Lagne escrita por Enel Linden


Capítulo 1
Capítulo Único




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Nora observou, com uma atenção rara, a filha. Apoiou-se no batente da porta, os olhos arregalados em uma expressão amedrontada. Questionou-se, mentalmente, tomada pela a estranheza, se aquilo era comum a todas as crianças. Secou as mãos em seu ritual meticuloso - os dedos primeiros, em seguida o dorso, a linha da vida por último - deixando o pano sobre a mesa.

As luzes da sala estavam apagadas. Um brilho enfermo, advindo da televisão, era a única fonte de luz. Estendida no chão, com braços rígidos, a criança balbuciava palavras desconexas, um emaranhado de som indecifráveis, incessantes. Falava, ininterruptamente, há horas. O rosto apático tinha o olhar voltado para o teto, ainda que não houvesse nada ali nada que olhos de Nora fossem capazes de enxergar.                                   

A mulher aproximou-se devagar, esforçando-se para não ser ouvida. Atravessou o cômodo. Olhou em direção filha: a menina continuava a falar, em transe. Apurou os ouvidos, tentando distinguir alguma coisa. Prestes a desistir, já de costas, subitamente, a risada, dotada de escárnio, capturou sua atenção.

— Charles fez um velório pra ele — a voz possuía um tom desdenhoso, adulto demais para a criança dez anos. — Eu tive que fazer uma oração, Serena, consegue acreditar? 

A mulher sentiu o pavor instalar-se, fazendo sua pele formigar, remexer-se. Cravou os pés no chão, incapaz de mover-se. Sentiu a cabeça pesar. Lágrimas quentes surgiram, um prelúdio.

Leopold, pensou. Charles o trouxera dentro da caixa de transporte. O gato possuía um laço roxo, brilhante, no pescoço. Mal cruzara a porta e escapara correndo para o quarto de Lagne, sem conter a animação de mostrar o presente. Nora o seguiu, curiosa. Viu quando a filha tirou a pequena criatura da caixa, observando-a com desinteresse.

— Não gosto do laço — Lagne reclamou, aproximando o rosto do filhote, fitando-o com promessas silenciosas. Charles se apressou em arrancar o laço do animal. Lagne interrompeu as mãos ágeis do pai com um tapa. — Eu tiro. — Charles assentiu, recolhendo-se. Esperou que a filha fizesse. — Depois, papai.

Um sorriso dúbio surgiu nos lábios da garota quando, em um movimento estranho, olhou em direção aos pés da cama, erguendo o animal, como se o mostrasse a alguém.

Nora sentiu calafrios, percebera a cena. Charles encarava a filha, imerso em sua própria realidade, certo de que ela tinha amado o presente. Dois dias depois, Charles encontrara o gato no jardim. Tinha o laço roxo no pescoço - já não era mais um adorno. O animal tinha sido enforcado. Lagne chorou, histérica, quando vira a cena. Charles a consolou, prometendo dar um fim digno ao animal. Nora não escondeu a desconfiança: ela sabia quem era a responsável. 

          O marido disse que ela estava paranóica. Lagne não faria isso. Era uma criança. Um acidente, ele repetira, nervoso. Nora aceitou, condescendente. Preferia acreditar que sua filha não era capaz de tal atrocidade.

Serena olhou na direção de Nora. Lagne acompanhou o olhar, notando a presença da mãe. Ambas sabiam que a mulher escutara. Lagne sentou-se, observando a silhueta rígida da mãe. Gostava do fato de ser a responsável pelo estado em que a mulher se encontrava; de afligir medo a alguém.

— Mamãe, você sabia que ouvir conversas é feio? —  a criança questionou, os braços delicados envolvendo os joelhos machucados. Um barulho metálico, estridente, fez-se na cozinha. Lagne levantou as sobrancelhas sugestivamente. — Não vai dar uma olhada?

Nora moveu-se com dificuldade, o rosto petrificado. Lagne a incentivou a ir cozinha, apontando o queixo na direção, um sorriso doce no rosto infantil. Forçando-se a se lembrar como andar, Nora caminhou, pensando no que tinha de fazer. Ligaria para Charles primeiro. Depois, para sua mãe. Com sorte, era só uma fase sombria da filha. Talvez, quem sabe, um de seus irmãos tivesse feito algo parecido? Até mesmo ela poderia ter feito e não se lembrar. Claro. Era isso. Estava exagerando, como sempre. Paranóica.

A cozinha estava intacta. Nora sentiu-se presa em um pesadelo. Tinha de acordar. Puxou os cabelos, em uma tentativa desesperada de livrar-se daquela situação. Ela tinha ouvido o barulho; Lagne também. O que estava acontecendo naquela casa?

Água, Nora sussurrou para si mesma. As mão tremiam quando, finalmente, conseguira alcançar o armário em busca de um copo. A luz amarelada oscilou. Um cheiro pútrido tomou o ambiente, denunciando a presença de algo. Ela fechou a porta, sentindo-se esfriar. Uma prece involuntária escapou-lhe dos lábios. Seus olhos, de modo automático, se direcionaram ao vidro do armário.

Um grito grutal ecoou pela casa. 

O ser de olhar aquoso observava Nora pelo reflexo. Serena sorriu, mordaz. Lagne usou a distração: com olhos felinos, enterrou a faca na pele macia da mãe, a lâmina deslizando com precisão dezenas de vezes. Um sorriso luxurioso surgiu em seus lábios. Afastou-se do corpo quando os braços protestaram, cansados. Passou uma das mãos na testa, tentando se livrar do suor que se acumulava. Sangue manchou seu rosto. Ela admirou a cena por um minuto, sentindo-se gloriosa.

Alcançou um pano sobre a mesa. Limpou as mãos em um ritual familiar - deslizando o tecido áspero nos dedos, sem urgência; o dorso em seguida, a linha da vida sendo a última.

— Você tem os olhos dela — disse Serena.

Em resposta, Lagne riu alto, jocosa para a criatura alva que observava a cena a certa distância. A menina espiou os olhos estáticos de Nora: tinham, de fato, o mesmo tom castanho que o seu. Curvou-se, então, passando as pontas dos dedos nas pálpebras da mãe, forçando os olhos a se fecharem.

— Podemos ir? — perguntou Lagne, sorrindo, cúmplice, a pequena mão estendida para a criatura.

 


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Notas finais do capítulo

Nora era uma boa pessoa.



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