. O sujeito o chamou mais três vezes, na quarta Fuyuki lhe deu atenção mas não do jeito que ele queria:

— Cale essa boca e vá tomar a merda da sua bebida, Iori! Não vê que eu estou ocupado?!

— Com o quê? — Iori não o levou à mal, deu um sorriso e se aproximou. — Matamos aqueles dois! Não tem como terem sobrevivido, estavam sem poderes. Se não foram esmagados pelos tiros de canhão, morreram de hipotermia!

 — Mesmo que esteja certo, o que diremos ao Hayate, hã?! Para mandá-los conosco é porque ele já desconfiava de nós, acha que ele vai acreditar que dois de seus maiores guerreiros morreram em combate? Quem conseguiria matar um retalhador de elite?! Pior ainda: dois!

— Está esquecendo que não teremos que lidar com Hayate. Hoje, graças a você, o reinado dos seres de essência acaba! — Contra-argumentou Iori.

Fuyuki se calou. É bom que você tenha razão. 

 Kin e Arashi localizaram o navio que os pesquisadores usaram para bombardeá-los, nocautearam rapidamente os piratas que ainda estavam nele e deixaram apenas o capitão consciente, para interrogá-lo. Com uma só mão loira o ergueu pelo colarinho e o pendurou para fora da nau, o tempo inteiro ameaçando soltá-lo no mar se ele não abrisse o bico. 

Mas não estava funcionando.

— Põe ele pra dentro. — Arashi pediu, com uma ideia em mente. Kin o obedeceu, jogou grosseiramente o homem sentado no chão. Arashi calmamente caminhou até ele e tocou o seu peito com a ponta do dedo indicador. — Tem trinta segundos pra nos dar a localização deles ou morrerá congelado. 

Camadas de gelo brotaram nos dedos dos pés do vagabundo, em seguida alcançaram seu calcanhar. Ele, um homem com por volta de cinquenta anos, longa barba negra e cheio de agasalhos, estava ficando aterrorizado, mas se manteve sem dar um pio. 

O gelo petrificou suas pernas e dali foi para a sua cintura em segundos. Kin e Arashi nada faziam, apenas o encaravam e se divertiam com sua tentativa de esconder o medo, que transparecia em seu olhar. O infeliz já não respirava com a mesma facilidade de antes, esqueceu-se que estava na frente de crianças e começou a chorar. 

Patético, Kin revirou os olhos e cruzou os braços. 

— Tudo bem! Tudo bem! — Exclamou, quando o gelo pegou seus dois braços. — Digo o que quiserem saber, mas me ajude! 

— Sábia escolha. — Arashi o parabenizou e, com um movimento de rosto, fez despencar do corpo dele todas as camadas de gelo que o castigavam. 

Depois disso fazê-lo parar de falar é que foi um desafio. Ele contou sobre a fundação submarina, o ano da instalação dela, deu sua localização e revelou tudo o que sabia sobre os objetivos de Fuyuki, acrescentando também que ele era um homem assustador cheio de traumas com Seres de Essência. Kin e Arashi olhavam um para o outro o relato inteiro. 

Estavam sérios, ouviam-no atentamente de braços cruzados e cenho franzido. Memorizavam cada palavra. Tinham medo da quantidade de avanços que aqueles homens haviam conquistado, de quantos deles existiam pelo mundo e de ser tarde demais para detê-los.

O garoto se culpava pela negligência acerca do assunto, a menina achava que decepcionaria a mãe se não conseguisse pará-los. A tensão era tanta que por alguns segundos após ele acabar de falar os dois ficaram paralisados. Nem Arashi sabia qual era a melhor decisão a ser tomada. A segurança do mundo estava em suas mãos.

As multidões de vidas que dependiam de seu próximo passo os visitaram nos pensamentos. Se perguntavam o que Yume faria em seu lugar.

— É muita pressão para dois pirralhos, não é? São poderosos, temidos e tal, mas há algo que falta em vocês, uma coisa que só os adultos têm. — Agora era a sua vez de se deliciar com o medo que captou nos olhos da dupla. Sorriu, sentou-se e os provocou: — O que vai fazer, Arashi Suzume?! 

— Vai me ver te colocar pra dormir! — Exclamou Kin, o nocauteando com um rápido jab na testa. Após isso olhou para o lado e viu uma versão de seu amigo que nunca tinha visto: uma que definitivamente não sabia o que fazer, que hesitava mover um mísero dedo. — Arashi? 

— Oi? Oi, desculpa... — Ele parecia acordar de um sonho.

— Vamos nessa! — O chamou, correu pelo convés, pulou a borda do navio e alçou voo. 

Ele fez um par de asas de gelo brotarem das costas e a seguiu. 

A primeira atitude de Kin ao rastrear o esconderijo dos pesquisadores foi esmurrá-lo para fazê-lo tombar para a esquerda. Vingança. Todos lá dentro caíram e voaram contra as paredes.

Arashi nadou para baixo do submarino, voltou para a superfície com ele nas mãos, o arremessou na pista de gelo que criou com seus poderes antes de descer e sem realizar muito esforço montou nela. 

— Saia, Fuyuki! — Gritou o garoto, indo a cuidadosos passos na direção da base deles. — Mostre-nos o que vocês podem fazer!

A demora estava estressando Kin.

— Eu vou fazê-los sair! — Ela enfim se sugeriu.

Arashi anteviu que aquilo não acabaria bem. 

— Não, Kin! CUIDADO! — Gritou, o mais alto que seus pulmões permitiram. Totalmente em vão.

Kin displicentemente arrancou a portinhola do lugar, levou um tiro no peito e caiu na hora. Arashi correu para tentar socorrê-la, mas ficou de mãos atadas quando Fuyuki apontou uma arma para ela. 

— Fica paradinho aí, retalhador de elite. — Disse Iori, descendo após Fuyuki. 

— O tiro que demos não foi pra matar, mas para deixá-la sem forças. Ela ainda está viva e assim vai permanecer, se você cooperar. — Fuyuki ameaçou.

Arashi só acreditou nele quando viu Kin se mover. Então, o indagou:

— O que você quer? É só dizer que eu faço, mas não a machuque. 

A distância que os separava era de quase duzentos metros, por isso tinham que gritar para se fazerem ouvir. Fuyuki mirou nele com sua arma especial e falou:

— Quero que fique paradinho. 

O disparo foi efetuado, parecendo acertar o garoto bem no coração. 

— NÃO! — Bramiu Kin, logo que ele caiu.

Iori apontou um revólver para a testa dela. Caída e sem poderes, aparentemente estava frente a frente com um beco sem saída, mas Kin mostrou que, como guerreira, não se definia unicamente por suas habilidades sobre-humanas: chutou a mão dele, o desarmou e se reergueu num piscar de olhos. 

Fuyuki a atacou pelas costas, ela o tirou de combate com um chute no meio da cara e montou guarda para Iori.

— Vai ser um prazer dar uma surra numa retalhadora de elite. — Iori retirou o jaleco e se preparou, sorridente. Deu início à batalha com um chute alto, Kin desviou ele com a mão, agachou-se para escapar do seguinte, o golpeou no rosto com um cruzado de esquerda, um de direita e um direto de direita. 

 Iori recuou e levou a mão ao nariz. Estava sangrando. Não vou perder pra uma criança, pensou enfurecido e voltou a atacá-la. Nenhum de seus socos, por mais ágeis que fossem, atingiram Kin. Ela esquivava-se de todos com impressionante maestria, era como se nunca tivesse perdido seus poderes e reflexos sobrenaturais. 

Mas os perdeu, e isso se refletiu no escorregão que deu ao tentar regredir um passo. Iori não perdoou sua falha e a socou no rosto. Kin não caiu, mas ganhou um corte ensanguentado no canto da boca. No entanto, isso a motivou a investir com mais força: ela passou a atacar mais do que esquivar. A cada dez socos que Kin desferia, três acertavam Iori na face e no peito.

Ele claramente não aguentava mais, mas se recusava a ser derrotado por uma garotinha e permanecia de pé, tentando atingi-la. Estava mais lento e ia ficando mais devagar conforme se movimentava. Sua inimiga não tinha mais trabalho nenhum para esquivar-se de suas técnicas. Seu último chute consumiu o pouco de força que restava nele, mas Kin se defendeu dele com o braço e finalizou o conflito com um cruzado de direita. 

Iori foi à lona. 

Kin quis saber porque Arashi continuava caído e correu para acudi-lo. Ele desmaiou. A carga que o Fuyuki disparou nele deve ter sido maior que a que usou em mim, pensou, apoiando a cabeça dele em seu colo. Estava pronta para contactar Hayate e pedir resgate quando os outros pesquisadores saíram do submarino, um a um, armados até os dentes. Não surgiram enquanto ela lutava com Iori porque estavam se armando. 

Todos apontaram seus fuzis para os dois retalhadores de elite. Kin gentilmente deixou Arashi onde ele estava e tomou a frente, serviria de escudo humano. Eles impiedosamente descarregaram o pente em cima da dupla, mas nem uma única bala os atingiu: uma barreira de gelo conteve todas elas sem sequer rachar.

Arashi, de joelhos, a controlava. Não perdeu seus poderes porque não foi atingido pelo tiro de Fuyuki, ergueu uma defesa de gelo minúscula na frente da bala e fingiu que foi acertado para agir no momento propício.

Vinte minutos de incessantes disparos depois, sobreveio o silêncio. Da barreira começou a brotar correntes que voaram até os pesquisadores e os enlaçaram, por mais que eles tentassem fugir não eram páreos para a velocidade delas. O garoto ficou de pé e anunciou:

— Acabou. Vocês perderam.

— Tem razão, Arashi, acabou. — Fuyuki, único não pego pelas correntes, vagarosamente se reerguia com uma arma diferente nas mãos. Ele a apontou para o alto e vociferou: — Mas vocês perderam!

Ia disparar quando Kin o agarrou e se jogou no mar com ele. 

— KIN! — Arashi a gritou, agoniado. 

Saltou no mar sem pensar duas vezes. Perscrutou o oceano em busca dela com a mente totalmente vazia, só seu coração o guiava. Não faça isso comigo, pensava, procurando-a apavorado por toda a parte. Você é tudo o que eu tenho, afirmava para si mesmo, nadando entre as algas. Continuou indo em frente. 

O primeiro que encontrou foi Fuyuki, o resgatou com uma das correntes que invocou da pista de gelo na superfície. Ela deve estar por aqui, deduziu. A avistou e, tão rápido quanto um tubarão, a alcançou. Em seguida, na mesma velocidade, tentou nadar para a superfície. Graças ao Dia do Céu Lilás, no entanto, suas habilidades falharam no meio do caminho.

Droga, maldizia aquela tarde, justo agora? Sério? Sentia-se como que preso num caixão de gelo, como se mil agulhas o perfurassem por inteiro. Olhou para Kin. Desculpa, loira. Eu falhei com você de novo, se lamentava, pronto para entregar-se a morte. Ao menos os detivemos, saber disso o consolava. 

No segundo que ele desmaiou, a força de Kin retornou. Ela abriu os olhos, o encarou e, quando entendeu o que havia acontecido, percorreu todo o caminho restante até a superfície com ele no ombro, movendo-se muito mais ágil do que o mais veloz dos seres subaquáticos. 

 Arashi despertou aquecido, revigorado, confortável com o rosto nos braços de Kin, que repousava em pose de pernas de chinês. Ela lhe mostrou um belíssimo e alegre sorriso, acompanhado, é claro, de uma lágrima de emoção.

— Vencemos! — Celebrou, animada. 

Ele sorriu como não fazia há anos e entoou:

— Vencemos. 

Anoiteceu e eles só se deram conta disso agora. Ao ser contactado, Hayate os parabenizou pelo sucesso na missão, disse não estar surpreso com o resultado e avisou que estava a caminho.

Kin enxugou as lágrimas e voltou os olhos para as estrelas. Adeus, mãe. Obrigada por tudo.

...


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