Sunflower escrita por Scamander


Capítulo 2
Capítulo II




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Maya estava procurando qualquer coisa em sua mochila quando tropeçou em alguém na porta de casa.

A situação foi tão inesperada que ela demorou cinco segundos para perceber que sequer tinha tropeçado, e precisou no último minuto colocar a mão em frente ao rosto para evitar uma queda pior. Ela sentiu o pulso virar para o lado, e a cabeça pesar, mas quando endireitou seu eixo novamente, sentando-se em seus joelhos, a figura de Samuel Castro meio-sentado, meio tentando levantar para ajudá-la na frente de sua porta fez com que ela se esquecesse completamente da dor ou de uma possível fratura.

Ela piscou. Ele perguntou, “Você está bem?”, ainda sem saber se levantava agora que ela já tinha encontrado seu lugar no chão, ou se voltava a sua posição reclinado contra a porta.

No fim, ficaram os dois de joelhos no corredor do dormitório de Maya. Ela tinha certeza que alguém dentro de sua cabeça estava se esforçando bastante para processar toda a situação, porque até agora ela só conseguia piscar.

“Hum, oi.” Samuel Castro falou, entortando milimetricamente a cabeça para o lado mais afiado de seu maxilar (embora a diferença também fosse milimétrica e Maya tivesse percebido apenas depois de semanas encarando suas fotos).

A mini-eu em sua cabeça pareceu ter sucesso, porque na próxima vez em que piscou, ela desviou os olhos da ponta afiada do maxilar de Samuel, e formou as palavras. “Que porra você tá fazendo aqui?”

Soou mais rude do que ela pretendia. Maya tinha uma mania de xingar quando ficava nervosa.

Samuel foi quem piscou dessa vez, visivelmente surpreso. “Eu. Hm. Eu tô aqui pra estudar? Primeiro sábado da volta as aulas? A gente combinou?”

Maya sentiu instintivamente uma vontade gigante de encaixar a palma de sua mão no próprio rosto, forte. Conteve-se, porém, esperando que sua surpresa tivesse passado despercebida pelo garoto.

“Você não lembrava, não é?” Ele deu um sorriso de canto.

Maya encolheu os ombros.

Não, ela não lembrava. Na verdade, ela havia planejado todo o seu dia porque não tinha lembrado disso—ela estava fora há mais de 12 horas, tendo até passado no dormitório da menina do campus sul, aquela que cobrava o que você tivesse no bolso para cortar seu cabelo ou fazer qualquer outra coisa que não envolvesse água oxigenada.

Maya suspirou. Ela ainda não sabia o que sentia em relação ao novo corte de cabelo, porque embora não mexesse com descoloração, a menina do campus sul tinha um arsenal abastecido de tintas, e Maya decidira que sempre quis ficar ruiva. O tom não era necessariamente vermelho e ela sentia que a garota passara mais água que qualquer coisa em seu cabelo, mas ele estava um pouco mais puxado para o acaju, sim, se você afiasse os olhos.

“Eu—eu sinto muito, mesmo.” Começou, escapando de sua própria cabeça antes que sua outra-eu, uma que não estava ocupada com nada como processar situações estranhas, iniciasse seu monólogo sobre como ela avisara sobre essa nova mudança de cabelo.

Percebendo finalmente a situação deles, Maya levantou-se num sobressalto. “Jesus, há quanto tempo você está esperando? Mil desculpas mesmo. Sério. Eu—eu tenho um hábito de não marcar coisas para muito tempo depois, porque eu sei que eu sempre esqueço, e—tipo, eu sei que não é desculpa, mas é como eu sou, e—“ ela ia se cortando, embaraçada, “ai, enfim, me desculpa?”

Samuel levantou-se lentamente, fazendo questão de tirar qualquer que fosse a sujeira de suas calças (ela limpava a frente de seu apartamento muito bem, obrigada), deixando com que ela olhasse para ele por um tempo com cara de cachorro abandonado. Ou esquecido. Por fim, ele deu um sorriso simples.

Era o mais tranquilo que ela o vira até aquele momento, com todas as caras e bocas que ele já havia postado no Instagram, e isso fez com que Maya relaxasse um pouco.

“Sem problema.” Ele disse.

Maya aproveitou para olhar como ele estava naquele dia—afinal, ela não o via desde o ano passado. Os cabelos haviam crescido, não mais aquele corte militar, mas uns pontinhos afiados rentes ao couro cabeludo. O moletom que ele usava era azul escuro, e a única cor que tinha no corpo. O resto—calça, botas, mochila—estavam no clássico preto.

“Hum, podemos entrar?”

Maya piscou. Ele queria entrar?

Sim, porque ele estava em sua casa.

Esperando ela há não sei quanto tempo, em sua porta.

Samuel Castro, em frente à sua porta.

“Como você sabia que eu morava aqui, mesmo?” Ela realmente não lembrava de ter dito isso a ele em qualquer momento de sua breve conversa, no corredor da sala do Sr. Jenkins.

“Ah, eu—“ essa foi a primeira vez que Maya viu Samuel Castro visivelmente desconfortável. Mesmo sem a Jersey com seu nome estampado atrás, Samuel ainda emitia um ar de confiança, carregando a si mesmo como se soubesse de sua importância no mundo. Agora, no entanto, ele parecia até ter encolhido os ombros, diminuindo seus 1,87 minimamente. “Eu perguntei pelo campus.”

Maya olhou-o curiosa, mas preferiu aceitar a resposta. Se fosse perguntar, eles demorariam lá por algum tempo, e ela nem perguntara como ele havia entrado no prédio.

Toda aquela situação era estranha demais para sua cabeça tingida processar, principalmente com o cheiro de tinta tão fresco em suas narinas. E, ugh, ela odiava cheiro de tinta de cabelo.

Fugindo novamente da própria cabeça, ela adiantou-se para pegar sua bolsa, esparramada no chão por sua queda, contornando o garoto a sua frente e entrando pela porta de seu dormitório. Por um momento, não soube se deveria convidá-lo a entrar ou fazer qualquer cena, e houve uns 3 segundos embaraçosos em que ficou parada, de costas para ele, na soleira de sua porta, mas por fim preferiu continuar andando, sentindo a presença de Samuel atrás de si.

Sua casa era muito mais dormitório universitário do que casa, mas depois de quase dois anos morando nela, ela havia conseguido fazer com que se parecesse mais aconchegante. Miranda, sua colega de quarto, havia definitivamente ajudado, jogando tapetes pelo chão e espalhando plantas que pendiam do teto, mas Maya gostava de dizer que se não fosse por ela, elas não teriam conseguido o sofá amarelo que ficava encostado num canto da sala, e a geladeira verde-vômito (Miranda chamava assim) que ela havia conseguido por um preço bacana em uma venda de beira de estrada, enquanto voltava de suas primeiras férias da universidade na casa de seus pais.

No todo, seu dormitório era uma coleção de cores e peças coletadas ao longo do caminho, mas tudo deixava o espaço apertado que elas tinham com cara de um lar. Claro, não havia divisões entre os cômodos (quarto, cozinha, sala), e se elas quisessem comer confortavelmente, precisavam empurrar as camas mais para o canto, mas elas faziam funcionar.

Também não era o local mais confortável do mundo para estudar, mas Samuel já estava ali, e começava a colocar uma pilha arriscada de livros em cima da mesinha de vidro que elas usavam para comer, mas Maya preferiu não dizer nada. Empurrando sua cama mais para o canto do quarto, a primeira coisa que fez quando sentou em frente a ele foi balancear o peso dos livros, sem dizer muito mais.

“Você quer alguma coisa? Água?” Perguntou, apenas por educação, porque já havia sentado e cruzado as pernas em cima de sua cadeira, ficando mais confortável.

Samuel balançou a cabeça. “Só quero entender que infernos quer dizer materialismo dialético, e todo o resto que Sr. Jenkins vem tentando ensinar há três meses,” murmurou.

Maya riu, mas com essa risada e o que ele dissera, finalmente percebeu o que estavam fazendo ali.

Kaleb do segundo ano, por favor, fale agora com Sr. Jenkins e salve-a desse pesadelo.

Ela sentiu o terror chegando, mas controlou-se. Respirando fundo e tentando controlar o pânico iminente, ela pensou, você consegue.

*

A aula foi um desastre do começo ao fim.

Maya estava nervosa demais para conseguir olhar Samuel no olho, e passou metade do tempo falando sem parar, numa voz muito mais rápida que o normal, tudo o que tinha nos livros que Samuel trouxera. Ela basicamente lera os textos para ele, e a pior parte é que ela sabia que ele já o havia feito, tendo notado que a maior parte deles estavam destacados com marcador de texto verde. Ela sabia que o que estava fazendo não estava funcionando, mas também não sabia o que fazer de diferente.

Nos primeiros quinze minutos, Samuel já tinha deixado de prestar atenção, e nas vezes em que ela levantava o olho, apenas porque seu pescoço começava a doer da posição inclinada para baixo, ela o via olhando para qualquer lugar, menos para ela. Ela jurava que em um momento ele chegou a acompanhar o percurso de uma mosca com os olhos.

No final da aula, o estômago de Maya ardia e seu rosto queimava em vergonha. Ela sentia-se o rosto do fracasso, e a sensação só piorava porque era Samuel Castro que estava testemunhando seu desastre como tutora.

Suspirando, ela fechou o último dos livros, sentindo a língua grudar no céu da boca, seca.

“Bom,” Samuel começou, endireitando-se de sua posição inclinada na cadeira. “Eu posso dizer que nunca vi ninguém sintetizar tantos livros em um tempo tão pequeno.”

Maya ergueu os olhos. Quando olhou para ele, tinha um sorriso divertido em seus lábios, mas esse mais parecia um sorriso de piedade que qualquer coisa para ela. Ele sabia que ela estava envergonhada, e isso era pior ainda.

Maya forçou uma risada.

“Estou com sede. Quer alguma coisa?” Disse, já se levantando.

Samuel balançou a cabeça. “Tô bem, obrigada.”

Maya provavelmente poderia ganhar um prêmio por ter sido a pessoa que encheu mais lentamente um copo de água na vida, e em seguida bebeu-o, tão lentamente quanto.

Ela ouviu Samuel bocejando, mas não percebeu que ele havia se levantado e estava agora encostado na geladeira verde-vômito, mais próximo dela do que socialmente aceitável.

“Você pintou o cabelo?” Ele perguntou.

“Eu—“ Maya aproveitou sua pausa para dar alguns passos para trás. Na distância em que estava, seu olhar ia diretamente para o pomo de adão do garoto, perigosamente perto de seu maxilar. Ela tinha medo daquele maxilar, aqueles 90 graus eram tão afiados que podiam machucar alguém, ela tinha certeza. “Sim, pintei.”

“Ficou legal em você.” Ele foi rápido em responder.

Maya assentiu, e olhou para o lado, não sabendo como agir.

Samuel acompanhou seu olhar, colocando as mãos no bolso do moletom. “Eu sei que disse que não queria nada, mas vi o horário e tenho que trabalhar daqui há meia hora. Meu trabalho é bem perto daqui—não vale a pena voltar para casa e comer antes. Você tem alguma coisa rápida, se não for incomodar?” Ele concluiu a pergunta com um sorriso de canto.

Tendo voltado a olhar para ele, Maya foi rápida em desviar os olhos novamente. Esse sorriso de canto era território perigoso. Ela sentia-se mais idiota ainda olhando para ele, com a sensação de que não havia mudado nem um pouco de quem era há um ano e meio atrás.

Mas Maya balançou a cabeça. Ela era bem diferente da Maya de um ano e meio atrás. Elas estavam separadas por muitos cabelos diferentes, e particularmente, a Maya de um ano e meio atrás estava com uma estranha obsessão por qualquer-coisa envolvendo listras que não combinava nem um pouco com a Maya de agora.

Saindo de sua cabeça pela milésima vez, ela assentiu para Samuel, respondendo, “Não é problema nenhum,” enquanto abria gavetas procurando por alguma coisa que pudesse oferecer a ele.

“Tem cup noodles?” Ela falou, mais perguntando se ele gostaria, segurando o pote de macarrão instantâneo em uma mão enquanto olhava para Samuel, dando seu próprio sorriso de canto.

Ele acenou com a cabeça. “Sim, por favor.”

Maya foi rápida em pegar uma panela, ligar o forno, e colocar o conteúdo do pote dentro.

“Isso não devia ser colocado no micro-ondas?”

Maya riu. “Deveria, mas eu tenho uma colega de quarto que morre de medo de ter um micro-ondas em casa e ele explodir a noite. Ela não prega a olho, sério.” Dizia Maya, enquanto transitava pela cozinha para procurar alguma coisa para ela comer, afinal, passara 12 horas fora de casa, e seu almoço consistira em metade de um hambúrguer, porque estava em promoção na lanchonete local.

“Ah, bom,” Samuel riu. “Acho que é um medo válido, agora que parei para pensar.”

Maya riu. “Se você parar para pensar, não vai querer nem ter um teto em cima da sua cabeça, com medo de ele cair,” era essa a resposta clássica que sempre dava a Miranda, quando ela vinha com mais uma de suas paranoias. O micro-ondas foi fácil de se desfazer, porque elas são universitárias e qualquer custo a menos é um suspiro a mais nas contas de final de mês, mas se livrar de uma geladeira é algo que ela não está disposta a fazer, não.

“Você tá certa.” Samuel disse, indo checar o fogão.

“Ah, obrigada. É melhor você olhar mesmo, eu tenho uma péssima fama de queimar qualquer coisa no fogo.” Disse ela, enquanto pegava uma fatia de pão de um dos armários superiores e caçava algo para pôr em cima.

“Eu também não sou de me orgulhar das minhas habilidades na cozinha,” Samuel brincou. “Mas nunca tive muito estresse com macarrão instantâneo, tendo um micro-ondas e tudo mais.”

Maya riu, revirando os olhos. “Não me tente, daqui a pouco serei obrigada a comprar um e fazer pobre Miranda dormir de olhos abertos.” Disse, enquanto cheirava um pote de geleia que achara na geladeira. Parecia comestível.

Por fim, os dois sentaram na mesa, ela com seu pão com geleia, e ele com o macarrão instantâneo, tendo voltado para seu pote porque ele insistiu que ela não precisava de mais pratos para lavar, e ele não teria tempo de ficar e fazê-lo.

Terminando seu prato antes dele, Maya sentiu-se na obrigação de dizer, muito porque não tinha outro assunto, e esse tópico ainda fazia suas entranhas queimarem em vergonha: “Olha, como você pode perceber,” ela suspirou, “eu não sou a melhor professora do mundo.”

Samuel olhou para ela, ainda comendo seu cup noodles.

“Eu queria te pedir desculpas. Realmente não sou a melhor pessoa explicando matérias, e acho que se você falar com Sr. Jenkins, quem sabe, ele consiga encontrar outra pessoa—“

Samuel balançou a cabeça, engolindo a comida para poder falar: “Maya,” e ela sentiu-se um pouco fora do eixo, ouvindo-o chama-la pelo nome. “Não tem problema nenhum, sabe. Você não é a pior professora que eu já tive de longe. O problema está muito mais em mim do que em você, sério. Eu não tenho muito interesse em economia, na verdade. Sendo bem sincero, essa era uma matéria do meu antigo curso, e eu já havia me inscrito nela antes de decidir trocar. Mas a Universidade sugeriu que eu fizesse, até porque ela faz parte de uma das optativas do meu novo curso, e é uma burocracia muito grande para conseguir sair de uma matéria e conseguir outra com disponibilidade de vaga em pleno semestre.”

“Ah,” Maya soltou, sem saber muito o que dizer.

Samuel riu, aproveitando a pausa para enfiar mais uma quantidade absurdamente grande de macarrão na boca e engoli-la num espaço de tempo mais absurdo ainda.

“Se nós dois formos sortudos, no final desse semestre eu posso até conseguir convencê-los a sair de TE, e você ainda ganha seus créditos extras.” Ele sorriu, mas esse parecia muito mais um desejo pessoal dele do que uma certeza. Ou uma possibilidade.

Como Samuel havia dito, existia muita burocracia envolvida.

Quando se despediram, Maya ainda estava pensando no assunto. Durante o resto do dia, ela continuou com isso na cabeça. E por fim, pela manhã, depois de um sonho em que Kaleb do segundo ano e Samuel Castro eram ambos zumbis que perseguiam ela, repetindo frases como “você falhou conosco” e “vamos comer seu cérebro para passar de ano”, Maya tinha uma nova resolução em mente.

De alguma forma, com algum método que ainda não tinha ciência sobre, ela iria ajudar Samuel Castro a passar em Teoria Econômica.

Antes, no entanto, ela precisou passar na emergência do campus, tendo aparentemente fraturado o pulso e esquecido disso enquanto bancava a tutora.


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