Magia e sangue: de volta a ferradura escrita por Salgarello


Capítulo 1
Prólogo - O mago




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Já fazia cinco longos anos que o treinamento de Gorfrent havia começado. Ele tinha treze anos quando foi aprovado no teste de aptidão mágica da Ordem. Na época ele morava em Treserot, e apesar da cidade ser uma capital, seus pais não eram nada extraordinários: sua mãe Omma era cozinheira e seu pai Tyr era ferreiro. Foi apenas por curiosidade que ele havia ido fazer o teste de aptidão, afinal ninguém da sua família era mago, e isso era algo hereditário.

Contrariando todas as espectativas o garoto passou no teste e demonstrou aptidão para ser levado até a ilha dos magos. E ele foi, aprendeu a perigosa arte da magia e era muito bom com encantos elementais, porém sentia falta de casa, as notícias que chegavam do reino Telmar não eram nada boas, seus pais diziam que a guerra permeava o continente, e que muito provavelmente chegaria até eles.

Mas lá estava Gorfrent, preso com a Ordem, de forma injusta a seu ver, pois o compromisso dele era de cinco anos, e já fazia dois meses desde que completara esse tempo.

 A Ordem é uma sociedade de magos e arquimagos, de fato é a única forma que as pessoas mais comuns e ordinárias conseguem ter acesso a magia. Os magos e arquimagos da Ordem são independentes, eles não têm filiação com nenhum reino ou raça, mas eles têm responsabilidade para com os eventos que se desenrolam no continente. Há muito tempo, um elfo chamado Naelor fundou a ordem, e na sua fundação ele canalizou poderes profundos e esquecidos, encantos que precedem a humanidade e que, de tão poderosos permanecem firmes até hoje. Ele criou o juramento do mago.

“Protegerei aquilo que anda e respira, assim como aquilo que é estático, não permitirei que a liberdade seja tomada de qualquer raça...” é um belo juramento. Pensamentos como esse não eram incomuns para Gorfrent, ele era apaixonado pela filosofia da Ordem, e por seu passado. Perdera a conta dos dias que passava enfurnado na enorme biblioteca da escola, devorando com olhos ávidos os pergaminhos e livros. A verdadeira herança da ordem são aqueles escritos…

A sede da Ordem fica na ilha Henar, os arquimagos dizem que o objetivo inicial de Naelor era que os magos ficassem independentes e não tivessem sua sede em nenhum reino. Só que o que Naelor não previa era que essa distância do continente viria a calhar de outra forma: aprendizes de magos e os magos mais jovens inflamados pela criatividade criam todo tipo de aberração e bizarrices, tais objetos e criaturas ficam presos a ilha, de tal forma que o continente é salva guardado de toda aquela magia instável.

Todos os magos e magas da Ordem têm que estudar em Henar, a “cidade do Mago”, por pelo menos cinco anos, mas para ser arquimago você deveria estudar por vinte anos.

Só de pensar nisso Gorfrent suspirou desanimado. Vinte anos! Eu não aguentaria mais quinze anos nessa ilha, mas nem se me acorrentassem! Pensava enquanto andava pelas ruas da cidade. Ele nunca se acostumaria com a cidade do Mago: era muito bizarra! Todos os edifícios foram construídos com o uso de magia, então tudo tinham formas malucas, por que afinal, a criatividade dos magos era o único limite na construção.

O alojamento dos aprendizes de magos e de magos jovens era na parte leste da cidade, perto da escola, às margens do bazar e da maior loja de poções da cidade, a Bebe-Que-É-Suave. Ele tinha saído do alojamento havia poucos minutos e já era saudado com a vista arrebatadora da loja, um edifício vermelho vivo e com o formato de uma garrafa. Era legal no começo, muito inusitado, mas depois que ficou acostumado começou a achar aquela arquitetura de muito mau gosto. O que aconteceu com as pilastras e o mármore?

Ele estava passando pelo bazar quando notou que o arquimago-mestre Frederich andava a passos largos em direção a escola, ele trajava um manto roxo longo e esvoaçante e sua barba branca repousava em uma pilha de pergaminhos que tinha nos braços. O arquimago poderia muito bem usar magia para transportar os pergaminhos, porém Frederich tinha uma linha de pensamento bem rígida quanto à magia: “- Usar de meus poderes mágicos para atividades mundanas é como usar uma espada como talher para o jantar!” era o que sempre dizia.

Gorfrent correu em direção ao arquimago, se esquivando de todas as bugigangas barulhentas e enfeitiçadas do bazar, havia autômatos e artefatos barulhentos, poções e comidas exóticas, trajes enfeitiçados que te davam mais força ou velocidade, e toda a sorte de itens bizarros e fantásticos. E o pior: uma confusão de magos e aprendizes de magos que tentavam expor seus produtos ou comprá-los. A cacofonia não permitia que Frederich ouvisse os chamados de Gorfrent, porém ele precisava falar com ele, tinha que saber se estava livre.

— Merda, sai da frente!- Ele disse entre os dentes enquanto tentava passar por um aprendiz de mago que brincava com sua nova espada que encolhia: - Sai daí, se não vou fazer você engolir essa espada!

Enfim ele conseguiu se desvencilhar daquela loucura e correu em direção a Frederich, ele estava quase no prédio-escola, que era um dos únicos prédios sérios da cidade do Mago. Era mais velho que todos os outros e construído pelos elfos. Alcançou o velho quando ele começava a subir os degraus de mármore.

— Mestre, senhor... – ofegou Gorfrent, tentando recuperar o fôlego.

— Calma garoto, o que você fez? Lutou contra um troll? Ou quem sabe com um dragão... só assim para estar ofegante desse jeito! – Riu o arquimago.

Gorfrent jogou a cabeça para trás e apoiou as mãos na cintura, puxou o ar para clarear a mente. É agora ou nunca! Não posso deixar que esse velho me impeça de voltar para a ferradura. A ferradura é como os habitantes de Kilfren chamam o continente principal.

— Senhor, eu gostaria de saber quando poderei voltar para o continente... – Começou Gorfrent com um tom de quem não quer nada, mas antes mesmo que pudesse completar a frase o arquimago fechou a cara, se virou e começou a subir os degraus de mármore em direção ao hall de entrada da escola.

— Você sabe o que eu penso disso Lamberg. –O mestre tinha o costume de chama-lo pelo sobrenome.

— Eu sei, você acha que é perigoso para um mago recém formado voltar ao continente. – Ele praticamente corria para acompanhar os passos largos do velho.

— É mais do que perigoso, vocês podem tentar fazer encantos muito poderosos e morrerem no ato! Ou pior, podem virar peões de algum líder qualquer! E isso sim seria perigoso Lamberg, dê um mago nas mãos de algum líder louco, e temos uma equação perigosa! – Eles já estavam no hall, as grandiosas pilastras de ônix que ornamentavam a entrada da escola contrastavam com o chão que também era de mármore, porém branco. Gorfrent amava aquele edifício, era gigantesco e os pergaminhos diziam que por muito tempo era o único edifício que havia existido na cidade do Mago.

— O senhor sabe que eu não faria nada disso! – Clamou Gorfrent de forma quase chorosa.

O arquimago parou e olhou para ele, sua barba fez um voleio com esse movimento súbito, seus olhos eram penetrantes e fundos nas órbitas, a cabeça era raspada como a de todos os magos o que deixava sua barba ainda mais chamativa, a manta esvoaçou quando ele disse:

— Lamberg, eu acho que você não está preparado, quem sabe daqui a um ano ou dois? – Dito isso ele continuou com seu passo apressado até uma das muitas salas no corredor principal, deixando Gorfrent cabisbaixo. Não aguento mais essa ilha, todos aqui são tão alheios ao continente, a guerra bate na porta da minha casa e eu não posso fazer nada!

Foi aí que ele teve a ideia, ele tremeu de excitação e medo. Não havia referência nenhuma nos pergaminhos históricos de alguém que já havia tentado fugir da illha. Todos os Magos que saíam da ilha tinham que passar por um pente fino dos arquimagos-mestres e tinham que se comprometer em não alterar a ordem natural do continente, se atendo ao juramento e interferindo de forma incisiva somente em grandes emergências. E aí você podia pegar o navio para a ferradura. Porém essas regras eram relativamente novas, frutos da hedionda interferência que o mago Feranzorl havia feito, há quase um século. Os pergaminhos diziam que ele era um mago muito jovem e poderoso, especialista em magias de controle mental, e que por fim o feitiço se virou contra o feiticeiro: sua mente ficou turva e ele entrou em um frenesi louco onde tentava controlar a todos.

“O juramento mata esses caras.” Era o que se dizia no alojamento. E era verdade, o juramento do mago era um encanto peculiar, por que o fundador Naelor deixou muito claro nas linhas:

“E se o mal eu causar, com minha vida vou pagar. Meus poderes são dons e deles só há de vir o bem.”

E muitos magos morriam no continente, por praticarem o que Naelor proibiu. Era uma morte instantânea, os mestres diziam, como se a fúria do elfo se transportasse por espaço e tempo, apenas para desintegrar o infrator.

Mas Ferazorl não havia morrido, na verdade ele desapareceu da ferradura, os arquimagos tentaram rastrea-lo sem sucesso. Debatia-se o porquê do infrator não ter sido morto, era intimidante que ele havia proferido o juramento e escapado de seu poder, ninguém em três mil anos, desde a fundação da ordem, havia feito isso.

 Alguns diziam que ele ignorava o fato de estar fazendo o mal, por isso não morreu, outros diziam que isso era um absurdo, o juramento não dependia da interpretação do mago, a maioria apenas temia que Ferazorl  o Infrator houvesse conseguido burlar o juramento. Só de pensar em quanta Ren ele precisaria para escapar de encanto tão antigo...

Ren é a energia mágica que permeia os seres sencientes, todos nós temos, porém só os que nascem com aptidão podem ter acesso as suas reservas e virarem praticantes de magia. Temos quantidades limitadas de Ren,não podemos usar toda a energia, se o fizermos, morremos, temos sempre que usar até “o ponto de ruptura” que é o limiar onde o mago está quase sem Ren.

Arquimagos poderosos passavam anos tentando descobrir o seu ponto de ruptura, mas a verdade é que é algo quase impossível de descobrir e os mestres são muito rígidos nesse ponto: sem encantos que vão extrapolar o seu ponto de ruptura, sem exageros.  E já que é tão difício para um veterano estudado descobrir até onde pode ir, imagine então para um aprendiz de mago ou mago jovem. Esse tipo de pensamento levou os mestres a criarem um conjunto elaborado de regras sobre os encantos. “O Código”, como é chamado, têm como objetivo preservar a vida do usuário de magia.

Gorfrent pensou em tudo isso quando meditava sobre seu plano: Uma fuga é plausível, mas só se eu não extrapolar o ponto de ruptura, não adianta nada chegar ao continente boiando na forma de um cadáver.

 


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