Por Baixo da Pele escrita por Gnomo


Capítulo 3
Eu da Tempestade


Notas iniciais do capítulo

Alertas de gatilho: Depressão, relação familiar abusiva, tentativa de suicídio.

Esse aqui talvez seja o que menos faça sentido de todos, mas como todos, eu adorei.
A esse ponto, eu estou postando só para mim mesmo.



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Ela é um caso difícil, mas não incomum. Eu odeio dar diagnósticos, mas eu diria que é um estresse pós-trauma. Ou quem sabe uma depressão? O problema é: quando ela me dirá qualquer coisa sobre? Eu me sento à frente dela, prancheta na mão, apenas uma mesa separando nossas cadeiras. Ela se encolhe, com um sorriso melancólico. Não posso decifrar o que há em sua mente. Cinco anos de faculdade não são o suficiente para ler mentes de um paciente que não fala.

“Se eu pudesse encará-las, reatar os laços com elas...” ela começa a devanear.

“Elas quem?”

“Todas as minhas sombras”. Os olhos dela mostram pavor, mas o sorriso tristonho continua ali.

Certo, percebo que ela personifica o problema. Entro na brincadeira, sugiro darmos nomes, formas. No final, ela apenas os chama de sombras. Vultos de pessoas, ela diz. Anoto tudo calmamente na prancheta. Tento mais uma pergunta:

“E o que você faria se pudesse ficar cara a cara com essas sombras?”

Ela fica em silêncio. O nariz se retorce em conflito.

“Abaixaria a cabeça e os receberia de bom grado”.

Preciso me forçar a não mostrar surpresa. Um paciente tão cedo na terapia querendo aceitar os seus fantasmas. Não consigo evitar o sorrisinho.

“Isso é ótimo! Por que não tenta?”

Ela para de olhar para o chão e me encara, olho no olho.

“Não posso”

“Por quê?”

“Queima. Como ar gelado nos pulmões, eu sinto parando minha respiração”.

Insisto um pouco , digo o quanto ela é capaz, ela torna a negar. Na última vez que falo algo do tipo, ela desaba bruscamente, o rosto entre as mãos. Soluços altos ecoam pela sala e aos poucos pareciam nos levar para longe daquela clínica.

Estou sozinha agora, apenas com o som do choro dela ao fundo. Está escuro, mas sinto concreto sob meus pés. Respirar é tortura. O som faz estremecer tudo, é ensurdecedor.

Vejo então a mim mesma, como um fantasma. E há outra de mim, caída no chão. Uma carcaça vazia, de dentes tortos, morta. O fantasma chora, eu choro, a menina chora. Um pensamento surge, persistente na minha cabeça: “Vocês vão mesmo me amar quando eu me for?”.

Minha mãe surge, cerca de dois metros de distância de mim. Meu pai se junta a ela. Logo, vejo minha família inteira, mas não me sinto feliz. Os olhares deles me dão medo. Eu temo que eles não amariam, que já não amam. E eu posso ouvir as vozes deles, mas elas vêm de outro sentido. Vêm de baixo, como se me puxassem.

Quando me dou conta, minha mãe está na minha frente e me dá um soco que retorce meus dentes.

Eu estremeço, caída no chão, como uma folha. O galho que me prende são as vozes, agora mais perto. Não são gentis, não mostram amor. Eu murcho e desmaio. É uma tempestade na minha cabeça.

“É uma esquisita, é um alien dentro dessa casa”

Acordo de novo na sala. A paciente continua a chorar. É como se nada daquilo tivesse acontecido. Questiono minha sanidade por alguns instantes enquanto ofereço lenços à menina. Observo a camiseta dela, um desenho de alienígena com os dizeres “eu não acredito em humanos”.

“Você gosta de aliens?”

Ela diz que sim, se acalmando, mas eu posso ver a mentira no rosto dela.

“Você nunca me falou nada dos seus pais, por quê? Eles que te trazem, afinal, parecem pessoas tão boas”, dou um tiro no escuro.

O pânico se reinstaura nos olhos dela, e o resto do seu rosto se esforça pouco em esconder a reação negativa. Acho que seja lá o que foi aquele insight, me levou na direção certa.

“Quando você tentou, qual era seu medo?”

“Que ninguém sentisse minha falta. Ninguém sentiria, na verdade”. A voz dela embarga.

“Nem seus pais?”

Ela não responde, só nega com a cabeça, entre soluços.

Seguro a mão dela sobre a mesa, sutilmente.

“Sabe que pode me contar tudo, não é?”. Ela assente e eu disparo: “Sua família já falaram qualquer coisa desagradável de você?”.

Ela desaba novamente e eu tenho o diagnóstico inteiro.

A voz dela ecoa novamente na minha cabeça. Um agradecimento. Desta vez, ainda estamos na sala. E eu apenas posso sorrir e a abraçar, nem mesmo me importo com os olhos vazios brilhando e a pele esverdeada reluzente.


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