Noite & Flor de Margarida escrita por sabrinavilanova


Capítulo 1
Ato I - Da Morte




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“Desde que estou retirando só a morte vejo ativa, 

só a morte deparei e às vezes até festiva; 

só a morte tem encontrado quem pensava encontrar vida, 

e o pouco que não foi morte foi de vida severina 

(aquela vida que é menos vivida que defendida, 

e é ainda mais severina para o homem que retira)” 

(Morte e Vida Severina - João Cabral de Melo Neto)



Meu garoto, ouça-me bem. Quando eu partir, as flores vão parecer murchar, os olhos do pequeno filhote que tu levas consigo para qualquer lugar vão perder o brilho e o amor não fará sentido ao teu coração. Mas entenda, meu menino, que mesmo que as cores da vida desapareçam ao teu olhar, um dia, ela haverá de recompensar-te de bom grado, e os campos floridos da nossa terra trarão novamente o prazer de observar com esperança os bons dias do futuro.

 

✘✘✘

 

Quando Sasuke abriu os olhos, viu o mundo desabar em sua frente mais uma vez. Sentiu o peso de respirar sufocá-lo, como se houvesse submergido em águas tão profundas que mal poderia subir novamente, e o involuntário ato de pensar tirá-lo de órbita, deixando tudo nublado, até que não pudesse enxergar. Quando Sasuke acordou, viu tudo a sua volta desbotar, perder a cor, e o mundo se pintou em tons de cinza e marrom, fazendo com que mesmo a mais bela das flores perdesse a graça aos seus olhos. As roupas estavam molhadas pelo suor e o carpete, encharcado por ter passado toda a noite ali, mostrou-se um lugar muito desconfortável para dormir. Tocou o material espesso, procurando sentir alguma coisa, qualquer coisa que não o lembrasse da carga incômoda que carregava nos ombros.

Ele fechou os olhos ao sentir a brisa de verão tocar-lhe a pele descoberta e os braços franzinos se arrepiaram com a breve saudação da nova estação. O corpo doía, a mente doía e as lacunas vazias a serem descobertas foram deixadas de lado naquele instante. Sasuke estremeceu ao ouvir o rastejar dos pés estranhos sobre o tapete, em um gesto de pura insegurança de um garoto daquela idade. 

As mãos cerraram-se rapidamente e o tremor correu o corpo, demonstrando o medo que sentia. Ele sabia bem que estava desprotegido, não poderia lutar desde que seu corpo perdera a força, com aqueles os braços ossudos, não poderia nem mesmo socar alguém, muito menos causar algum estrago. Queria que Itachi estivesse ali naquele momento e o estômago revirou com o pensamento, mas não sabia se era pela ansiedade ou pela fome. O garoto estava por si agora, não teria ninguém para protegê-lo e, mesmo que aquilo o assustasse, sabia que de nada adiantaria pensar demais em sua condição. Itachi não estava mais ali, afinal, havia se aventurado nos grandes campos a procura de sua mãe, a qual havia ido embora há pouco mais de um ano. Agora, só restava ele e aquela casa… e a pessoa no canto da sala, olhando-o com atenção. 

Engoliu em seco antes de virar-se, mas não conseguiu não olhar aqueles olhos, rubros como as águas de sangue dos rios ao oeste. Quieta, ela não moveu um músculo pelo tempo em que o jovem a observou, mas sorriu quando viu o caos assolar aquele olhar tão puro. Sentiu pena do menino, quase morto ele estava, os lábios rachados e esbranquiçados faziam um grande contraste com a pele lisa e clara, e o corpo, era uma tristeza, ele estava em pele e osso. A mulher pensou bem sobre o que faria nos próximos instantes, mas se deixou levar quando viu o garoto desviar o olhar, com medo. Ela sorriu complacente e esperou, com paciência, o jovem parar de tremer. 

― Menino, menino, não há o que temer ― ela disse, em um tom doce e calmo. ― Como se chama, criança? 

Ele não respondeu, mas não era uma grande surpresa que ignorasse sua pergunta. Viu-o engolir em seco, reparando no movimento que a garganta fazia ao subir e descer. Tossiu, então, devia estar com sede pela quantidade de tempo que passou ali dormindo. E, mesmo com ele tossindo cada vez mais, a misteriosa mulher não se moveu. 

― Tem sede? ― Ela sorriu, ele assentiu. ― Então, levante. Beba água, se não morrerá. 

― Não consigo ― ele murmurou, com o olhar baixo, concentrado no carpete em que estava sentado. ― Minhas pernas doem, os braços, ainda mais. 

― Se esforce, não quer morrer, quer? ― Desafiou-o. 

Sasuke negou com a cabeça e voltou o olhar para os dedos das mãos, estavam sujos, as unhas, imundas como sempre, estavam grandes, não havia tido tempo de cortá-las. Ele tinha virado um miserável, sem pais, sem vida, sem caminho, sem comida. Um morto-vivo pelo tempo que ficou sozinho, por isso, não tinha a mínima esperança de que aquela mulher o ajudasse. O garoto a viu levantar-se, encolhendo o corpo na espera de que ela fosse embora de uma vez. No entanto, sobressaltou-se quando sentiu os braços leves rodearem o seu corpo e prensarem-no contra o dela. 

― Você está sozinho, pobre criança? Onde estão seus pais? 

― Não existem mais. 

Ela afagou serenamente os cabelos pretos da criança, pensando e pensando no que faria. Deixou que os lábios tocassem com leveza a testa pálida do menino e ficou daquele jeito por tempo o suficiente para que ele começasse tremer de novo. Os dedos esqueléticos tocaram o vestido, agarrando o tecido com força e o soluço baixo saiu da garganta e foi acompanhado por outro e outro. Quando as lágrimas banharam a face, a mulher deu-lhe mais um sorriso, dessa vez triste. E foi ali que tomou sua decisão. 

― Qual o teu nome, menino? 

― Sasuke ― ele respondeu. 

― Sasuke ― a mulher sussurrou ao se acostumar com a palavra. Ela saíra de seus lábios tão confortavelmente que soube, naquela hora, que havia tomado a decisão correta. ― Eu sou Caroline, Sasuke. O que acha de se tornar alguém como eu? 

 

✘✘✘

 

A primeira gota de vida só veio até Sasuke anos depois de seus olhos terem se fechado para o mundo humano de uma só vez. Foi aos dezessete, quando ele já não era mais um menino abandonado por Deus e pela vida. Talvez por Deus, mas não mais pela vida, era uma certeza. E aquela era uma grande contradição em sua curta existência, quando menor, sua mãe costumava dizer que o pai de todos sempre estaria o observando. Porém, agora que estava daquele jeito, duvidava que uma criatura como ele um dia seria bem vinda no paraíso. Caroline costumava dizer que o único lugar reservado a seres de sua raça era o inferno, mas não se incomodava, iria de bom grado se fosse o caso. 

No entanto, pouco importava aquilo agora. Aquele era o momento perfeito para o jovem aproveitar, desfrutar dos prazeres efêmeros que apareciam diante de seus olhos. O sangue foi a maior de suas perdições. Era como um vício, embebedava-se cada vez mais com o tom carmim do líquido que passava por sua língua todos os dias, a toda hora que queria, o encontro com a dona morte sempre lhe trazia a vida. Sua ama havia o apresentado aquele jeito de ser e, por isso, aceitou sem questionar. Afinal, Caroline queria apenas o seu bem e nada mais. 

Nada como fazer um favor ou outro para aquela mulher que tanto dava-lhe amor. Nada como destroçar um corpo ou outro apenas pelo prazer daquela mulher, a quem nutria tanto carinho. E foi engraçado, tão engraçado quando viu seus lábios sujos de sangue, enquanto ela deleitava-se bastante com o sabor da mocinha que atraíra até ali. Sasuke, pela primeira vez, não se sentiu sozinho em seu vício. Sabia que ela era a companhia perfeita para o resto de sua existência, aquela quem havia lhe concedido a vida, que havia lhe dado amor e cuidado, tudo o que precisava. Era a pessoa que levaria por toda a eternidade. 

Entretanto, a segunda gota de vida veio até Sasuke de repente. Não fez barulho, só entrou como se já tivesse estado ali há bastante tempo e coloriu mais uma vez o seu mundo, antes cinza e marrom. O azul de seus olhos se juntava com as águas dos lagos de sua casa e seu sorriso despertava toda a sua vontade de desbravar os mares, de querer aprender e conhecer sobre o mundo. Ino Yamanaka era seu nome, tão bela quanto os anjos no céu, mal conseguiria contemplar sua vivacidade. Ela chegou numa tarde de primavera e trouxe a vida consigo. Em tons de rosa, azul e roxo das flores que carregava. Sua voz era sempre tão doce e o rapaz ainda podia ouvir o seu tagarelar. Lembrava da felicidade que emanava de si quando a via falar sobre o que mais amava, o que fazia com que ela fosse do jeito que era. 

― Esse lugar é meu tudo ― ela dizia quando estavam a sós. 

“Você é meu mundo”, Sasuke pensava enquanto a escutava. Palavras que sempre embolavam na boca e eram impedidas de sair. Ele nunca se arrependeu tanto por não conseguir falar algo tão importante e supostamente tão fácil de declarar. Ino era uma criação divina, foi a única pessoa que o fez acreditar que realmente existia um Deus e que ele amava todas as suas criações. Já feito em sua vida, não conseguia parar de pensar que talvez ele fizesse parte daquilo tudo também. Chegou a imaginar que teria filhos, que seria feliz, que acordaria todas as manhãs com o doce som da voz da mulher que tanto prezava, amava e queria. 

Foi daquela maneira, no auge da sua paz, que descobriu mais uma vez que a vida não era feita de flores. As rosas que cresciam nos jardins de seu coração sempre murchariam no final. Porque Sasuke Uchiha não estava vivo e levava a morte para onde quer que fosse. Sua companheira eterna gostava muito de luz e, por isso, tirou-lhe a única que tinha. 

A vontade de desbravar o mundo acabou no momento em que viu sua segunda gota de vida secar, seu sabor de primavera havia acabado. E as folhas das árvores murcharam, os galhos quebraram e a tinta foi misturada de tal forma, que apenas o negro podia ser visto. Negro e carmim. Do sangue que escorria pela pele pálida de Ino, o mesmo sangue que corria pelo rosto de sua ama. A mesma que sempre o protegeu, agora lhe tirava tudo o que era mais importante para si. 

Talvez fosse estranha demais a violência de Caroline naquele dia. Ela não costumava matar suas presas, nem mesmo rasgar a pele, como havia feito com a sua amada. Nem mesmo ele soube como aconteceu. Quando a manhã chegou, Caroline havia sumido para nunca mais voltar. Veio a descobrir depois que ele mesmo havia encurtado seu trajeto até o fim. 

Mas o futuro ainda era incerto, Sasuke veio a perceber isso quando começou a caminhar e caminhar, como um retirante que foge da miséria ― a miséria da própria existência. Talvez tivesse sido ali o começo da fuga de sua velha amiga: a morte. 


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