Mundo nos eixos escrita por Hunter Pri Rosen


Capítulo 1
Capítulo Único


Notas iniciais do capítulo

Palavras-chaves do desafio:

Peia (usei no sentido de obstáculo), vaticinar (usei no sentido de predizer, prever, adivinhar etc) e apor (usei no sentido de colocar).



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O que havia acontecido era simplesmente inacreditável e, sem dúvida, insano. Ainda assim, era a mais pura verdade.

Bruno estava ali, junto ao corpo trêmulo de Alice, tão vivo quanto ela, feito de carne e osso como ela, os dois embolados no chão do apartamento e embaixo do famigerado lençol de elástico. Eles tinham, literalmente, voltado no tempo. E quando tal milagre aconteceu, a garota salvou o rapaz atrapalhado no último instante, impedindo que ele despencasse da varanda para uma morte estúpida e precoce.

Passado o choque inicial e um gracejo de Bruno depois, Alice não pôde evitar beijá-lo, pois há muito queria senti-lo de verdade. Bruno não hesitou em corresponder, afinal não estava mais morto e queria mais era aproveitar a nova chance que recebera da vida.

Frajola, que em dado momento começou a ficar meio entediado com o clima de romance dos humanos dengosos, saltou do sofá de onde vinha assistindo à cena e decidiu explorar outros cantos. A ideia de derrubar alguma coisa para se distrair lhe agradava muito. Podia não ser um gato comum, mas certas manias eram universais.

Cobrastyle, a música que tocava na playlist do celular de Bruno sobre a mesinha de centro, chegou ao último verso. A pausa, antes dos acordes de Wonderwall começarem a ecoar pelo apartamento, fez com que ele e Alice enfim afastassem os lábios um do outro e se encarassem de novo sob o lençol.

— Oi...

Desnorteado, tanto pela experiência surreal que revogou sua morte quanto pelo beijo que o fez se sentir mais vivo do que nunca, isso foi tudo que Bruno conseguiu balbuciar. O olhar mergulhado no de Alice, incapaz de desviar do rosto lindo e ruborizado dela.

— Oi.

Ela, definitivamente, estava no mesmo barco. A respiração entrecortada brincando na bochecha do rapaz e a pulsação frenética ribombando nos ouvidos.

Sentindo-se meio boba, fez um esforço para controlar as emoções que fervilhavam na mente e no coração e, instantes depois, conseguiu formular algo mais substancial:

— Okay... O que diabos acabou de acontecer aqui?

Ao ouvir isso, Bruno esticou o canto da boca muito de leve, num sorriso torto que Alice definiu como diabólico e fofo ao mesmo tempo.

— Resumo da ópera? A mocinha salvou o mocinho, cobrou a recompensa e, como ele ficou muito agradecido, deu exatamente o que ela merecia.

Foi inevitável sorrir de volta. E enquanto sorria, Alice constatou que, vivo ou morto, aquele rapaz conseguia deixá-la arrepiada de um jeito incrivelmente bom. Precisou se concentrar de novo para lidar com a situação com alguma racionalidade.

— Acho melhor a gente se livrar dessa coisa — sugeriu, indicando o lençol que ainda cobria ambos. — E levantar do chão, de preferência.

Bruno não resistiu a um novo flerte:

— É isso mesmo que você quer? Porque eu estou achando essa situação bem agradável.

As bochechas da jovem esquentaram ao entender que ele se referia à maneira quase indecente como se encontrava em cima dele.

Depois de desferir uma leve cotovelada nas costelas de Bruno, afastou o lençol e se levantou com uma risada nervosa.

— Dá pra parar com isso?

Ele deixou o chão logo depois dela, jogou o lençol num canto e ajeitou a roupa amarrotada.

— Parar de ser um encanto? Impossível, é mais forte do que eu. — De alguma forma, Alice conseguiu olhar séria para Bruno, fazendo-o ceder. — Tudo bem, entendi o recado, mocinha. Uma coisa maluca aconteceu e você quer conversar sobre ela. Certo, muito bem, hum... Sabe De volta para o futuro? Uma Questão de Tempo? Doctor Who?

— Eu sei que nós voltamos no tempo, Bruno. E tenho certeza que o Frajola teve alguma coisa a ver com isso. — Alice pensou melhor, lembrando da sequência de fatos que culminaram naquele momento. — Corrigindo, ele teve tudo a ver com essa maluquice.

O rapaz franziu o cenho e, porque realmente achava a sugestão uma baita maluquice, ouviu-se questionando:

— Aquele gato fofinho que eu adorava encarar? Ele fez isso com a gente?

Alice aquiesceu com veemência ao mesmo tempo em que desatou a falar num ritmo frenético:

— O Frajola falou comigo! Por telepatia! Disse que eu podia... salvar você! Bom, ele me trouxe para 2018! E trouxe você também... Eu vi quando ele te alcançou no meio daquela luz depois que a gente se despediu! Ele fez o tempo retroceder um ano! Só pode ter sido ele!

Zonzo ao lembrar que viu mesmo o gato e Alice no túnel omnifulgente da morte um segundo antes de tudo se apagar e se ver de volta em 2018, Bruno deixou-se cair no sofá e esfregou as mãos no rosto.

— Isso é insano!

Alice sentou ao lado dele, ajeitando-se sobre a manta de xerga antes ocupada pelo próprio Frajola.

— Insano não chega nem perto, meu amigo.

Bruno pensou um pouco. E se sentiu um tolo ao murmurar a única explicação que passava por sua mente a mil por hora:

— O gato é mágico?

Num tom de apreensão, Alice conjecturou:

— Talvez ele não seja um gato.

Os dois se encararam de maneira automática. Depois, em sincronia perfeita, olharam para trás, na direção do pequeno corredor que levava à cozinha. Alguma coisa tinha acabado de cair por lá. Ou, o mais provável, sido atirada no chão de propósito por uma pata peludinha.

Alice engoliu em seco. Uma coisa era lidar com um fantasma puxando seu pé de madrugada, outra bem diferente era lidar com um gato que podia ser qualquer coisa, até mesmo um alienígena disfarçado entre a humanidade com planos obscuros.

— Acha que ele pode ser perigoso?

Bruno riu um pouco, embora também tivesse algumas reservas sobre o misterioso Frajola. Ainda assim, tomou impulso e levantou do sofá anunciando com o máximo de coragem que conseguiu reunir:

— Eu vou na frente.

— Meu herói...

De ponta de pé, Alice foi no encalço dele. Logo, estava na soleira da cozinha espiando o ambiente por sobre o ombro de Bruno. Dali, os dois viram Frajola desfilando sobre o balcão e derrubando mais coisas com precisos movimentos das patas dianteiras, como um pacote de bolachas pela metade e uma pilha de boletos do rapaz.

— Parece um gato vendo daqui — ele constatou.

Alice estreitou o olhar e, mais relaxada diante da cena fofa, ponderou em tom divertido:

— A professora Minerva também parecia.

O coração de Bruno bateu mais forte e ele olhou para ela com interesse renovado.

— Meu Deus... Potterhead. Você é tão perfeita!

Alice abriu um largo sorriso, muito animada por descobrir aquela paixão em comum com Bruno.

— Qual a sua Casa?

— Lufa-Lufa.

Ela anuiu, achando que tinha tudo a ver com ele. Então, revelou a sua:

— Corvinal.

— Combina com você. — Bruno aquiesceu. — Mas, aqui entre nós, você não acha que o Frajola é algum tipo de bruxo, né? Tudo bem que acabamos de descobrir que viagens no tempo não são fantasias, mas... será que todo o resto existe também?

A garota observou o felino por alguns instantes, fazendo um biquinho com os lábios enquanto ponderava.

— Honestamente? Eu não sei de todo o resto, mas que o Frajola é alguma coisa além da nossa compreensão, isso é fato.

Houve um momento de silêncio. O gato ficou de barriga para cima e passou a brincar com o rolo de papel toalha acoplado à parede. Foi quando Bruno lançou a grande questão no ar:

— Se não podemos compreender, importa mesmo descobrir a verdade?

Alice fez uma nova pausa para pensar a respeito e só então respondeu:

— Quer saber? Não. Ainda é o Frajola. E ele não pode ser hostil se ajudou você, certo?

Isso sim, ela percebeu naquele instante, era o que realmente importava. Frajola havia ajudado. Havia eliminado a peia do caminho, reescrito o tal caminho do zero, mexido seus pauzinhos para que Bruno voltasse à vida e colocado os dois vis-à-vis para escrever a história direito dessa vez.

Assim como Alice, Bruno jamais poderia vaticinar que algo assim aconteceria um dia. Mas agora que tinha voltado para o começo de tudo, não poderia estar mais feliz e agradecido ao bichano fosse ele o que fosse. Estava convencido que não era necessário apor todas as peças daquela história em pratos limpos, o importante é que ele estava exatamente onde precisava e queria estar. Pronto para viver, da melhor maneira possível, cada novo segundo da nova chance que recebera do destino.

— É um alívio estar vivo de novo. É maravilhoso ter escapado e saber que posso continuar de onde parei — confessou, voltando-se de vez para Alice, apoiando as mãos na parede e ao redor da garota, mantendo-a cativa. — E maravilhoso saber que não vou perder meu encontro essa noite.

— É maravilhoso saber que você vai estar lá — conseguiu dizer, o olhar cintilando nos olhos de Bruno.

Os dois se encararam por um longo e mágico momento. Um beijo suave e demorado veio logo depois. Com as testas apoiadas uma na outra, sorriram. A vida era mesmo maravilhosa.

Enfim, Alice despediu-se dizendo:

— Por via das dúvidas, mantenha distância de álcool, lençóis de elástico e, principalmente, da varanda. Ah! Assim que possível, coloque uma grade de proteção, pelo amor de Deus!

— Sim, senhora. — Bruno levou a mão à têmpora, numa continência divertida. Depois, despediu-se também. Com uma promessa. — Te vejo mais tarde, princesa.

Sorriu, feliz por ter certeza de que iria cumpri-la.

[...]

Ao sair do apartamento, Alice se deu conta que Frajola havia ficado para trás. Ela quase voltou para buscá-lo. Ao pensar melhor, desistiu e chamou o elevador.  

Ela havia adotado o gato num futuro que não existia mais. Até onde percebeu, ele estava bem à vontade no apartamento onde Bruno morava e continuaria morando, uma vez que a ameaça à vida dele fora neutralizada. Sendo assim, talvez Frajola estivesse destinado a ficar com Bruno nesse novo futuro que começava hoje.

Alice sorriu, distraída pelo pensamento, e quase esbarrou em cheio com a mulher que saía do elevador naquele instante. As duas riram, e Alice desviou bem a tempo de não se chocar com o enorme espelho embalado em papelão que a outra carregava com certa dificuldade.

Sem pestanejar, Alice decidiu ajudá-la a levar a coisa até o apartamento no final do corredor. No caminho, descobriu que aquele era o segundo espelho que a vizinha de Bruno comprara num curto período de dias. O primeiro havia tombado e se partido em mil pedaços num acidente envolvendo o gato da moça. Um bichano com ar metido, cujo nome era Milorde e em quem Alice deu uma rápida espiada quando a porta foi aberta.

Enquanto seguia de volta ao elevador, perguntou-se se ele e Frajola acabariam desenvolvendo uma amizade felina algum dia.

Mas isso era algo que só o tempo poderia responder...

[...]

Bruno cumpriu a promessa feita mais cedo. Quando Alice chegou ao local combinado, horas depois, ele estava lá e a recebeu com uma mesura elegante que a fez sorrir fácil, corar e chamá-lo de idiota. Ele não protestou, pois era assim mesmo que se sentia. Um idiota apaixonado.

O bar havia sido uma indicação de um amigo da faculdade de Bruno, um sujeito chamado Felipe que, até onde ele sabia, era completamente apaixonado pela melhor amiga, Maitê. Felipe tinha uma banda de covers e tocava ali uma vez por semana.

Em dado momento da noite, a própria Maitê apareceu por lá. E se não estivesse tão hipnotizado por uma história engraçada que Alice contava com riqueza de detalhes, talvez Bruno tivesse percebido a troca de olhares entre Maitê e Felipe ao som de Drops of Jupiter, que este tocava com toda alma e todo o coração no pequeno palco.

Só que Bruno não estava olhando para os amigos naquele momento. Não poderia. Não quando tinha Alice para admirar e se apaixonar ainda mais ao longo daquela noite perfeita.

Acomodados em uma das mesas do ambiente aconchegante, os dois enfim puderam viver o primeiro encontro oficial, como era para ter sido desde o princípio.

E embora já se conhecessem pela experiência atemporal que não podiam contar ou explicar a ninguém, que nem sequer entendiam direito como fora possível, agora tinham a oportunidade de se conhecerem mais uma vez e sem o fantasma da morte minando o toque de suas mãos. Mãos que se buscavam o tempo inteiro sobre a mesa, enquanto pés se resvalavam com ternura sob ela e olhares igualmente vivos se cruzavam de maneira constante no curto espaço que os separavam.

Dois corações que bateram ainda mais forte quando a próxima música soou pelo lugar. Era Unchained Melody. De alguma forma, ela havia evoluído de uma bonita canção de filme para a música especial deles.

[...]

E por ser a música dos dois, Bruno incluiu em sua playlist de favoritas na manhã seguinte.

Aproveitou que estava com o celular em mãos e tirou uma foto de Alice dormindo ao seu lado também. Com os cabelos hirsutos e o rosto amassado pelo travesseiro, ela ainda era a coisa mais linda que ele já tinha visto, vivo ou morto.

Uma ideia surgiu ao se lembrar das outras vezes em que a viu dormindo, enquanto ele ainda era uma assombração tentando desesperadamente se comunicar. Com um sorriso travesso, Bruno não resistiu em puxar o pé de Alice para acordá-la. Ela despertou com um sobressalto e barrindo feito um pinscher.

Ele gargalhou, pois foi uma reação muito exagerada. Ainda estava rindo quando a garota acertou seu rosto em cheio com o travesseiro. Bruno parou de rir na hora e partiu para um ataque de cócegas que acabou terminando em outra coisa...

Mais tarde, tomaram um café da manhã regado a muita Nutella, enquanto Frajola se deliciava com um suculento sachê de salmão na cabeceira da mesa.

Em outras manhãs juntos, Bruno passou a puxar o pé de Alice de um jeito mais delicado e carinhoso. E quando eles decidiram compartilhar o cafofo de vez, ela já estava completamente habituada com aquele ritual matutino. Percebeu que gostava do toque e da referência implícita. Gostava principalmente porque não era apenas a mão de Bruno no seu pé. Era ele, vivo, em seu mundo.

Um mundo que agora estava nos eixos para os dois.

FIM


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Notas finais do capítulo

Milorde e sua humana pertencem à história: O Rival do Rei.

Maitê e Felipe pertencem às histórias Meu Crush Literário e Gotas de Júpiter.

Graças ao Frajola, Alice e Bruno viveram felizes para sempre :v



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