CRY BABY - The Storyfic escrita por puremelodrama


Capítulo 14
Capítulo extra - McGee's Dreamland


Notas iniciais do capítulo

agradeço de coração a todos pelo apoio, seja em forma de comentário, de favorito ou de simplesmente leitura. se você chegou até aqui agradeço por ter gostado da história, mesmo com todas as falhas e possíveis incoerências. minha intenção com a escrita não é escrever algo profissional, mas escrever por amor. obrigada, meus amores ♥



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 Baldwin, Nova Iorque

 1866

 

 Entre as cercanias de Nova Iorque nos anos 1860 não havia muito o que fazer se não contentar-se com a aparência cinzenta e o cheiro de tensão e morte que a cidade carregava. A Guerra Civil Americana fora responsável por devastar não só boa parte das vidas, como também as esperanças dos cidadãos, além de abalar completamente a estrutura econômica da cidade.

 Era outubro quando Amelie McGee decidiu que seu corpo finalmente estava apto a se levantar da cama e sair um pouco de sua casa. Casa. Essa palavra sempre a deixava abatida. Afinal, seu conceito de “casa” se resumia a uma estrutura erguida de tijolos e telhas, e nada mais.

 O pai de Amelie fora diretamente afetado pelos conflitos que a guerra proporcionara, acabara perdendo seu emprego. Fato que ele mesmo utilizava como passe livre para reclamar de absolutamente tudo e todos por vinte e quatro horas por dia.

 Sua mãe? Bem, continuava vivendo luxuosamente, como sempre havia vivido, gastando o dinheiro que não tinha em tudo o que lhe convinha, sendo responsável por grande parte da ira de seu marido.

 E havia ela própria, Amelie, que aos dezesseis anos, sentia-se como se tivesse vivido mil. Sua rotina se dividia em duas monótonas etapas: estudar durante o dia enquanto a noite era reservada aos doces comentários do pai a respeito de sua pessoa. Imprestável. Nós estamos falidos! Vai esperar que os peitos caiam para arranjar um marido rico? Amelie, na esperança de manter intacta a sanidade que ainda lhe restava, não lhe dava atenção.

 No entanto, havia mais uma pessoa. A única pessoa que valia a pena. Alguém por quem Amelie ainda via sentido em estar viva. Essa pessoa era seu irmão mais novo. Amelie amava aquela pequena criaturinha mais do qualquer outra coisa no mundo, a ponto de fazer qualquer coisa para protegê-lo. A garota sonhava em um dia fugir das garras de seu pai, apenas para que pudesse levar consigo seu irmãozinho para um lugar bem longe, um lugar onde nenhum dos dois tivesse que sofrer mais.

 Caminhando pelas calçadas de pedra rachada, Amelie pôde avistar a pessoa que pretendia encontrar naquela tarde. Pether Brandon. Ou como o seu pai diria, cachorro miserável, embora também pudesse ser conhecido como seu namorado. Será? Romance não era um dos pontos fortes de Pether. Dessa forma, Amelie sempre se permitia desconfiar quando o garoto tomava a iniciativa de marcar encontros daquele tipo.

 Pether abriu um sorriso ao vê-la, e então a tomou num abraço apertado. Amelie, sem gostar realmente, abraçou-o de volta.

 — Já faz muito tempo que não a vejo — Pether depositou um beijo curto nos lábios de Amelie. — Se não sair de casa não poderei ver sua carinha linda.

 Amelie deu um sorriso amarelo. Não é que não gostasse realmente do rapaz. O garoto era até interessante, mas um tanto peculiar. Embora saíssem juntos e agissem como um casal aparentemente normal, qualquer um que tivesse uma boa habilidade para observar notaria que o rapaz parecia encarar aqueles momentos como um trabalho o qual a recompensa não valia a pena o esforço. Amelie já cogitara inúmeras possibilidades que explicassem o motivo de sua relação com Brandon existir. Talvez Amelie fosse a consequência de uma aposta ou algo do tipo. Talvez o garoto quisesse uma fachada para esconder suas possíveis preferências amorosas masculinas. No entanto, Amelie preferia acreditar que essa não fosse realmente a sua índole.

 Brandon sempre fora um garoto extremamente obediente e preocupado. Talvez ele apenas quisesse evitar ser mal visto na sociedade, já que no auge de seus vinte e dois anos a família inteira já esperava que estivesse exercendo a função de pai para o primeiro de seus futuros muitos filhos.

 Mas e quanto à garota? Amelie e Pether namoravam há quase dois anos. Quais seriam as suas razões para ter se colocado naquela situação? Também já havia considerado inúmeras hipóteses para esta pergunta. Teria a presença e o amor de um homem em sua vida poder suficiente para lhe oferecer todo o conforto que nunca encontrara em seu círculo familiar? Amelie descobrira que não.

 Pether desfez o abraço e tirou algo do bolso. Uma pequena caixinha de presente envolvida por um laço azul.

 — É um presente, para você — Pether entregou a caixinha para Amelie e escondeu as mãos nos bolsos da calça, aguardando a sua reação.

 Amelie desfez o laço e abriu a caixinha. Não pôde deixar de conter o seu espanto diante do objeto que repousava ali dentro. Era um bracelete dourado, decorado com pingentes de diferentes formatos: uma lua, um olho, uma chave...

 — Meu Deus... Isso é ouro de verdade? Deve ter custado uma fortuna! — disse Amelie, impressionada. — Obrigada, é lindo, mas não precisava...

 Pether riu.

 — Cada um destes oito pingentes é de um lugar diferente que fui à minha recente viagem para a Europa. Mandei fazê-lo especialmente para você. Você merece o melhor — Pether retirou o bracelete da caixinha e o colocou no pulso da namorada. — considere também como um presente de dois anos de namoro. Estou ansioso para ver o que vou receber.

 Jesus... Amelie revirou discretamente os olhos.

 — É... Está bem — respondeu. — Obrigada mesmo pelo presente, mas eu tenho que voltar para casa, está tarde.

 Amelie ia dando meia volta quando Pether a puxou pelo braço.

 — Mas já? Não podemos nem andar um pouco?

 Amelie fitou os olhos castanhos do garoto. Havia algo neles que não parecia condizer com o que saíra de sua boca. Você sabe que não quer mesmo isso.

 — Meu pai vai se zangar se eu voltar mais tarde do que isso — disse Amelie, não só para seu alívio, mas também para o do garoto.

 — Tudo bem... Mas nos vemos amanhã, certo?

 — É, claro — Amelie se soltou e seguiu o caminho de volta.

 O estrondoso som da porta batendo quando Amelie entrou na casa não passou despercebido pelos ouvidos de Theo McGee.

 — Se bater a porta de novo vou terminar de quebrá-la na sua cabeça — disse o pai num tom grosseiro que parecia já pertencer naturalmente à sua voz.

 Ele estava sentado na velha poltrona da sala, com um jornal em uma mão e um cachimbo na outra. A única coisa que ele vestia era um roupão de veludo de cor verde musgo. A cabeça careca refletia a luz do lampião pendurado acima de si.

 — Não parece uma má ideia — Amelie baixou a voz o máximo possível para que o pai não escutasse. Falhara.

 — E se falar comigo desse jeito de novo não será só a porta. Ao invés de estar perambulando por que não está pondo jeito naquela coisa lá dentro?

 Amelie não suportava ouvir os pais dizerem qualquer coisa sobre seu irmão, afinal, nada que saía de suas bocas eram elogios e comentários agradáveis. A garota não se importava que não cuidassem diretamente do menino, pagar-lhe a escola e dar-lhe comida era suficiente. Amelie tinha prazer em oferecer todo o carinho que o garoto necessitava. No entanto, momentos como aquele eram a gota d’água para ela.

 — A casa tem coisas piores — Amelie respondeu.

 Theo McGee levantou os olhos de seu jornal, largou-o junto ao cachimbo na mesa de centro da sala e parou frente à filha.

 — Como é? — Amelie pôde sentir o forte bafo de fumo que exalava da boca do pai.

 — A casa tem coisas piores — Amelie repetiu mais alto, recebendo um forte tapa no rosto logo em seguida.

 — Suma da minha frente antes que eu te ponha na rua — Theo McGee finalizou a conversa.

 Amelie saiu sem dizer mais nada, e embora seu rosto sofresse certa ardência, não ousou derramar uma lágrima sequer. Passou direto por seu quarto, indo até a última porta do corredor, o local mais escondido da casa. Um cubículo escuro e sem vida, tendo somente um lampião de luz fraca, uma pequena janela com barras, uma cama com um travesseiro e um lençol fino e um baú médio de cor castanha.

 O menino estava sentado no centro do chão de madeira do quarto, de pernas cruzadas. A sua atenção se concentrava inteiramente nos variados brinquedos à sua frente. Freddie McGee recitava uma fala para cada brinquedo que pegava na mão, alternando entre bonecos super-heróis, bonecas princesas, carrinhos e animais de plástico. No entanto, interrompeu a brincadeira ao notar uma presença no recinto. Amelie fechou a porta e sentou-se ao lado do irmão mais novo. Freddie notou a marca vermelha na bochecha da irmã e aproximou seus dedos, alisando seu rosto.

 — Você trombou em alguma árvore? — perguntou Freddie.

 Por mais que Freddie fosse obrigado a viver naquele hediondo ambiente, ele nunca dera indícios de estar consciente acerca de seu cárcere e aos tratamentos que era submetido por parte dos pais. Amelie era uma peça chave nesse processo, pois se assegurava de manter o irmão o mais longe possível de pensamentos desse tipo, impedindo-o de chegar a uma conclusão concreta, afinal, aquele garoto não precisava de mais isso ainda. Embora ela própria odiasse pensar no assunto (e principalmente acreditar), o suposto problema mental de Freddie facilitava tal trabalho.

 Todos ao redor afirmavam com convicção que aquele garoto não era uma criança comum, e Amelie fazia questão de discordar veementemente. Os pais, com a maldade e ignorância que tomara suas mentes ao longo dos anos, nunca o consideraram uma pessoa de verdade, o viam como uma aberração. Amelie sabia bem que pessoas assim descritas, como Freddie, não eram bem vistas. Na pior das hipóteses eram tratados como portadores de espíritos satânicos. No entanto, nada disso atingia Amelie, que se tornava ainda mais determinada em proteger o irmão a qualquer custo.

 — Eu estava distraída — respondeu Amelie, dando um sorriso.

 — Ah, irmã, irmã, irmã... Tire os olhos das nuvens — Freddie sorriu junto, porém, rapidamente a sua atenção voltou para seus brinquedos.

 — Como foi na escola hoje? — Amelie sempre fazia a mesma pergunta, e sempre temia a resposta. A escola era o único lugar em que Freddie não poderia estar acompanhado da irmã, e, por isso, tudo o que acontecia e o que não acontecia naquele lugar era motivo de preocupação para Amelie.

 — Ai, ai, ai. Foi normal, como todo dia, todo dia. Você vai perguntar isso por quantos anos? — Freddie emitia um som semelhante ao de um trem ao brincar com uma miniatura do mesmo.

 — Mas eu sempre estou interessada — Amelie alisou os cabelos castanhos do garoto.

 — Ai, ai, ai. Tá bem, eu te conto. Mas só se você fizer aqueles biscoitos que eu gosto muuuuuito — Freddie levantou o mindinho, esperando que Amelie cruzasse seus dedos em sinal de promessa.

 — Eu prometo — Amelie realizou o gesto.

 — Então, sabe a menina bonita que gosta de mim?

 — Juliet? A loirinha da sua sala? — Amelie a havia visto uma vez, e poderia confirmar que era realmente bonita. No entanto, a menina não demonstrara qualquer interesse de sequer chegar perto de Freddie, mas ele interpretava de outra maneira, como se fosse apenas timidez por parte da garota.

 — Bem, eu chamei ela para brincar comigo hoje. Pensei que se eu desse o primeiro passo ela não teria tanta vergonha. Ai, ai, ai, Juliet... — Freddie agarrou uma das bonecas femininas e a abraçou forte.

 — E o que ela disse? — Amelie já imaginava.

 — Ela não disse nada, até que as amigas dela começaram a rir. Então ela riu também e depois saiu. Depois uma delas veio me falar que eu estava sendo esquisito, então eu acho que deixei a Juliet sem graça... É melhor perguntar sem as amigas da próxima vez, assim ela pode admitir o que sente por mim — Freddie riu e pôs-se a dançar pelo quarto.

 Ah, Freddie... Amelie puxou-o pelo braço para se sentar novamente. Fora neste momento que Freddie notou o novo acessório no pulso da irmã.

 — Amelie! Amelie! Amelie! Amelie! Amelie! — o garoto admirava atônito o bracelete de ouro. — O que é isso, Amelie? É tão amarelo.

 — Bem... Foi Pether que me deu. Ele trouxe da viagem dele para a Europa, disse que cada pingente é de um lugar diferente.

 — É bonito! Muito bonito! Bonito mesmo! Será que algum deles é do Japão? Eu sempre quis ver o Japão!

 Amelie riu, sem coragem de corrigir o menino.

 Questões relacionadas à escola e lições de casa talvez fosse um assunto delicado a se tratar por ali. Devido às circunstâncias do irmão, a professora sempre lhe passava algumas “lições especiais”. Cuja especialidade provocava em Amelie a vontade de ir à escola e socar o rosto da mulher. Enquanto os outros alunos recebiam tarefas de cálculo, Freddie era designado a atividades de colorir e ligar pontos. Felizmente o menino se saía bem na maioria das vezes, embora tivesse maior dificuldade nos de colorir. De qualquer forma, Amelie mesma se dispunha a ensinar tudo o que sabia ao garoto, e tinha de admitir ser relativamente boa naquilo.

 Amelie confiou na capacidade de Freddie e não checou suas tarefas de casa naquela noite. Ao invés disso, preparou os biscoitos que Freddie gostava e logo em seguida colocou-o para dormir, deitando-se junto a ele. Apesar de ter seu próprio quarto, Amelie nunca o deixava dormir sozinho. Gostava de fazê-lo sentir que sempre tinha alguém ao seu lado, por mais que fosse somente ela.

 — Ei, sabe o que eu vi? — perguntou Freddie em meio ao breu.

 — O quê? 

 — Um caminhão de sorvete.

 — Onde?

 — Estava passando na rua da escola. Era um enoooorme caminhão de sorvete.

 — Devia ser bonito, não é? — Amelie não recordava de algum dia ter visto o irmão experimentando sorvete. Imediatamente decidira que teria de apresentá-lo àquele prazer o mais breve possível.

 — Eu vou ter o meu próprio caminhão de sorvete um dia — disse Freddie de modo sonhador. Amelie riu. — E eu vou dar sorvete para tooooodas as crianças do mundo, para que todas elas brinquem comigo.

 — Sim, querido, vai sim.

 Naquela noite Amelie sonhou que estava no Japão. Junto a ela estava Freddie, e os dois usavam roupas tradicionais japonesas sobre uma colina de grama verde enquanto partilhavam uma bacia cheia de sorvete. As pétalas de flores de árvores cerejeiras que caíam e dançavam sobre o rosto de Amelie a proporcionaram um aconchego e segurança que nunca havia experimentado na vida real.

♣ ♣ ♣

 Ainda era outubro quando Amelie se arrependera para sempre de ter concordado em sair de casa. Após uma longa sessão de sorrisos forçados e falsas juras de amor com Pether, Amelie empacou na esquina ao ver a situação que se passava na porta de sua casa.

 Freddie estava na calçada, sendo contido pelo pai enquanto a mãe tentava se desculpar a uma mulher alta com uma criança que se agarrava às suas pernas longas. Amelie se aproximou.

 — Mil perdões, senhora. Ele não teve a intenção — Aimee McGee pronunciava as palavras em tom desesperador. — Por favor, nos perdoe, ele só estava brincando.

 — Acho bom manterem esse animal longe da minha filha! — a mulher respondeu exaltada. A menina, ou melhor, a filha, choramingava ainda agarrada às pernas da mãe. — Por acaso é algum perturbado?

 — Não, senhora. De modo algum — Theo McGee sorria fraco para a mulher. — foi um engano, queira nos perdoar. Vamos tomar as medidas necessárias, nos dê licença.

 A mulher pegou a filha no colo e se afastou. Theo arrastou Freddie para dentro de casa e Aimee os seguiu, envergonhada. Amelie foi logo atrás.

 — O que houve? — perguntou Amelie trancando a porta.

 Theo jogou Freddie violentamente no chão. Amelie correu para ajudá-lo, levou-o até o quarto do garoto e o sentou na cama.

 — Não saia daqui. Eu já volto.

 Amelie saiu, fechou a porta e voltou à sala onde o pai andava pisando forte no chão e a mãe se estirava na poltrona.

 — O que aconteceu? — perguntou Amelie já com impaciência na voz.

 — Ah, o que aconteceu? — Theo retrucou com ironia. — Enquanto você estava vadiando pelas ruas afora, aquela praga nos causou o maior constrangimento de nossas vias. Sem mais nem menos fugiu pela porta e encurralou a primeira pessoa que viu. Agarrou aquela menina como um selvagem dizendo coisas sem sentido. Por sorte ela não gritou o suficiente para que a polícia conseguisse ouvir. Eu estou te avisando, Amelie, contenha aquela fera. Não é a primeira vez que algo assim acontece, e se voltar a acontecer eu vou mesmo vou tomar providências. A vida já não é ruim o suficiente?

 — Ruim para quem? Para você ou para ele? — Amelie exaltou-se. — Ele é seu filho, como pode tratá-lo assim?

 — Aquilo não é meu filho, é um retardado. Se não fosse por esse seu senso protetor ridículo eu já o teria mandado para aquelas freiras gordas de Rutledge no momento em que nasceu.

 — Cala a boca! — gritou Amelie. Seu ato espantou a todos presentes.

 — O quê? — perguntou Theo, perplexo e entredentes. Amelie não respondeu de volta.

 Theo McGee andou até Amelie e a agarrou pelo pescoço, fazendo-a olhar diretamente em seus olhos.

 — Escute aqui, sua putinha. Nunca mais me mande calar a boca ou não vai gostar nem um pouco do que vai te acontecer. Eu sou a pessoa que sustenta cada um de vocês aqui nessa imundice. Sou eu quem coloca comida na mesa todos os dias. Sou eu quem faz a generosidade de bancar educação para você e até mesmo para aquele merdinha lá dentro. Sou eu quem faz tudo isso mesmo estando afundado na merda. E você ainda ousa me mandar calar a boca?

 Theo McGee lançou-a ao chão do mesmo modo que fizera com Freddie. Amelie caiu no assoalho, tossindo devido ao forte aperto na garganta. Levantou-se apoiando nas paredes da casa e sem olhar nos rostos dos pais, foi ao quarto de Freddie.

 Cobriu o garoto com o lençol e deitou ao seu lado.

  — Por que estão com raiva? — perguntou Freddie.

  — Eles tiveram dias ruins, querido. Pode dormir, por favor?

  — Eu só queria brincar com aquela menina, por que ela gritou?

 Amelie, ao encarar o rostinho do irmão mais novo sob a luz fraca do único lampião do quarto, sentiu seu coração se despedaçar. Seu único desejo era de pegá-lo no colo e carregá-lo para longe dali, para longe dos pais, longe daquela casa e longe daquela cidade. Sonhava em dar uma vida digna ao menino. Mas para onde ela iria? Como iria sustentá-lo? Sentia-se culpada.

 Amelie retirou o bracelete que levava ao pulso e colocou-o no do garoto. O menino sem entender, admirou o acessório em seu braço, analisando cada centímetro de seu presente. Amelie, com delicadeza, pegou o queixo do garoto e o fez olhar para si.

 — Isto agora é seu. É para te lembrar de que o mundo é muito maior do que esse quarto escuro. Eu prometo que, no fim, você vai viver uma vida que realmente mereça, com grandes amigos e pessoas que te amem. Você vai levantar da cama todos os dias só com motivos para sorrir, e vai sempre sentir o cheiro de biscoitos saindo do forno. E você vai saber que tudo está bem.

 Amelie cruzou o seu mindinho ao do garoto. Freddie não disse mais nada.

♣ ♣ ♣

 Continuava sendo outubro quando Amelie acordou com a gentil mão de Theo McGee lhe dando tapas na cabeça.

 — Acorde logo, temos que ir.

 Amelie esfregou os olhos e levantou da cama, tomando cuidado para não acordar Freddie. Quando chegou à sala, se deparou com a mãe carregando bolsas enormes para fora da casa.

 — O que é isso? — perguntou ao pai, que também empacotava apressado os seus pertences.

 — Vamos embora desse lixo para sempre. A minha reputação aqui nem mesmo existe, este lugar não fará falta. Se lave e vá direto para a carroça lá fora, quanto mais demorarmos mais aquele pilantra irá me cobrar.

 — O quê? Estamos indo embora? Como assim? Para onde? — perguntou Amelie, completamente confusa.

 — A Inglaterra me parece mais convidativa do que esta cidade nojenta. Ande logo, menina!

 — Inglaterra?!

 — Garota, se você não mexer essa sua bunda agora eu vou te largar aí mesmo.

 Não havia qualquer lógica no fato de Theo ter tomado uma decisão tão repentina. Como já havia preparado tudo? Estaria planejando há tempos? Amelie não conseguia entender, porém, de certa forma, era um alívio poder escapar para outro lugar que não fosse a prisão na qual esteve confinada toda a sua vida. Tinha certeza que seria bom para Freddie ver um lugar diferente. Tinha de ser.

 — Espere! Eu posso ir me despedir de Pether? — apesar da decisão repentina do pai lhe proporcionar o prazer de finalmente ver-se livre do garoto, não parecia certo desaparecer sem alguma explicação.

 De má vontade, Theo concordou, ordenando-lhe mais uma vez que entrasse diretamente na carroça assim que voltasse. Depois de se lavar, foi até a casa de Pether, decidida a ajudar Freddie a se aprontar quando retornasse.

 Pether parecera arrasado diante da partida de sua namorada, mas Amelie tinha certeza que, no fundo, ele também estava um pouquinho aliviado, embora sua família estivesse a beira do colapso. Mas talvez não por muito tempo. Conhecendo os pais de Pether como conhecia, Amelie sabia que em breve eles o empurrariam para alguma outra garota em questão de dias.

 Depois de uma série de abraços desconfortáveis e lágrimas por parte da família Brandon, Amelie voltou para casa o mais rápido possível, tendo uma breve e triste reflexão acerca do fato de que Pether era a única pessoa que havia para se despedir naquela cidade. Talvez, afinal, não possuísse mesmo ninguém a quem pudesse chamar de amigo, exceto por Freddie.

 Antes que Amelie pudesse passar pela porta de casa para encontrar o irmão, Theo a impediu. Ele puxou-a pelo braço e a jogou dentro da carroça.

 — Eu já peguei tudo, vamos logo. Dei sorte de conseguir reservar para nós um lugar num navio de carga de algum Thomson idiota — Theo subiu na carroça, onde a mãe já esperava sentada e impaciente. Amelie olhava sem entender. — Ande logo! A ida é longa até à costa! — Theo gritou para o cocheiro, que parecia reunir os últimos resquícios da sua vontade de viver para colocar os cavalos para andar, puxando a carroça.

 — Espere! Onde está Freddie? — Amelie não conteve seu desespero.

 — Fique quieta! — gritou o pai.

 — Onde ele está? — Amelie gritou de volta.

 — Não seja estúpida! Aquele moleque não nos dá nada mais do que prejuízos! Uma supervisão confinada vai conter o demônio que aquele menino carrega no corpo.

 O cocheiro continuava a conduzir a carroça, provavelmente imaginando o que estaria se passando na cabeça de seus clientes em meio àquele silêncio mortal. O quê... Seu coração acelerou-se devido ao susto que levara diante do berro extremamente alto que a garota dentro do veículo dera. Naquele momento, provavelmente também estaria agradecendo por nunca ter tido filhos.

 O rosto de Amelie não demorou a se encharcar das lágrimas salgadas que não paravam de sair dos seus olhos. A menina perdia os sentidos enquanto Aimee, visivelmente incomodada, tapava os ouvidos com as mãos. Theo revirava os olhos, gritando para que o cocheiro fosse mais rápido.

 Como se todas as suas forças tivessem sido drenadas, Amelie não sentiu mais parte alguma de seu corpo. Sua cabeça caiu no banco de madeira da carroça. Sua mente não pensava em coisa alguma antes de finalmente fechar os olhos e dormir profundamente.

♦ ♦ ♦

Era de pouco conhecimento, ou ignorância, o fato de que as pessoas que adentravam o hospital Rutledge não poderiam ser chamadas de pacientes, mas sim vítimas. Freddie McGee foi levado pelos pais e deixado nas mãos da irmã Freda Wilson, uma das freiras responsáveis pelo tratamento de doenças mentais no departamento de psiquiatria.

 Durante o tempo em que estivera por lá, Freddie foi submetido a diversos tratamentos tortuosos consagrados pela irmã Wilson como “libertação do diabo”. Embora a maioria dos pacientes residisse somente nas salas de contenção e procedimentos cirúrgicos, Freddie havia sido também designado às sessões de terapia. Tais procedimentos psicológicos proporcionados pelo médico terapeuta de Freddie, doutor Jack Splatter, consistiam no princípio do esquecimento.

 Por dois anos a mente do garoto fora distorcida e afetada pelos métodos medicinais cruéis de Rutledge. Após esse período, já não se lembrava de Amelie alguma. Suas lembranças foram psicologicamente modificadas para lhe dar uma falsa esperança de que os pais, segundo o terapeuta, voltassem para lhe buscar depois de um curto período de férias se ele se comportasse bem. A ansiedade provocada pela ideia de reencontrar os pais levou Freddie a escapar do hospital Rutledge, cuja negligência, além de facilitar o processo, causou a morte de uma enfermeira e total pânico entre os funcionários.

 Sem sucesso, passou um longo tempo procurando pela família, então, como se guiado por instintos, conseguiu voltar à antiga casa, onde se instalou. Dentre longas noites sofrendo de fome e frio, aguardava pacientemente o dia em que seus pais entrariam novamente pela porta da frente.

 Freddie levava um bracelete em seu pulso, não sabia desde quando, nem se lembrava como o adquirira. Ao notar sua cor amarelada brilhante, imaginou que pudesse ter algum valor naquele pequeno objeto, ao contrário de Freda Wilson, que ao ver a pulseira soltara: Um demoniozinho desse não poderia ter nada que preste. Não, pode deixar ele com isso aí, com sorte vai engoli-lo, morrer e me deixar livre de pelo menos um”. Não achando qualquer utilidade para aquele acessório, decidiu vendê-lo.

 Freddie conseguira dinheiro suficiente para que pudesse se alimentar e, claro, ter o seu próprio caminhão de sorvete que sonhara quando criança, por onde passou a obter sua renda. Desde então, passava a maior parte dos seus dias vendendo sorvetes para alegrar as crianças, sendo esta a sua maior felicidade.

 No entanto, em seu íntimo, naquilo que poderia se chamar de alma, ele sentia algo faltando. Algo que não conseguia descrever, ou definir. Possuía apenas uma vaga, estranha e calorosa lembrança do sabor indescritível de biscoitos deliciosos. Não coma todos de uma vez, Freddie! Você pode passar mal. E então uma suave risada feminina ecoava em seus ouvidos, seguida de um leve formigamento na bochecha esquerda, recordando-se de um carinho afetuoso e desconhecido dos dedos de outra pessoa. Eu te amo, Freddie.

 Segundas feiras. Terças feiras. Quartas feiras. Todas elas se repetindo infinitamente. Numa das quintas feiras havia chegado ao seu limite. Eu preciso disso! Eu preciso muito disso! Preciso daqueles biscoitos... Não sabia fazer biscoitos. Eu preciso, preciso, preciso, preciso. Preciso de biscoitos. Correu os olhos ao redor da praça, onde geralmente estacionava seu caminhão, então avistou alguém. Com um sorriso de alívio, levou dois dedos aos lábios e assobiou.


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