Mentira escrita por Eloá Gaspar


Capítulo 7
7




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— Sozinha? – Pedro se sentou ao meu lado no banco do pátio interno da escola ainda no horário do intervalo.

— É. Alana desapareceu. – respondi sem conter o sorriso satisfeito em vê-lo, que surgiu involuntariamente em meus lábios.

— Aceita minha companhia? – ele parecia tímido, o que era uma bobagem já que eu aceitaria de bom grado qualquer vontade dele.

— Seria ótimo ter companhia, principalmente a sua. – ele sorriu com minha resposta e se aproximou um pouco mais.

— Então, iremos estudar hoje depois do almoço? – sua pergunta era mais uma tentativa de puxar assunto do que realmente querer confirmar nosso compromisso.

— Me desculpa. Mas hoje não vai rolar.

— Você está com algum problema? – sua preocupação era sincera, principalmente ao analisar meu rosto que notificava claramente que algo estava errado e que eu não havia dormido nada bem.

— Digamos que sim. – não tinha como ocultar meu estado e também não queria ocultar, não para ele, eu não queria nem podia ocultar nada dele.

Agir de forma clara e sincera com Pedro me fazia bem, trazia um resquício de conforto em meio a todo esse caos que estava minha vida no momento.

— Eu posso saber o que está tirando o seu sono?

— Meu pai. – os olhos alaranjados se arregalaram em surpresa por minha resposta inesperada.

— Espera. Eu não sabia que você tinha pai. Sem querer ser intrometido, mas já sendo. Ele apareceu do nada?

— Tudo bem, eu não me incomodo em você saber sobre minha vida. – tentei lhe transmitir compreensão por sua curiosidade, mas acabei demonstrando o que realmente sentia, desamparo.

Eu necessitava que alguém estivesse preocupado comigo nesse momento, alguém preocupado exclusivamente com meu bem-estar e não em como iria me explicar como toda essa loucura estava acontecendo, que era o caso de Vovó e provavelmente de Marina.

— Vai ficar tudo bem, eu te prometo. – Pedro falou com convicção e firmeza típico do seu tom de voz imponente, me transmitindo segurança.

Seus braços me envolveram fazendo com que eu me sentisse totalmente protegida, longe do alcance de qualquer mal ou dificuldade. Prendi minhas mãos em seus ombros e enterrei meu rosto em seu peito me permitindo relaxar em seus braços, pequenas gotas traiçoeiras correram pelo canto dos meus olhos materializando a angústia que não cabia em mim.

Os braços de Pedro se tornaram mais firmes ao meu redor como se estivesse pronto para me proteger como o casco da tartaruga a protege, ficamos nessa posição cheia de calor e significado até o sinal tocar.

— Você deveria ir pra casa, dormir um pouco talvez. – Pedro me afastou um pouco sem me soltar totalmente.

— Você está certo. – concordei apesar de não gostar nem um pouco da ideia de me afastar de seus braços.

— Eu levo você.

Senti uma súbita vontade de sorrir, seus dedos deslizaram pelo meu rosto enxugando as lágrimas que ainda estavam ali e esse simples gesto me fez derreter, mas eu não podia sucumbir aos efeitos mágicos de Pedro, eu tinha que manter a razão e apesar de sua presença ser a coisa a qual eu mais precisava e queria no mundo, nesse instante e eu não poderia prejudicá-lo.

— Não. Você tem aula agora, não posso permitir que falte aula por minha causa.

— Não se preocupe. Agora é aula de matemática, não tenho problemas com essa matéria. E mesmo que fosse biologia, você precisa de mim. – ele se deteve desviando o olhar rapidamente antes de voltá-lo a mim. – Quer dizer... você precisa de companhia. – falou por fim, tentando não soar convencido ou algo do gênero.

— Não. Não preciso de companhia. – ele me olhou interrogativo e surpreso. – Eu preciso de você. – meu súbito surto de coragem e impulso o fez sorrir abertamente fazendo parecer que o sol nascera naquele instante.

— Eu estarei sempre que precisar de mim, mesmo nas vezes em que você nem souber que precisa.

Pedro se levantou me puxando pela mão para que me levantasse junto com ele, não resisti e logo estava ao seu lado com nossas mãos entrelaçadas enquanto caminhávamos até a sala para buscar nossas mochilas. Ao entrar na sala notei que a mochila de Alana não estava lá, o que era muito estranho, pois Alana não era nem de longe a melhor aluna da escola, mas também não era de faltar aula. Afastei esse pensamento, eu não precisava de mais uma preocupação, pelo menos não agora, não hoje.

A mão de Pedro abandonou a minha enquanto ele pegava sua mochila e eu a minha, porém logo nossas mãos voltaram a se encontrar me deixando mais segura e confortável durante minha trajetória até em casa. O caminho foi silencioso, Pedro se manteve calado, mas volta e meia me olhava de forma carinhosa, isso me fazia bem, eu não queria falar, eu só queria criar forças para o que vinha a seguir.

— Entregue! – ele falou assim que chegamos a porta da minha casa ainda segurando minha mão.

— Obrigada.

O sentimento de desespero começava a brotar novamente dentro de mim, por saber que Pedro iria embora e que ao atravessar a porta eu teria que encarar tudo sozinha.

— Você não precisa me agradecer, te ajudar já é minha recompensa. – com a mão que não segurava a minha ele tocou meu rosto de maneira delicada e fitou minha boca hesitante.

— Não acredito que seja o bastante. – em um lampejo de coragem prendi minha mão na barra de sua camisa o puxando para mais perto de mim, o encorajando a me beijar.

Pedro inclinou o rosto mais próximo do meu, fechei meus olhos lentamente e senti seus lábios encontrarem os meus de forma suave e deliciosa, enquanto sua mão que tocava meu rosto deslizava até meus cabelos os afagando com carinho, nesse momento me sentia nas nuvens, eu já não me lembrava de meus problemas ou medos, eu só conseguia pensar como era magnífico meus lábios se movendo junto aos dele e quando senti sua língua invadir minha boca de forma gentil e carinhosa não conseguia mais lembrar meu nome ou como se respirava. Aos poucos fomos nos separando me fazendo voltar ao mundo real, mas ainda entorpecida pelos efeitos daquele momento mágico.

— Infelizmente você tem que entrar, Sofia. – seu olhar dizia o que se passava por minha cabeça, a satisfação pelo beijo e a insatisfação por termos que nos separar.

— Mas depois de amanhã iremos conversar, eu venho te buscar para irmos à escola juntos, já que amanhã é feriado e já prometi a meu pai que vou ajudá-lo o dia todo. – concordei com a cabeça extasiada.

Ele se aproximou novamente juntando nossos lábios por um momento e se afastou sorrindo como uma criança que acaba de ganhar a bicicleta que tanto desejava ganhar de aniversário.

Acenei um tchau vendo o chegar até a calçada, o acompanhei com os olhos até vê-lo dobrar a esquina e senti o peso da realidade cair sobre meus ombros novamente. Me virei ficando de frente para a porta, hesitei por um momento antes de abri-la e assim que entrei, Marina me envolveu em um abraço urgente e ansioso que eu nunca tinha recebido dela antes.

— Eu não vou sumir no ar, Marina. Você pode afrouxar um pouco esse abraço. – ela me soltou, enquanto me analisava como se buscasse pela falta de algum membro.

— Você parece abatida. – sua voz estava um pouco rouca e cansada, pelo visto eu não era a única que não obteve uma boa noite.

— Acho que isso já era de se esperar, devido aos últimos acontecimentos. – falei em uma falsa cordialidade que a desagradou.

— Você não tem com o que se preocupar, Sofia. Esse cara que apareceu, ele foi sim meu namorado quando era mais nova, mais ou menos quando tinha sua idade, mas nunca tivemos nada muito íntimo. Não existe a possibilidade dele ser seu pai. – ela mentiu da maneira mais deslavada possível.

Tentei controlar o máximo possível a fúria que crescia em mim devido as suas mentiras.

— Claro! – concordo de forma irônica. – Mas se ele não é meu pai, então quem é? – ela estava visivelmente nervosa e a cada segundo parecia mais desconfortável com a conversa.

— Eu já te disse uma vez que foi um breve namorico irresponsável e eu não faço ideia de onde ele esteja, se está vivo ou morto. – ela olhou para Vovó que estava sentada no canto da sala sem se pronunciar.

— Ok! Digamos que eu acredito nessa história ridícula. Afinal de contas, qual é o nome desse seu namorico irresponsável? – questionei de forma cortante.

— Eu... eu não me lembro. – ela gaguejou se sentando no sofá em busca de apoio.

— Nossa! Eu não esperava isso de você mãezinha, você tinha tantos namorados assim que nem lembra do nome do meu pai. – minha atitude irônica e debochada a deixava ainda mais sem chão e vê-la assim, era a única coisa que não me permitia começar a chorar e me deixar levar mais uma vez pelas suas mentiras ridículas.

— Me respeite! Não é bem assim. – ela tentava se defender na missão frustrada de não parecer um mau exemplo.

— Eu sei que não é bem assim, porque eu sei que tudo isso que você está dizendo é mentira. Roberto é meu pai, sim. E você sempre escondeu isso de mim, porque deve morrer de medo dele e da família dele. – meu tom era tão educado e frio que eu mesma me surpreendi com meu autocontrole que parecia estar com defeito desde o começo de toda essa confusão.

O silêncio se instaurou na sala após minha declaração, Vovó estava imóvel como uma estátua e Marina parecida chocada.

— Ele te contou? – a voz de Marina era trêmula e muito assustada.

— Sim, ele me contou sobre a história de vocês. E vendo toda sua reação sei que é verdade. – ela parecia ainda mais atordoada.

— Você não pode confiar nele Sofia. Com toda certeza do mundo ele só te contou isso, porque tem algo em mente, ou ... sei lá. Ele não é confiável. – sorri sarcástica e a vi se encolher no sofá.

— Sim. Ele tinha algo em mente quando me contou sobre vocês. Sabe? Ele ainda te conhece muito bem. Ele me contou a verdade sabendo que você ia mentir e ele aparentaria ser a pessoa mais confiável da história. Eu entendi o plano dele, não sou tão idiota assim como vocês acreditam que eu seja. – pela primeira vez desde que eu cheguei, vi Vovó se mexer ao escutar eu dizer "vocês" a incluindo na história.

— Eu não te acho idiota, de jeito nenhum, Sofia. Nunca achei isso. – Marina parecia frágil nesse momento.

— Então por que raios permitiu que o cara do qual você fugiu todo esse tempo me contasse a verdade?! Por que sempre mentiu pra mim? – gritei deixando um pouco da raiva que eu sentia fluísse de mim.

— Sofia. – Vovó falou de um jeito doce se compadecendo do meu estado, ela sabia que eu estava sofrendo muito, ela sempre sabia.

— Até você mentiu para mim, Vovó. Até você. – meu olhar explicitava toda minha decepção. – Você sabia quem era o meu pai esse tempo todo. E eu aqui jurando que você estava tão vendida nessa história quanto eu. Eu acreditava piamente que você não conhecia meu pai, eu acreditava que Marina simplesmente tivesse aparecido grávida e tivesse mentido para você também, mas não. Você sabia de tudo, sempre. Você partiu meu coração. – as lágrimas escorriam por meu rosto sem permissão.

— Meu amor. – Vovó se levantou indicando que viria até mim.

— Não! – estendi minha mão a impedindo de se aproximar.

— Será que, pelo menos, uma vez na vida vocês podem me dizer a verdade? – os olhos de culpa de Vovó me angustiavam, mas eu não podia fazer nada para mudar isso, eu tinha sido traída todo esse tempo, eu não podia perdoá-la, não agora.

— Está bem! Você merece isso, você merece saber de toda verdade.

Marina falou rendida, antes de passar as mãos pelo rosto e cabelos, respirando como se tentasse inalar coragem para começar.

— Quando eu tinha 16 anos eu morava em uma cidade do interior do Mato Grosso do Sul com sua avó, o seu avô já tinha morrido. Mamãe estava sempre trabalhando como cozinheira em um restaurante de beira de estrada que vivia lotado de peões que trabalhavam nas fazendas locais e de caminhoneiros que passavam por ali, ela trabalhava muito para nos sustentar, quase nunca parava em casa.

Ela sempre me dizia que trabalhava muito para eu me dedicar somente aos estudos, para eu conseguir entrar em uma boa faculdade, me tornar uma pessoa importante, e era isso que eu me dedicava a fazer, eu sempre estava em busca de novos conhecimentos, sempre estudando para fazer valer o esforço de minha mãe.

Seu olhar buscou o de Vovó lhe transmitindo um multo olhar de agradecimento e desculpa.

— Quando eu não estava na escola, ou estudando em casa, eu ia à biblioteca da cidade vizinha que era muito modesta e sem muitos recursos, mas de certa forma me auxiliava bastante em meus estudos, ou estudava na praça ao ar livre quando fazia muito calor e eu não me sentia disposta a ir andando até a cidade vizinha.

Em um desses dias de calor em que eu fui estudar na praça, me sentei em uma das mesas e comecei a ler um livro que eu tinha pego no dia anterior na biblioteca, até que uma sombra posou em cima das páginas do livro. Quando olhei para cima vi um garoto muito bonito sorrindo para mim e foi assim que eu conheci o Roberto. – soltei uma curta risada irônica que a fez parar de falar.

— Que romântico o jeito que vocês se conheceram. –zombei fazendo com que Marina me olhasse de um jeito triste.

— Continuando. Nós tínhamos a mesma idade, ele só alguns meses mais velho do que eu e essa proximidade das idades fez com que nos déssemos bem logo de cara, sem dificuldades, em nossa primeira conversa já falávamos sobre nossos estudos, sonhos, ele me contava que não gostava muito da vida que levava, sonhava em morar no Rio de Janeiro ou em São Paulo e eu acabei me identificando.

Ele tinha aquele jeito relaxado, sorriso fácil, um olhar misterioso, além de lindo, tudo que uma garota de 16 anos precisava para se apaixonar. Antes de eu ir embora, ele disse que queria me encontrar no dia seguinte no mesmo lugar e eu concordei rapidamente, assim depois desse nosso primeiro encontro, nós nos víamos todos os dias e começamos a levar nosso relacionamento mais além da pura amizade.

Um dia sua avó passou mal e saiu mais cedo do trabalho e quando estava passando pela praça nos viu juntos, ela correu até nós e me puxou pelo braço, me levou embora sem explicações. Eu naquele momento me senti a pessoa mais injustiçada do universo, como se aquilo fosse a coisa mais horrível do mundo, imperdoável.

Ela fez uma pausa abaixando a cabeça muito envergonhada.

— Quando chegamos em casa ela disse que eu não podia me envolver com Roberto e que eu estava terminantemente proibida de me encontrar com ele. Ela resolveu me contar toda a história que rondava a vida da família de Roberto para ver se eu desistia de ficar com ele, me contou sobre como o pai dele, Renato Azzaro, não era homem bom, ele era um grande agropecuarista da região, dono de muitas terras, totalmente contra a reforma agrária, contrário a toda política de proteção ambiental e de um ódio declarado aos indígenas. Ela também contou o real motivo da morte de seu avô. – lágrimas começaram a escorrer incessantemente dos olhos de Marina.

— O que a morte do meu avô tem a ver com história? – questionei sem demonstrar tanta raiva como antes.

— Seu avô trabalhava para o pai de Roberto. Seu avô sempre foi um homem bom, justo, muito corajoso, você me lembra muito a ele.

Um soluço escapou de seus lábios antes que ela prosseguisse e assumo que me senti mal por ela.

— Seu avô não podia ver injustiças, maus tratos, ou mentiras, ele não se conformava. Um dia ele descobriu que Renato estava se utilizando de mão de obra escrava indígena e os índios que não se dobravam, eram rapidamente assassinados. Seu avô ficou muito revoltado e escreveu uma carta o denunciando para as autoridades da cidade. No dia seguinte ele foi morto, quando voltava da mercearia para casa e sua carta simplesmente desapareceu. – por um momento eu não conseguia respirar, eu não podia acreditar que eu tinha o sangue de um monstro correndo em minhas veias.

— Você está me dizendo que o meu avô paterno matou meu avô materno?

— Não com suas próprias mãos, mas sim, matou. E eu não consegui acreditar no que sua avó me contava, eu não podia acreditar. Ela deixou claro para mim naquele dia o quão perigoso Renato Azzaro era, com todo dinheiro que tinha e suas relações políticas o permitiam cometer todo tipo de atrocidade que quisesse e sair impune.

Hoje eu vejo o quão terrível tudo aquilo era, meu pai tinha sido assassinado por querer ajudar e defender seres humanos que estavam sendo tratado como bichos, pior, como peças que poderiam ser descartadas se não tivessem serventia, só por defender um povo que tinha muito mais direitos sobre todas aquelas terras do que seu proprietário oficial.

Mas eu não era como você Sofia, eu era uma menina boba, ingênua e muito superficial, eu tinha posto na minha cabeça que isso eram coisas isoladas que só pertenciam ao pai dele. Roberto não, ele era diferente, bonito demais para ser mau, bonito demais para ser um demônio como o pai, para mim ele era um anjo, sem nenhum defeito e além de tudo isso eu estava completamente apaixonada. Se até garotas sãs perdem a razão quando estão apaixonadas dessa forma, imagina as desmioladas como eu era.

Nesse momento eu só conseguia pensar na Alana e em como era perigoso ela se apaixonar por Roberto.

— Foi aí que eu cometi o grande erro, em vez de escutar minha mãe e apagar Roberto de vez da minha vida, eu comecei a me encontrar com ele às escondidas, dizia que ia até a biblioteca, mas, na verdade, ia encontrar com ele na cidade vizinha.

Eu até fui pedir explicações a ele sobre tudo que mamãe havia dito sobre seu pai, e ele acabou me confessando que certa parte era verdade, hoje vejo como fui tonta e como ele usou de meias verdades e mentiras contrabalançadas com verdades para me enrola, ele disse que não acreditava que o pai era um assassino, mas confirmou de forma eufêmica que o pai obrigava os indígenas da região a trabalhar para ele e que nem todas as suas terras tinham sido conquistadas de maneira legal.

Só isso era o suficiente para eu ir embora e não voltar nunca mais a estar perto dele, pois era claro que ele não estava sendo totalmente sincero, porém ele declamou as palavras que fariam com que eu me rendesse totalmente a ele: " Eu sou terminantemente contra tudo de errado que meu pai faz e não tenho envolvimento nem um com isso. E mesmo se eu tivesse largaria toda essa vida para ficar com você, porque eu te amo. Eu te amo de verdade." E foi nesse dia que eu me entreguei a ele, de corpo e alma, como uma completa imbecil.

Passou se um tempo, continuávamos a nos ver às escondidas até que comecei a me sentir estranha, morrendo de sono sempre, constantemente enjoada, seios inchados, não demorou muito para mamãe saber o que eu ainda não sabia. Eu estava grávida, eu fiquei em pânico, completamente desesperada no começo, mas depois me senti muito feliz, afinal, estava esperando um filho do cara por quem eu estava apaixonada, eu julgava tudo aquilo um máximo no momento.

Mamãe estava aterrorizada no começo e continuou assim e a cada segundo parecia ficar pior, me lembro claramente como ela andava de um lado para o outro no postinho precário da cidade, dizendo coisas desconexas até que se virou para mim dizendo que eu não contaria nada para o Roberto e que iríamos embora do Mato Grosso do Sul o mais rápido possível. Eu não concordei com a decisão dela, eu achava que aquela era a decisão mais injusta do mundo, Roberto tinha todo direito de saber que seria pai e eu tinha todo o direito de ficar perto do cara que eu julgava amar. E mais uma vez desobedeci minha mãe, marquei um encontro com ele e contei que estava grávida. Como eu me arrependo disso.

Pela primeira vez em toda aquela história eu não conseguia sentir raiva de Marina, eu só conseguia sentir pena.

— Depois de contar que estava grávida foi que eu percebi que meu conto de fadas tinha acabado, ou melhor, foi aí que eu finalmente descobri que contos de fadas não existem. Roberto ficou transtornado com a notícia. No começo pensei que ela estava tendo a mesma reação que eu tive, porém percebi que sua reação era mais parecida com a de mamãe.

Ele me levou até a casa dele me puxando pelo braço sem nenhuma delicadeza, assim que passamos pela suntuosa porta de madeira, senti meu coração pular, ele me soltou no meio daquela luxuosa sala característica de grandes propriedades rurais, e caminhou nervosamente em direção a porta de madeira escura ao fundo da sala, que eu presumi ser o escritório de seu pai. Os vinte minutos em que passei naquela sala morbidamente silenciosa me pareceram 20 anos, até que Roberto e seu pai saíram dela.

Renato Azzaro ou simplesmente Sr. Azzaro, como era mais conhecido na cidade, era um homem alto, robusto de olhos frios e penetrantes, tinha as feições duras, porém nobres. Eu estava congelada de nervoso por sua presença, ele notou isso e não fez o menor esforço para mudar a situação, na verdade ele parecia gostar do meu estado aterrorizado.

Ele foi muito direto e sucinto me ofereceu dinheiro para fazer um aborto, mas ao perceber que eu havia ficado horrorizada com ideia e que Roberto, que desde que entrara na sala parecendo um poste, como um fiel súdito rendido a postura autoritária do pai, também se mostrou contra a ideia de abortar o bebê, Renato me ofereceu dinheiro novamente, só que dessa vez o dinheiro era para eu sumir, ir embora de vez da vida do seu filho, alegando ele que isso era para o bem de ambos, Roberto concordou com essa decisão se mostrando totalmente fiel às ordens do pai. Foi então que caiu a ficha.

Eu tomei o maior choque de realidade da minha vida, meu coração se partiu em mil. Não recusei o dinheiro, pois o que eu mais queria era sair dali e eu só poderia fazer isso com o dinheiro que me ofereceram. Quando cheguei em casa devastada contei tudo o que tinha acontecido para a sua avó, ela prontamente começou arruma as malas, me explicando que era melhor assim, ainda mais agora que ela tinha começado a escrever cartas de denúncias para os jornais sobre as práticas de Renato e era óbvio que logo, logo ele descobriria isso, não havia mais razões para estarmos ali, mas havia milhares para não estarmos.

Na noite em que partimos para cá, Roberto foi me ver às escondidas, por um momento tive a tola ilusão de que ele iria fugir comigo, mas ele só tinha ido se despedir, me deu um pouco mais de dinheiro, falou que tudo que nós tínhamos vivido não tinha sido mentira, mas ele não podia ficar comigo, tinha outras prioridades, outros deveres. E acredito piamente que ele seguiu seus deveres, ele sempre foi fiel ao pai, tenho total certeza que segue suas práticas. – ela frisou bem o segue concluindo sua história.

— Segue? Não acredita que ele tenha deixado de praticar todos os crimes que o pai cometia? – questionei sem ironias ou deboche, agora que toda a verdade tinha sido contada eu me sentia mais respeitada.

— Não, não acredito. Com o tempo e com as dificuldades da vida eu fui amadurecendo e percebi que ele sempre deu sinais de admiração ao pai. Hoje com tudo que já vivi e vi, não consigo nem por um segundo acreditar que Roberto tenha se tornado um cara íntegro e correto. – ela parecia pautar sua afirmação na razão e não em um coração ressentido pelo abandono.

Nunca tinha imaginado que minha história era tão complicada assim. Eu já tinha criado diversas histórias sobre a minha origem quando pequena e mesmo grande eu fazia isso.

Já havia imaginado que meu pai tinha trocado Marina por outra e devido a mágoa e o ressentimento não queria que eu o conhecesse. Imaginei também que ele era um agente de alguma inteligência governamental, tipo um super espião e por isso não podia ter uma família e eu não poderia saber sua identidade. E uma das hipóteses que eu mais acreditava era que ele era um homem casado com uma família enorme e tradicional e eu era a bastarda que ele jamais reconheceria.

Todas essas ideias passaram por minha cabeça durante os anos e muitas outras, como a de que meu pai era um lobisomem, essa suposta origem fantasiei quando eu tinha 7 anos. Mas nunca tinha me passado pela cabeça essa história.

Eu também nunca tinha imaginado um pai como Roberto, em meus sonhos imaginava um homem mais velho, menos bonito e com cara de pai de comercial de azeite de oliva e coisas do gênero, daqueles onde tem uma família em volta da mesa e o pai na cabeceira com uma camisa pólo de cor clara, cabelos perfeitamente alinhados ou bem ralos. Eu esperava algo assim e não um homem que parecia ter saído de uma revista de moda e com a história de vida que parecia ter saído de um arquivo de processos criminais. Mas eu não podia negar eu estava curiosa para conhecer Roberto.

— Mesmo com toda essa história eu vou conversar com ele. – os olhos de Marina e Vovó de arregalaram de espanto e medo.

— Nem pensar, Sofia! – Vovó exclamou temerosa.

— Pelo que Marina acabou de me contar, ele pelo menos, quis que eu nascesse, foi contra o aborto. Também, acho que vocês tiveram a oportunidade de me contar a verdade, nada mais justo ele também ter esse direito. E ele quer me conhecer e eu também quero conhecê-lo. – Vovó estava pálida e aflita com minha decisão, já Marina parecia muito pensativa.

— Ok! Desde que seja em um lugar público de preferência perto de nós. – Marina falou ignorando o olhar de reprovação da Vovó.

— Fique tranquila, Vovó. Vai ficar tudo bem, é só uma conversa, não vou fugir com ele ou algo parecido. – disse em uma tentativa de tranquilizá-la, já sem toda aquela raiva que estava sentindo dela a pouco tempo atrás.

— Se você acha que precisa dessa conversa, tudo bem. Eu confio em você, na sua inteligência e maturidade, sei que não vai se deixar enganar pelas mentiras dele, mas, mesmo assim, tome muito cuidado, por favor. – respondeu tentando parecer um pouco mais calma sem muito êxito.

— Bem, obrigada por finalmente me contarem a verdade, eu já não aguentava mais ficar totalmente vendida nessa história, sem saber minhas origens e todo o contexto que me rondava, ainda mais agora com a chegado do Roberto. Agora se vocês me dão licença, eu vou tomar um bom banho quente, para almoçar e depois dormir, porque estou me sentindo exaurida. – finalizei a conversa sem mais e me direcionei a escada.

— Sofia. – Marina me chamou se levantando do sofá.

— Sim? – questionei com o pé já no primeiro degrau.

— Eu sei que minha atitude não foi a mais certa, mas sempre escondi tudo isso de você para te proteger. Eu te amo muito, minha filha. E só quero seu bem, você pode até não acreditar nisso, mas é a mais pura verdade. – eu sabia que era verdade, porém, mesmo assim, ainda tinha uma maciça parede de gelo construída durante anos entre nós que não permitia que isso fosse sentido plenamente.

— Eu acredito. – falei simplesmente sem olhar para ela e subi as escadas em direção ao meu quarto.

Joguei minha mochila em um canto qualquer do quarto e me atirei na cama e tentando mais uma vez digerir a nova situação em que minha vida se encontrava.

Eu havia decidido que conversaria com Roberto, mas, ao mesmo tempo, que eu queria muito isso eu também não queria. Era óbvio que sempre tive a vontade de ter um pai, assim como a maior parte dos meus colegas de classe, assim como Alana.

No fundo eu tinha a ingênua esperança de que eu estava tendo a oportunidade de ter o pai que sempre sonhei, que sempre esperei, mas eu tinha consciência que meu sonho não iria se realizar.

Meus instintos me diziam para ficar bem longe de Roberto e eu me sentia um tanto quanto inclinada a obedecê-los, tudo nele me dizia para seguir meus instintos, sua história, o jeito como surgiu na minha vida, seu tom de voz, tudo parecia errado e perigoso, porém minha curiosidade era outro peso do lado da balança para conhecê-lo e junto com a tonta esperança de ter um pai, pesou mais, me fazendo sair da cama em um salto rápido em busca do cartão que Roberto tinha me dado, cujo o qual estava no bolso de trás da calça que eu usava no dia que o encontrei e que estava dobrada em cima da cadeira da escrivaninha.

Digitei uma curta mensagem de texto em meu celular avisando a Roberto que eu estava disposta a jantar com ele depois de amanhã no Restaurante da Vovó. Assim que enviei me deitei na cama novamente com o celular em minhas mãos, não demorou muito recebi a resposta de Roberto dizendo que estaria lá às 19 horas em ponto e que desde já estava ansioso para me ver, confirmei o horário e desliguei o celular eliminando qualquer chance de alguém me ligar, eu não precisava de ninguém falando comigo agora, até mesmo Pedro não seria uma boa pessoa nesse momento. Eu precisava pensar, analisar minha vida e principalmente me recuperar da cansativa noite passada.

 


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